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Novo ataque da velha senhora ou cinzas sobre cinzas

Pedro chegou na porta da sua sala e, como fazia habitualmente, arremessou de peteleco a guimba do cigarro que foi cair direto no cinzeiro de barro, sobre a mesinha da Olivetti. Fazia sempre este teste.

Se acertasse da primeira vez, seu dia seria ótimo; se fosse da segunda, seria regular; se não acertasse na terceira tentativa, não tinha dúvidas — o dia seria péssimo.

Desta feita, acertou de primeira, e um risinho de boa-ventura malandra bailou-lhe nos lábios enquanto esfregava as mãos reciprocamente uma na outra.

“Seu Pedrinho, tem uma cartinha para o senhor,” avisou Lenilda, a faxineira da delegacia, chegando na rabada do escrivão e entregando-lhe o envelope branco e quadrado.

Pedro abriu-o e desentranhou a correspondência manuscrita em tinta azul, a letra miúda levemente tremida. “Senhor escrivão seu Pedrinho,” dizia o preâmbulo, ao qual se seguia:

“Permita que o chame de seu Pedrinho porque para mim o senhor não passa de um menino. Mas um menino que me causou uma excelente impressão de gentil-homem quando o conheci aí na delegacia, lembra-se?

Não, o senhor não se lembra, e vou ser mais clara: eu sou a professora Magnólia que esteve na delegacia com meu filho Robertinho para fazer uma queixa contra dois escritores capixabas que divulgaram, como se fosse um ato glorioso, que Noel Rosa se aliviou em plena praça da Independência, quando o compositor esteve em Vitória em 1934, está lembrado agora?”

Pedro lembrou-se. Lembrou-se da figura minúscula da professora idosa, lembrou-se dos seus olhos vivos e perspicazes, do seu vestido negro de botões corridos do pescoço à barra da saia, do leque de motivos japoneses que, em vaivéns resolutos, provocava ventosidades no ar quente e pesado da sala da delegacia. E aproveitou a chama da lembrança para acender um Carlton que tragou com sóbria espiritualidade, antes de voltar à carta da velha senhora de quem se lembrara como se a estivesse vendo pela segunda vez.

“Como o senhor ficou sabendo, seu Pedrinho, eu gosto muito de ler, e tenho acompanhado o que vem saindo pela Internet na Estação Capixaba, que meu filho Robertinho sempre me mostra. Assim, devido à página intitulada ‘New York, 1949 ou os condenados’, que confesso não entendi muito bem, tive conhecimento de que o senhor tem um continho sobre o tema mulheres, publicado num livro que eu não consegui encontrar em nenhuma livraria de Vitória.

Aliás, como é difícil, seu Pedrinho, encontrar livros de autores capixabas nas nossas livrarias! Parece que eles estão condenados a ficar na estante dos fundos, recolhidos ao fiofó das prateleiras.

Lá na Livraria Logos, onde sei que o senhor vai todos os sábados, eu cheguei a ficar curvadinha, mais curvadinha ainda do que estou pela minha idade, para procurar o tal livro sobre mulheres na estante que fica colada no Caixa, uma estantezinha do meu tamanho. Meu óculos chegou a cair duas vezes no chão, de tão embodocada que fiquei, sem achar nada. Que tristeza!

Como estou interessada em conhecer o seu escrito, o qual, pela boa impressão que o senhor me causou, quando o conheci na delegacia, deve ser um continho bem edificante, do jeito que aprendi a apreciar nas minhas leituras da querida Mme. Delly, gostaria imensamente que o senhor me remetesse uma cópia do mesmo (meu endereço está no final desta cartinha).

Se isso não for possível, devido a suas muitas ocupações de escrivão de polícia, veja se consegue que seu continho seja divulgado pela Estação Capixaba porque eu previno o Robertinho e ele me mostra logo que sair.

Desculpe-me se o estou importunando em seus mil e um afazeres, aí nessa delegacia (que loucura que são as nossas delegacias de polícia, seu menino, não sei como o senhor agüenta!), mas eu sou assim mesma, uma velha enxerida e ainda movida a curiosidade.

Robertinho costuma dizer que a carga da minha pilha de curiosidade nunca acaba, e acho que ele tem razão. Da sua admiradora (no bom sentido), Magnólia Louzada.”

Seguia-se um post scriptum, ou melhor, dois “post scripta, para ser mais preciso. O primeiro, denominado simplesmente PS, dizia:

“Eu ia até me esquecendo de perguntar: como está a casa onde funciona a sua delegacia? Já melhorou de aspecto ou continua aquela mesma nojeira de quando fui aí?

Lembra-se que eu fiquei muito chocada com o estado da residência que pertenceu à minha comadre Zulmira? Nem sequer o senhor, seu menino, me deixou visitar o banheiro, para rever a banheira magnífica, que tem patas de dragão. Ainda guardo uma certa mágoa da sua pessoa por não me ter deixado entrar lá.

