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Pronunciamento de Renato Pacheco na mesa-redonda sobre o livro O rebelde precoce: crônicas da adolescência, de José Carlos Oliveira

Perguntavam a D. Geraldo Lírio da Rocha, que é professor de Filosofia aqui na Faculdade, meu amigo, e arcebispo na Bahia: “Como vai, D. Geraldo?” Ele respondia assim: “Vou melhor do que mereço.” E eu acho que é verdade que eu também vou melhor do que mereço, principalmente na área dos amigos. Entre os falecidos eu tenho tido grandes amigos — tenho saudade deles. Fui amigo de Guilherme Santos Neves, fui amigo de Jorge de Lima, fui amigo de Donald Pierson, fui amigo de Ceciliano Abel de Almeida, fui amigo de Cristiano Ferreira Fraga e de um monte de gente que está aí no espaço. Mas eu também fui amigo dos dois maiores cronistas do Brasil, amigo mesmo — Rubem Braga e José Carlos Oliveira.

Nosso objetivo hoje é José Carlos Oliveira, obviamente. Num dia de agosto de 1948 eu fui surpreendido pelo Prof. Nelson Ramos, que tinha sido nomeado despachante aduaneiro. Ele dava aula de Inglês no Colégio Estadual e me disse:

“Olha, eu vou experimentar se esse negócio de despachante é bom e eu queria que você me substituísse por um mês.”

Eu dava aula de Português no suplementar; ganhava coisinha de nada. Luiz [Guilherme] também já foi suplementarista. Agora é o tal DT. Então ele [Nelson Ramos] disse:

“Você vai dar aula de Inglês.”

“Mas eu não sei nada de Inglês, eu estudei Inglês com Mr. Peter Sinclair há dez anos atrás!…”

“Mas você sabe mais que esses meninos de doze anos aqui do Colégio Estadual.”

E eu disse: “Ah, isso eu sei.”

Peguei o livrinho e vi que começava lá, I, black, as cores e os desenhos a cor, então eu aceitei e foi uma grande felicidade para mim. Aceitei lecionar Inglês, enquanto ele via se ia ser despachante aduaneiro ou não. E aí, em agosto de 1948, comecei a dar aula de Inglês no Colégio Estadual. Dei [aula por] um mês. Nesse mês encontrei José Carlos Oliveira como aluno. No ano seguinte ele ganhou uma bolsa de estudos, passou para o Salesiano — o que ia modificar totalmente a sua vida e foi até um dos motivos de sua rebeldia. Já naquele ano ele fazia perguntas inteligentíssimas; logo depois eu fiz uma palestra para adultos na Escola Normal e apareceu aquele menino de uniforme do ginásio. Saiu do ginásio e foi lá para a palestra. E eu pensei: esse garoto tem mesmo interesse. Vestido de cáqui, e fazendo perguntas, interessado no que estava se falando… Imagina, eu estava falando sobre Shakespeare, coisa sobre a qual eu não sabia nada, mas que na época ninguém nada sabia aqui em Vitória, a Faculdade de Filosofia não tinha sido criada, de modo que a minha palestra até foi taquigrafada. E José Carlos estava lá presente. Aí eu disse:

“Vem cá, você gosta de literatura, você não quer ir para a Academia dos Novos não?”

Ele disse: “Eu vou lá!”

E foi alguns sábados. Mas ele era um espírito totalmente anti-acadêmico, tanto que nesse livro aí [O rebelde precoce: Crônicas da adolescência] há uma reportagem notoriamente de José Carlos Oliveira, embora tenha sido publicada com pseudônimo, em que ele critica todas as academias e a Associação de Imprensa, até de certa forma causando um mal estar na cidade de Vitória. Criou-se até um processo judicial contra o diretor do jornal, Armênio Clóvis Jouvin, porque ele era menor e não podia ser processado. Mas o diretor foi processado e, como todo processo de imprensa no Brasil, acabou ficando prescrito. Mas nesse trabalho ele faz críticas a Rosendo Serapião, que era amicíssimo dele. Rosendo era um jornalista do norte; alguns aqui o conheceram. Era um escritor fantástico, escrevia muito bem à moda de Rui Barbosa, com nível elevadíssimo, e gostava do que José Carlos escrevia, dando ênfase a esse trabalho na Tribuna. Mas José Carlos não estava se importando com amizade, com a paternidade que Rosendo dera a ele. Rosendo era presidente da Associação Espírito-santense de Imprensa; José Carlos queria criticar as academias de um modo geral e a Associação em particular. Havia comentários na cidade, falavam-se coisas incríveis que estão aí nas crônicas: quem não leu deve ler agora. Então ele publicou e isto, de certa forma, foi um gesto de menino, gesto de garoto rebelde, garoto precoce, mas publicou, e logo depois, por causa desse processo, ele foi para o Rio — ou talvez por vontade de ter um horizonte mais longe.

