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Herman e Helmut: duas faces da orfandade em Fuga de Canaã

Herman, exilado na terra natal

Numa tentativa de resumir o enredo de Canaã, pode-se dizer que o romance de estréia de Graça Aranha é a obra que dá voz à problemática da imigração alemã para o Espírito Santo no final do século XIX. Considerado por alguns críticos, como Ronald de Carvalho, “o precursor do romance de ideias” no Brasil, Canaã constitui-se de longos diálogos entre as personagens Milkau e Lentz, ocasiões em que cada um dos dois imigrantes argumenta em defesa de suas ideias acerca do fluxo migratório e suas conseqüências, das possibilidades de desenvolvimento da colônia, etc. As palavras de Lentz propagam, entre outras ideias, “ecos nietzschianos“,[ 1 ] defendendo a guerra, a luta pelo poder e a moral do mais forte; as de Milkau contemplam ideias humanitaristas que dão forma ao seu projeto utópico de construção da nação brasileira com base no amor e na solidariedade.

O romance Fuga de Canaã: decadência de uma família alemã, no Brasil, de Renato Pacheco, publicado em 1981, constitui junto com ele, a partir das re-significações que lhe dá, um percurso ficcional em que surge como mais que uma bela homenagem ou simples ensejo de dar continuidade àquele enredo. Para além da importância que enceta ao recuperar fatos e personagens da história de Porto do Cachoeiro (Santa Leopoldina) e do Espírito Santo, seu texto trabalha também internamente, lançando questões acerca dos estatutos de real e ficcional e empreendendo, acima de tudo, novas estratégias de criação da verossimilhança, como veremos a seguir.

Se o romance de Graça Aranha narra as desventuras daqueles alemães exilados em terras capixabas e sedentos, cada um a seu modo, de verem surgir a “nova terra”, o texto de Renato Pacheco tem início com a narração de um exílio paradoxal: o pastor Fischer, após ter-se mudado de Santa Leopoldina (o antigo Porto do Cachoeiro de Canaã) para o sul do país, manda de volta o filho rebelado, o heterodoxo Herman Fischer, para que a reconheça e para que se reconheça na sua terra. Tem início, assim, o seu exílio ambíguo na própria terra natal.

Ao mesmo tempo e internamente, estabelece-se em Fuga de Canaã o que se poderia denominar um jogo entre logos e escrita, o logos representando ao mesmo tempo o pensamento vivo, a fala (em oposição à escrita), a filosofia e a ratio. A principiar pela forma como Herman Fischer se dirige a seu pai, o pastor, através de cartas: “Porém, meu pai, prevejo que algo me libertará, breve, de meu exílio em minha própria terra natal, e, porque o senhor não responde às minhas cartas, não mais lhe escreverei, esperando, pai, aqui e agora, hoje e sempre, ser compreendido e perdoado.[ 2 ]

Cabe perguntar: por que o filho escreve cartas para as quais não obterá respostas? Quais as suas reais motivações? Ora, sua carta é um presente envenenado (um phármakon, na acepção derridiano-platônica), porque através dela ele solicita o perdão do pai, ao mesmo tempo em que lhe incute a culpa, a escritura assumindo a sua condição ambivalente entre bem e mal e, pela ausência da voz viva do pai — característica do lógos —, a sua própria orfandade. É de se notar também o traço da dupla impossibilidade de diálogo: através da escrita, o filho emite perguntas sem resposta. O pai exila o filho e, ausente, não lhe concede sequer o direito à palavra. A escrita é, como Herman, órfã, e o órfão, por sua vez, é sempre já um semimorto, pois lhe falta a presença do pai.