No Rio ele se tornou um grande cronista, do mesmo nível de Rubem Braga. Encontrei José Carlos no Rio de Janeiro apenas duas vezes: na primeira vez ele estava na pior e eu lhe perguntei:

“Vamos almoçar?” Ao que ele respondeu: “Não, eu já almocei no Saps”. Naquele tempo o Saps fazia aquele almoço na Praça da Bandeira, por cinqüenta centavos. Aí ele disse: “Mas se você quiser me dar um livro…” Era a paixão dele pela leitura, e eu respondi: “Está bem, vamos ali na [não foi possível decifrar o nome da livraria].” Estávamos no Hotel Avenida, naquela área em que todos os capixabas se encontravam, e ele escolheu Luz de Agosto, de Faulkner. Eu nunca havia ouvido falar em Faulkner. Aí comprei um [exemplar] para mim também, e realmente eu e Ivan ficamos, os dois, grandes fãs de Faulkner aqui no Espírito Santo.

Anos depois ele estava na melhor, porque nós ficamos amicíssimos do Clóvis. Na Manchete ele mandava e desmandava; depois ele brigou com o Clóvis também, só não brigou comigo e com Reinaldo, mas com o resto ele brigou com Deus e o mundo. Então ele me convidou para almoçar na Manchete, ainda na [rua] Frei Caneca, onde todos os funcionários almoçavam, e geralmente a política da casa era colocar três funcionários e três convidados. Na nossa mesa estavam Carlos Heitor Cony, R. Magalhães Júnior, José Carlos Oliveira, representando a Manchete, eu, o provincianozinho do Espírito Santo, e duas moças lindíssimas, afro-brasileiras. Então nós estávamos ali naquele papo e José Carlos centralizou todas as atenções com palavrões à moda de Rubem Braga; contava piadas, mexia com um, mexia com outro, enfim, foi uma das vezes [em que o encontrei].

Quando ele precisava de alguma coisa em Vitória ele sempre lembrava do velho professor e amigo, porque nós ficamos realmente amigos. Assim, ele me pediu uma cópia de Sangue, amor e neve, um livro que não tem hoje repercussão, ninguém fala mais nele, mas na época causou grande impressão em José Carlos porque era um livro romântico publicado por uma pessoa aqui de Vitória, o tenente Valmir Magalhães Filho. Tirei xerox [do livro] na Biblioteca Municipal e mandei para ele; depois ele me pediu a certidão de óbito do seu pai e eu consegui também no cartório e mandei; depois ele me pediu uma coisa que eu não consegui. Ele queria escrever um romance sobre sua obsessão: um caso de adultério [ocorrido] em Vitória e que acabou matando um rapaz em frente ao Café Avenida. Aquilo foi na cidade de 30.000 habitantes e foi uma coisa seriíssima, mas não consegui [o processo]. Falei para ele e na outra vez em que ele veio a Vitória ele disse: “Vamos procurar.”

Fui então com ele ao Cartório Criminal e lá esse processo estava com carga para o Conselho Penitenciário. O processo sobre a morte desse moço na porta do Café Avenida estava com carga no Cartório Criminal e sumiu; não existia mais. José Carlos não teve mais o material para escrever o livro dele, e também não ia querer escrever o livro, porque ele era apaixonadíssimo pelo pivô do crime, que realmente era uma moça muito bonita, pela qual ele era apaixonado porque conviveu com todos daquela família e ele estava por dentro daquele ambiente de classe média alta aqui no Espírito Santo. Foi uma pena que ele não tivesse encontrado o processo ou então foi uma sorte: tanto faz. Vocês examinem pelo lado que quiserem.