Também é significativo o fato de não haver nunca resposta às cartas. Não obtendo resposta do pai, Herman então envia aos céus a sua palavra. Mesmo em pleno exercício da rebeldia, o filho continua agindo — melhor dizendo, reagindo — em prol e em busca do perdão paterno, o pai elevado à condição de condutor e de julgador do rebanho. Até mesmo a partir do sobrenome, que é a marca da continuidade da presença do pai, o filho ainda o re-presenta, apesar de que encaminha para uma outra significação, mais concreta, o sobrenome Fischer: o pai é, no seu dizer, “pescador de homens“,[ 3 ] enquanto ele se encaminha para a vida que deseja, de pescador no sentido literal. Se o pai não responde, essa recusa à palavra é prova ainda maior de sua soberania e onipresença. O discurso de Herman semeia a dúvida sobre a quem estaria ele se dirigindo, ao iniciar as suas frases com o vocativo “Pai”. O pedido de perdão que a princípio seria enviado ao pai-pastor é, devido à ausência deste, encaminhado aos céus e, então, num curioso movimento de reversão, é o próprio Deus quem substitui o pastor, num lance inesperado desse jogo de substituições. A voz do pai, a sua lei é tão constante na consciência do filho que não mais necessita fazer-se ouvir — ela soa onipresente, como a voz de Deus.

Essa ambivalência típica da escrita reaparece na figura no próprio Herman, filho sem pai, exilado na própria terra natal. Por meio da carta ao pai ele envia a prova escrita de seu próprio desregramento e do de todo o rebanho: “Pai: Vou escandalizar sua moral luterana — casei-me, faz três meses, no rito católico, e já sou viúvo. — Confessei, comunguei. Abjurei, fiz o diabo.[ 4 ] Herman dilui a própria “heterodoxia” em meio ao que considera a imoralidade geral nos costumes dos descendentes de imigrantes luteranos: “(e não lhe falo na moral sexual da colônia que é a pior que se possa encontrar)” (p. 41). Como ovelha desgarrada, renegada pelo pastor, redime-se, a um tempo em que também aponta na direção do pai com a lembrança da culpa: se toda a comunidade está perdida e ele ainda consegue relatar-lhe os malfeitos é porque se encontra em posição de destaque. E ainda: se o rebanho se perdera, o mau direcionamento viera da incompetência de seu antigo pastor, que não soubera conduzi-lo: “O senhor é um autêntico, um verdadeiro luterano, o último dos luteranos. O senhor só aceita amor e medo de seus subordinados.[ 5 ]

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Segundo Herman, a ortodoxia do pai é tão completa que ele se encontra sozinho nela. Ou seja, é um pastor tão leal que, paradoxalmente, não consegue conduzir o rebanho, já perdido. Nesse ponto, Herman é o súdito que indica ao superior a sua dupla falha: como pai e como pastor, enquanto a carta é o presente envenenado em que o filho declara sua negação do poder e do trabalho paternos: “Até os seus luteranos, grupo monolítico em seu tempo, indisciplinados estão se desagregando, paulatinamente. Em Santa Maria uma moça que estudou com as freiras hoje é católica; um filho de pastor se apaixonou por uma professora e se converteu também. Os ricos Schultz brigaram com o Pastor e ameaçaram mudar em massa (não para o catolicismo mas para o luteranismo da Missão do Missouri, americanos degenerados (segundo os pastores) e que estão entrando aqui agora, com muita propaganda e tenacidade).[ 6 ]

A religiosidade de Herman aproxima-se em muito do panteísmo de Milkau, mas um traço importante também diferencia os dois: o amor que Milkau propõe como solução permanece num patamar romântico de idealização, irrealizável, enquanto Herman Fischer tanto inspira quanto colhe os frutos de um amor solidário: segundo o relato de Helmut Jank — no qual não se tem mais motivo para não crer do que nos demais —, também entre ele e Herman se estabelece uma relação afetivo-sexual, a ambos satisfatória, depois de Herman ter vivido com as duas irmãs Jank, tendo estado sempre emocionalmente envolvido, no entanto, com aquela que lhe era proibida, a professora Agnela.

Um forte traço de incompletude permeia cada uma das relações de Herman com as três mulheres: Maria se casa grávida de outro e jamais lhe permite (a Herman Fischer) qualquer contato físico; com Berta ele se associa por caridade e como resultado da insistência dela, e a Agnela, que é para onde aponta o desejo, todos os imperativos se contrapõem. Com Helmut, a ligação, além de socialmente proibida, só nos chega através das declarações de um “doente mental” a um psiquiatra, a veracidade ou não dos fatos sendo mais um mistério que envolve as páginas de Fuga de Canaã.

É importante insistir em que Herman fora “exilado” (termo seu) pelo pai-pastor na sua própria terra natal, numa representação máxima de quão paradoxal é a situação que vive: natividade e exílio se confundem, numa relação intertextual instalada desde a polêmica que envolveu as misteriosas condições de nascimento-e-morte do filho de Guilhermina Lübke, “recriado” por Graça Aranha nas páginas do romance. Aquele, vale lembrar, é devorado por porcos, na mata, depois das tentativas desesperadas da parturiente de conseguir abrigo na casa do pastor, de onde é repelida sob a afirmação de que o lugar é “uma casa de respeito, a morada de Deus” e de que teria abrigo “… Se este lugar não fosse sagrado… Se não fosse terrível a morada de Deus![ 7 ]

A orfandade apenas insinuada na relação entre Herman e o pai avulta na narrativa sem limites por evento da morte do velho Helmut Jank: os filhos, além do desamparo pela ausência da figura paterna, tão terrivelmente marcante no tipo de comunidade em que vivem, encenam uma vez mais a necessidade e a impossibilidade de comunicação. É que, primeiramente, não dominam o português, idioma em que deve ser feito o inventário dos bens deixados. Sem pai, sem língua e expatriados, eles se vêem obrigados a recorrer, para dar curso ao perpasse da herança, à habilidade do indesejado Herman Fischer e da professora Agnela, ambos até então — e não menos depois disso — alvos de sua discriminação.

São eles os únicos na casa que não se envolvem na contenda iniciada por ocasião da distribuição da herança e também os que melhor conhecem o código escrito a que os imigrantes têm que submeter a propriedade deixada. Na cena da realização do inventário, avultam de um lado as falas descontroladas dos Jank, enquanto por um outro Agnela e Herman “dão ordem” à herança deixada pelo patriarca. Nesse sentido, todo o conjunto da ordem “puramente” oral se submete à escrita dos rejeitados. Pelas mãos que grafam a escrita sorrateira, deslizam, enfim, os bens da família. No dizer da professora Agnela: “Berta e Franz se digladiaram numa luta como que há muito pressentida, e para a qual eles vinham se preparando a vida inteira. Por isto, e para minha felicidade, Herman e eu ficamos encarregados de fazer a lista do que havia na venda, sob os olhos suspeitosos de Berta e (principalmente) de Franz. Parece que ia iniciar-se uma dessas longas e falsas questões, causa de tantos escândalos e ódios entre famílias teuto-capixabas.[ 8 ]

O órfão Franz, que se mata após a morte do pai, da mãe e da irmã, encontra dificuldades até mesmo para deixar o seu bilhete de suicida, que resulta praticamente ininteligível, escrito que fora no seu “mau alemão”. Suprema ironia e triste condição de um ser desde sempre e já expatriado em qualquer das duas terras, sem palavra, em qualquer das duas línguas: “‘Waron wil tu dig tot mahen blitet dem die leiber Gott am das ser Hehüte fom dizem Basser. Amém’. (No mundo onde ficar eu, meu Deus, guardai-me para que não pague por isto. Amém.)[ 9 ]

Do mesmo modo, a morte do velho Jank — na versão escrita por Franz e enviada ao irmão Helmut na capital do Estado, e posteriormente narrada por este ao psiquiatra — tem suas circunstâncias postas em causa devido a “aquele alemão estropiado lá dele“,[ 10 ] o que faz duvidar — no caminho intertextual traçado de Fuga de Canaã a Canaã — da suposta veracidade dos relatos e, especialmente, desse relato sobre um outro relato. A obsessão pelo factual, nesse crime como também naquele dos autos que inspiraram Canaã, mostra-se inútil e põe em xeque todo o percurso jurídico-científico que agrega a si o direito de desvendar os casos.