Agora vamos falar rapidamente sobre o livro O rebelde precoce. É uma grande coisa que a Gráfica Espírito Santo tenha trazido essa Coleção [Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas, na qual foi publicado O rebelde precoce] que já tem dado muitos e muitos livros de bons autores, cronistas capixabas. Mas há uns pontos às vezes pequenos, às vezes maiores, que eu acho que devo falar.

Por exemplo, na página 18 ele [Jason Tércio, organizador do livro] diz que não há nenhum registro de parentes, mesmo remotos, que tenham tido relação com a literatura e artes em geral, isto segundo Jason Tércio. Mas o pai dele [de José Carlos], que era um sargento músico, fez um dobrado que existe no arquivo da banda de música da Polícia Militar. Então há uma relação de artes nisso.

Agora na página 18 ele disse que ele [José Carlos] foi morar no morro de São Francisco — naquele tempo a parte de cá, a encosta de cá, era chamada de morro do Quartel. Morro de São Francisco era a parte onde está hoje o convento de São Francisco. Internaram José Carlos e [sua irmã] Shirley no Orfanato Cristo Rei — eu tenho a impressão, é só uma dúvida que eu tenho, creio que na época o Cristo Rei só internava homens, a não ser que fosse uma menina muito pequena; não sei, talvez depois haja esclarecimento, mas as meninas eram internadas no Orfanato Santa Luzia, que era no alto [do morro] de Santa Clara e que depois passou para onde hoje é a Emescam [Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia, na Reta da Penha]. Aliás, a Emescam, a Santa Casa [sua mantenedora] se apropriou do imóvel, que era o Orfanato Santa Luzia.

Depois, na página 24, falando sobre o convento da Penha, ele disse que se subia por uma trilha — não era uma trilha, até hoje está lá uma ladeira calçada com pedras.

Na página 25 ele fala que havia um homem alto e magro na pensão de D. Maria Oliveira [mãe de José Carlos] — eu desconfio, e talvez Clementino possa me ajudar nisso, eu desconfio que era João Calazans, porque foi abrindo a porta que ele [José Carlos] olhou e viu os livros que João Calazans deixou quando fugiu daqui numa das muitas fugas que ele fez do Espírito Santo, de Belo Horizonte, de Recife e de toda a parte por onde andou.

Agora, na página 25 ele diz assim: “O país ainda vivia sob a ditadura do Estado Novo”, falando sobre a fundação da Folha Capixaba. A Folha Capixaba foi fundada exatamente quando o Estado Novo caiu, em 1945, e viveu até abril de 1964, quando Clementino foi preso lá e chamaram os jornalistas. Mas não tinha sido fundada ainda no Estado Novo; a Folha Capixaba foi fundada depois do Estado Novo.

Na página 33 ele fala das missas na igreja de São Gonçalo. Eu tenho uma vaga impressão que na igreja de São Gonçalo não eram rezadas missas; deve ter sido na Catedral, que estava em obras. Em todo o caso não é muito importante.

Na página 34 ele fala de Ivan Borgo, José Carlos Monjardim Cavalcanti, pertencentes à Academia Capixaba dos Novos. Eles não pertenceram. Eugênio Sette, ele coloca como membro da Academia, mas Eugênio era muito mais velho que os outros e era portanto sócio-honorário, não era um sócio da Academia. Agora um erro maior é o que diz: “As reuniões eram realizadas aos sábados à tarde, nunca à noite, na sede da Academia Espírito-santense de Imprensa”. Eram realizadas (e isto quem informa sou eu) no terceiro andar do antigo prédio do Banestes na Praça Oito. Mas ele disse que as reuniões eram na AEI, que funcionava num porão do [Teatro] Carlos Gomes. Ora, o Carlos Gomes nunca teve porão, era numa sala lateral que a AEI funcionou durante muitos e muitos anos até que Nahum Prado conseguiu do Chiquinho [governador Francisco Lacerda de Aguiar] um terreno na Esplanada [Capixaba] e fez aquele prédio que hoje é o amor e a dor de cabeça de Frederico Teixeira Filho [presidente da AEI].

Na página 39 ele fala no elegante bairro Moscoso. Eu sempre ouvi falar no elegante Parque Moscoso, que sempre se falou em Parque Moscoso — agora é uma coisinha boba, mas que pode servir para uma revisão na segunda edição.