Uma outra via de leitura das relações entre os dois romances poderia partir da observação das relações entre Herman e Helmut, em Fuga de Canaã, e do gérmen dessa relação presente já no contato entre Maria Perutz e o pastor — acusador em Canaã, “refletindo”, por sua vez, o contato entre Guilhermina Lübke e o pastor Hasenack — avô literário de Herman Fischer —, cujos depoimentos foram subscritos pelo juiz de direito, doutor José Pereira da Graça Aranha.



Helmut, o herdeiro bastardo





Provavelmente a relação filial que primeiro salte aos olhos em Fuga de Canaã seja a que o liga intertextualmente ao romance Canaã, de Graça Aranha, o que se percebe já a partir do título. Sustentando esse liame, que a princípio enovela externamente a tessitura dos dois romances, despontam as relações internas de filiação.

Uma dessas relações se estabelece a partir da aparição, no romance, de Helmut Jank, personagem que se autodenomina “neto” de Maria Perutz, personagem de Canaã que tivera sua criação “baseada em pessoa real”. A partir desse fato, o gérmen da paternidade esgarçada daquele universo de papel floresce. E, se bem o notarmos, o fato de Renato Pacheco criar personagens que descendem de outras, também ficcionais, paradoxalmente, ao invés de diminuir a ilusão de real que as cerca, atribui a elas um ainda maior estatuto de realidade, dando provas, mais uma vez, da “medida” deslimitada da verossimilhança, ou seja, de sua grande independência do contexto externo.

Explicando melhor: quaisquer provas da existência factual daquelas histórias e pessoas que inspiraram Canaã desinteressa para a formação, no leitor, de uma sensação de realidade. No entanto, o fato de um personagem como Helmut indicar a sua ascendência naquela outra ficção como que expande o raio de atuação dos acontecimentos do seu universo ficcional até a vida inventada dos ancestrais e àquele outro universo de relações. Assim, não só a sua existência reforça as anteriores, como também o contrário. É o próprio Helmut quem comenta: “[…] eu era um encantado, um neto de uma personagem de romance: que achado, que prato para os suplementos literários […].[ 11 ] E é assim que, de forma curiosa, a ampliação do raio ficcional de Fuga de Canaã amplia o foco da ilusão referencial.

Juntamente com a arregimentação dessa ancestralidade literária para Helmut Jank, tem início um subliminar porém profundo questionamento acerca dos limites e deslimites da ficção. Renato Pacheco, em outras obras, anteriores e posteriores a Fuga de Canaã, fizera sobressair esse tipo de interrogação. Aqui, ainda uma vez, a questão é o quanto de realidade se faz necessário para criar ficção e, a partir do jogo de ilusão referencial que perseguimos em Fuga de Canaã, já é possível acrescentar a essa interrogação um “vice e versa”.

Diante de toda curiosidade sobre a comprobabilidade dos relatos que costuma cercar um bom texto dito “baseado em fatos reais” — como é o caso de Canaã —, os próprios personagens de Fuga de Canaã muitas vezes ensaiam respostas ao propósito de veracidade. No dizer de Helmut Jank: “[…] A verdade querem saber todos, mas a verdade não existe.[ 12 ]

Essa escrita “segunda”, que é a de Fuga de Canaã, realizada sobre outra “segunda” escrita, em vários pontos questiona o estatuto que é ao mesmo tempo a infelicidade e a glória de Canaã (o que atrai e o que arrisca, ao mesmo tempo, empobrecer-lhe a leitura): “basear-se em fatos reais”.

O texto de Pacheco introduz aí uma fissura, ao “assumir-se” — através da criação das relações de filiação literária a que vimos nos referindo — “baseado em fatos irreais”, quando cria um personagem descendente de outro, fictício, e também quando mistura personagens reais e fictícios em um mesmo enredo, como se dá ainda no caso de Helmut, que se declara neto não só de Guilhermina Lübke, a pessoa real (lembrando sempre que dela o que temos nos chega por meio de vários tipos de relato: o oral, dela própria; os das testemunhas e os dos acusadores, documentados nos autos do processo; o escrito, conjunto dos textos do próprio processo; o texto de Graça Aranha, baseado nos autos, e o de Pacheco, “baseado” no de Graça Aranha), como também de Milkau, personagem de Canaã: “[…] minha avó Guilhermina (Mina, a Maria do livro) subiu com o amante, talvez meu avô, as serras do Luxemburgo, em busca do céu“.[ 13 ] E adiante: “A mata era nossa, e o nome lembrava apenas o antigo proprietário, a quem o meu avô, Milkau, a tomara, por dívidas não saldadas nem honradas“.[ 14 ] O que acontece aí é uma revisão da ideia de origem porque, se essa “secundariedade” das escritas é sempre questionável, o de que se duvida, por detrás delas, é mesmo da possibilidade de apreensão do relato e do fato originais.

É interessante notar como esse duplo afastamento de uma suposta realidade vem a provocar a intensa sensação de estarmos diante de seres reais. Percebe-se assim um movimento, um fluxo vertiginoso que emaranha vida e obra, realidade e ficção através da escrita e que, por um lado, partindo de Fuga de Canaã, faz buscar em Canaã o seu gérmen, no jogo de filiação que cria um neto para Maria Perutz e, por outro, lança os seus tentáculos também para a realidade externa, propondo sutilmente que: se a Maria Perutz de Canaã deve sua existência em parte à Guilhermina Lübke — de cujo filho a trágica morte fora registrada nos autos do processo no final do século XIX —, o surgimento de um seu neto literário faz pensar num movimento que segue no sentido contrário: nas possibilidades de uma existência real para um descendente daquela que fora a infeliz inspiradora do texto de Graça Aranha.

É como se um futuro amante de Guilhermina Lübke tivesse passado a ser nomeado Milkau, por influência reversa da ficção sobre o real, e a partir de então se desse a linha de descendência que resulta no surgimento desse ser híbrido entre real e ficcional, que é Helmut Jank. O fato de Helmut ser considerado louco abre as possibilidades de que se crie essa dupla realidade (ou dupla irrealidade) —, por isso é nos seus relatos que ela mormente desponta: a ele, enquanto hospedeiro dos bruxuleios razão-insanidade, é permitido também habitar aquele território móvel entre real e ficcional. É ele próprio quem indica a ambivalência de sua condição, a partir de seus anseios: “Sonhava (sonho ainda) com um homem-caramujo, rosa-vermelho, hermafrodita, íncubo-súcubo, súcubo-íncubo, que um dia há de nascer, por mutação, e que seja capaz de fecundar-se fecundando, num supremo gozo, e que saísse por aí, em noites de lua, em busca de seu par sagrado a fim de gerar uma raça de super-seres, não-homens, não-mulheres, mas ambos […].[ 15 ]

Helmut Jank, herdeiro e bastardo, a um só tempo caçula e adotivo, recebe da mãe — na procura dela por um disfarce que acaba soando irônico — o nome do pai legítimo. Esse filho não-filho do velho Jank é também grandemente perturbado pelos fantasmas que compõem — e decompõem — a sua relação com o pai: “Eu bamboleio entre o bem e o mal. Andei na corda, no fio, com o abismo do Luxemburgo em baixo. Meu pai só dava atenção aos três primeiros filhos, Berta, Franz e MariHEHD Parece que não era meu pai, não sei por quê“.[ 16 ]

Um ponto ainda enriquece a ambivalência dessa posição representada sobretudo por Helmut: não é ele o único dos personagens de Fuga de Canaã a referir o sobrado construído por Milkau ou a árvore plantada por Mina, o que inclusive retira a suas declarações, feitas dentro do mundo daquela ficção, a conotação de delírio psicopático, indicando que se trata muito mais de uma questão do universo literário.