Depois [página 41] ele fala no beco da Miséria e dá a impressão de que o beco da Miséria era longe da praça Costa Pereira mas não era: o beco da Miséria era o bequinho da praça Costa Pereira ligando à avenida Jerônimo Monteiro. A gente fica com a impressão que eram duas entidades, mas não, era uma só.

Ele dá [página 42] Cacau [José Carlos Monjardim Cavalcanti] como morador de Jucutuquara. Eu apelo para Ivan Borgo, para dizer que Cacau morava na rua Graciano Neves. Cacau, José Carlos Monjardim Cavalcanti, nunca morou em Jucutuquara. Era filho de Seu Cavalcanti, cotador de café, que morava na Graciano Neves.

Depois ele diz na página 42 que as meninas da Escola Normal desciam da Cidade Alta pela escadaria Maria Ortiz. Não, desciam pela escadaria Bárbara Lindenberg, porque era o caminho natural que saía da Escola Normal, descia a escadaria e aí passava na Praça Oito.

Na página 43 ele faz a transcrição de uma reportagem sobre as academias, mas está deslocado. Chamo a atenção para uma segunda revisão, não está no local próprio.

Na página 46 ele cita que Yeda Maria Finamore tinha sido Miss Espírito Santo; mas não é Yeda, ele quer se referir a Dona Ida Venturini Finamore, mãe de Ieda, que gostava de escrever e tinha livros publicados. Lilinha Fernandes morava em Mimoso do Sul e está como moradora em Vitória; Zuleica Brandão, eu não consegui identificar quem era [segundo Ivan Borgo, era funcionária pública, casada com Ubaldo De Martin].

Agora, nas páginas 47 e 48 há um erro maior que precisa ser reexaminado, é quando ele fala no “affair” José Carlos e Guilherme Santos Neves. Ele dá a entender que Guilherme Santos Neves vetou a publicação da crônica de José Carlos. Muito pelo contrário, Guilherme Santos Neves foi um dos primeiros a mostrar a genialidade de José Carlos, a capacidade literária de José Carlos. E José Luiz [Holzmeister] nesse tempo estava na Gazeta, não estava mais na Vida Capichaba. A Vida Capichaba tinha sido entregue por Manoel Lopes Pimenta a quatro cavaleiros do Apocalipse: Eurípides, Eugênio, Guilherme e Renato, nós é que estávamos tomando conta da Vida Capichaba, e através da nossa direção José Carlos publicou, a meu pedido. Ele cita ali [em carta publicada como crônica]: “Renato, as crônicas vão não sei o quê…” Está aí no livro [página 238] e então eu acho que isso é um dos pontos críticos da versão que o Jason Tércio dá.

Depois ele fala das catraias que atravessavam a baía. Não, embora os remadores fossem chamados de catraieiros, os barcos foram sempre chamados de botes, pelo menos que eu me lembre, há setenta e cinco anos.

Agora chega do Jason. Não tem nada de errado, eu acho que foi de grande valor um jornalista ter se debruçado sobre a obra de um capixaba tão ilustre, e ainda por cima está comentado que editoras nacionais republiquem esta obra, publiquem novos livros, de modo que nós somos devedores a Jason Tércio. Essas coisinhas eu até vou deixar com Reinaldo, que é o representante do Núcleo [de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, Ufes], e que poderão eventualmente servir para corrigir pequenos senões. Não estou criticando, dizendo que a introdução é uma porcaria. Agora nossa homenagem é a quem tornou possível isto, inclusive o próprio Reinaldo no computador com carinho aqui digitando as crônicas.

Então, minha gente, eu acho que foi muito bom ter sido convidado para esta mesa-redonda. Foi bom o Instituto ter apoiado, porque realmente [José Carlos Oliveira] é uma figura que deve ser sempre relembrada.

[Pronunciamento de Renato Pacheco na mesa-redonda sobre o livro O rebelde precoce: crônicas da adolescência, de José Carlos Oliveira, realizada no Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, em 10 de março de 2004. O pronunciamento foi gravado em fita e depois transcrito por Hormízio Santos Muniz e publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, n. 58, de dezembro de 2004. Para esta versão foram corrigidos alguns equívocos da transcrição.]

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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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