Essa personagem que liberta o seu desejo sexual por outra do mesmo sexo, em plena colônia de imigração luterana alemã, no interior do Espírito Santo, em meados do século XX, encena uma dupla rejeição da função paterna — entendida, obviamente, no sentido tradicionalmente aceito, a partir do seu enfoque psicanalítico como lugar da lei que restringe a liberdade do filho: ela contraria a “masculinidade” do pai e o desejo de continuidade deste “administrador” da família para o perpasse da herança, nas várias acepções do termo.

Helmut, além das acusações de insanidade mental, das proibições por que passa o seu desejo sexual e do convívio com o ódio ou com a indiferença do pai pelas suspeitas de bastardia, ainda se percebe “feio, pequeno, moreno (entre louros teutos), barbudo comecei, para mal de meus pecados, a coxear também“.[ 17 ] Sua constituição física contempla vários dos índices de rejeição presentes na comunidade, compondo com eles uma espécie de bomba-síntese daquelas preconceituações.

Alguns pesquisadores da relação fato-relato em Canaã afirmam que praticamente todos os personagens tiveram a sua existência devida a pessoas reais, o que não impede o leitor de tentar abolir a ânsia de comprobabilidade, inócua perante a riqueza das personagens, ou a obra de questionar a pureza dos estatutos de ficção e realidade, especialmente a partir da relação com Fuga de Canaã, a partir da qual nos é reapresentada.

Para melhor acompanharmos o “caso (de) Helmut”, seria bom relembrarmos a afirmação de Antonio Candido de que a expressão comumente usada para definir personagem — “ser fictício” — é ela própria paradoxal, já que indica a existência do inexistente. Segundo o grande crítico, a criação de personagens “oscila entre dois pólos ideais: ou é uma transposição fiel de modelos, ou é uma invenção totalmente imaginária“.[ 18 ] A nossa proposta é de que se amplie à radicalidade a sua posição, tendo em mente que, no jogo paradoxal da construção de personagens, a dita transposição fiel de modelos simplesmente não existe, porque não resiste ao gérmen da invenção; e nem a invenção totalmente imaginária pode escapar de passar pelo seu contrário, já que todo imaginário é de antemão formado pelos retalhos do empírico.

Com relação aos fatos que inspiraram Graça Aranha, as principais peças do processo, aberto em 1889, e que termina por incriminar Guilhermina Lübke (autuação, interrogatório, auto de corpo de delito e mandado de prisão, entre outras) são reproduzidas por Augusto Lins no livro Graça Aranha e o Canaã, que guarda vastíssima documentação acerca dos fatos nos quais se basearia o romance. Lá é possível ler as reproduções dos documentos oficiais, o registro escrito dos relatos da acusada, dos acusadores, dos julgadores e das testemunhas. Entre eles, o trecho que tanto impressionara o juiz José Pereira da Graça Aranha, relatando a descoberta do filho morto de Maria Perutz, “[…] cujo cadáver que estava com uma corda atada ao pescoço e a cabeça esmagada dentro de um caixão era de cor branca, de sexo masculino e estava nas proximidades de um chiqueiro de porcos […]“.[ 19 ]

Compare-se à cena do nascimento em Canaã a forma como Helmut imagina um parto para si, saindo como um verme de dentro do cadáver da mãe, afiliando-se desse modo à rede de estorvos órfãos, semimortos, natimortos ou mortos-vivos desse conjunto ficcional: “No enterro (mais no dele que no de mamãe, minha amiga) eu me sentia um verme e não um homem, que intranquilo e desassossegado saíra das entranhas de minha mãe, morta“.[ 20 ] Invertendo a situação do romance de Graça Aranha, aqui é o filho que se sente nascer de uma mãe morta, enquanto naquele a dúvida que paira é sobre o nascimento (vivo ou morto) do bebê de Maria Perutz.

Desse modo, criando personagens descendentes dos de Graça Aranha, o escritor Renato Pacheco, conhecedor do percurso livre e sub-reptício da escrita entre ato e relato, opta pela via oposta à dos estudos documentais sobre Canaã. Estes foram em busca das raízes extra-ficcionais do romance, constituindo contudo, e mais uma vez — a despeito de todo o desejo de real que encenam —, uma série de relatos sobre outros relatos, orais ou escritos.

Já no texto de Pacheco, emaranhando ainda uma vez fato e relato, o narrador, inteirado de o quanto há de ficcional em cada declaração e da impossibilidade de um puro resgate histórico dos acontecimentos, ironicamente comenta, ao citar uma certa passagem retirada dos autos: “(como o diabo do homem soubera que a madrugada era fria; devia ser, agosto é sempre frio, na serra)“,[ 21 ] demonstrando assim consciência de questões que envolvem o próprio fazer literário.

Ao contrário do que acontece comumente, a interpretação que faz dos autos do caso de Guilhermina não lhes ignora a condição de relatos e não encena uma perseguição do real através de suas linhas. Poder-se-ia dizer que o narrador de Renato Pacheco é, muitas vezes — porque são sempre vários os seus narradores —, uma espécie de escritor. No caso acima, a supervalorização do relato, a pergunta sobre ele — como é que ele sabia? — aponta ainda uma vez para o real externo, contextual, no jogo infindo de contradições que enreda a ficção.



Referências bibliográficas



ARANHA, Graça. Canaã. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, s/d.

CANDIDO, Antonio et alii. A personagem de ficção. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 1995.

CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Tradução Patrícia Burrowes. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997.

DELMASCHIO, Andréia. Nomes pra viagem: Renato Pacheco: vida e obra. Vitória: Secretaria Municipal de Cultura, 2002.

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991.

LINS, Augusto Emílio Estellita. Graça Aranha e o Canaã. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1967.

PACHECO, Renato José Costa. Fuga de Canaã: decadência de uma família alemã, no Brasil. Vitória: FCAA, 1981.

PAES, José Paulo. Canaã e o ideário modernista. São Paulo: EDUSP, 1992.

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NOTAS

[ 1 ] BOSI, s/d, p. 369.
[ 2 ] PACHECO, 1984, p. 44.
[ 3 ] Idem, p. 24.
[ 4 ] PACHECO, 1984, p. 17.
[ 5 ] Idem.
[ 6 ] Idem, ibidem, p. 40-1.
[ 7 ] ARANHA, 1977, p. 154.
[ 8 ] PACHECO, 1984, p. 102.
[ 9 ] Idem, ibidem, p. 114
[ 10 ] Idem, ibidem, p. 66.
[ 11 ] PACHECO, 1984, p. 76.
[ 12 ] PACHECO, 1984, p. 89.
[ 13 ] Idem, ibidem, p. 63.
[ 14 ] PACHECO, 1984, p. 68.
[ 15 ] Idem, ibidem, p. 73.
[ 16 ] PACHECO, 1984, p. 64.
[ 17 ] Idem, ibidem, p. 68.
[ 18 ] CANDIDO, 1995, p. 70.
[ 19 ] LINS, 1967, p. 469.
[ 20 ] PACHECO, 1984, p. 75.
[ 21 ] PACHECO, 1984, pp. 76-77.

[Transcrito, com permissão da autora, do livro Reino Conquistado: Estudos em homenagem a Renato Pacheco, Vitória, Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 2003].

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© 2003 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Andréia Delmaschio nasceu em Vitória, Espírito Santo, em 20 de abril de 1969. É escritora, professora e pesquisadora. Graduou-se em Letras na Universidade Federal do Espírito Santo (1991), onde realizou também o Mestrado em Estudos Literários (2000), cujas pesquisas resultaram no livro Do palco ao porão: uma leitura de Um copo de cólera, de Raduan Nassar, publicado em 2004 pela editora Annabume (São Paulo). A máquina de escrever (de) Chico Buarque foi sua tese de doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora do livro de contos Mortos vivos (2008), em que apresenta seus primeiros escritos (ficcionais) sobre Chico Buarque. Publicou ensaios sobre as obras de Hoffmann, Rosa, Nasar, Noll e Manuel de Barros, entre outros.

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