Imagine que eu ia até pedir para o senhor dar um jeitinho para que eu pudesse tomar um banho na banheira, num dia de feriado em que a delegacia não abrisse. Eu levaria meu maillot bombacha, do tempo em que ia à praia do Barracão, e ficaria apenas dez minutinhos, nada mais do que dez minutinhos, num belo estadão dentro da banheira. Mas o senhor não me deu oportunidade para fazer este pedido. Foi a única hora em que o senhor não se revelou um perfeito “gentleman”, como dizem os ingleses.

Para me consolar, Robertinho diz que qualquer dia vai me levar num borracheiro para eu rever uma dessas banheiras de antigamente. Mas só Robertinho para pensar que eu vou querer ver banheira de borracheiro, cheia de água imunda e com o esmalte todo arrebentado…

Sabe que minha comadre usava a banheira para tomar banhos de água esperta com infusão de folhas de eucalipto para curar seus constipados? As folhas ela pegava num pé de eucalipto que tinha no quintal da casa, perto do sapotizeiro. O senhor já viu um pé de sapoti, seu menino? É uma árvore linda… Quem vê um pé de sapoti não o esquece jamais.

Com as folhas do eucalipto, a comadre fazia uma infusão milagrosa para seu banho de corpo inteiro. Ela enchia a banheira com água morna até a metade (a água era aquecida graças a um sistema de serpentinas metálicas), adicionava o sumo das folhas fervidas num panelão de alumínio, e ficava ali dentro como uma Cleópatra durante dez a quinze minutos. Só numa banheira daquelas era possível um tratamento desse jaez!

Sempre que eu penso nos banhos da comadre Zulmira, eu me lembro do romance O General em seu Labirinto, do Garcia Marques (que escritor maravilhoso!), inspirado em Simão Bolívar. O senhor já o leu, seu Pedrinho? Eu já disse que gosto muito de ler? Aprendi o gosto da leitura com o professor Arnulpho Mattos. Eu fui a primeira senhorinha em Vitória que assinou o Jornal das Moças e a revista Fon-Fon, já ouviu falar deles? (Não assinei a Careta porque implicava com o nome da revista).

Ainda tenho alguns exemplares daqueles dois magazines guardados na parte de cima do meu guarda-roupa, um móvel com duas portas laterais e uma central, que se abre em duas bandas, todo de sucupira, que vem me acompanhando há mais de 60 anos. Meu falecido marido o mandou fazer sob encomenda na fábrica de móveis do Busato (acho que o primeiro nome dele era Salvador), que ficava num barracão onde é hoje o prédio do Álvares Cabral (parece até que estou vendo!), com frente para a rua Barão de Itapemirim (papai sempre se referia a ela como rua do Oriente).

Por sinal, tanto a mobília do nosso quarto quanto a da sala de jantar foram feitas no seu Busato para comemorar nossos dez anos de casados (quando eu casei ainda não tinha 16 anos, era uma mocinha bobinha. Mas casei por amor, não foi casamento arrumado entre a família do noivo e da noiva, que eu jamais aceitaria uma imposição dessas!).

Mas o que era mesmo que eu estava falando? Ah, sim, sobre o romance do Gabi. Se você não o leu, seu Pedrinho, não sabe o que está perdendo. Vou até transcrever o comecinho dele, para deixá-lo de água na boca, ou melhor, de olho gordo:

“José Palácios, seu servidor mais antigo, o encontrou boiando nas águas depuráveis da banheira, nu e de olhos abertos, e pensou que tinha se afogado. Sabia que era esta uma das suas muitas maneiras de meditar, mas o estado de êxtase em que jazia à deriva parecia de alguém que já não era deste mundo.” Não é lindo, seu menino? Agora me responda: tenho ou não tenho razões para valorizar a banheira da minha comadre Zulmira, que o senhor não me permitiu rever?

Fico boba como hoje em dia não se dá mais importância ao nosso patrimônio histórico. Para mim, seu Pedrinho, uma banheira como a da comadre Zulmira é um patrimônio histórico, ainda que familiar. Merecia ser conservada com todo carinho. Chego a pensar que ela devia ser levada para o Instituto Histórico e Geográfico, e ficar lá para as novas gerações verem como eram monumentais as banheiras de antigamente.”

Ao ler este trecho do PS, Pedro não pode conter o riso e chegou a se engasgar com a fumaça de uma tragada que navegava entre a traquéia e o esôfago, lembrando-se do calamitoso destino da banheira da delegacia, convertida em urinol dos patrulheiros. Pobre dona Magnólia, pobre banheira de patas de dragão! Quando conseguiu desengasgar, prosseguiu a leitura:

“Outro dia mesmo, eu li que vão transformar a Chácara do Nicolau Von Schilgen, na Praia Comprida, uma das mais tradicionais residências do Novo Arrabalde, criado pelo Dr. Saturnino de Brito (ele freqüentou a casa de papai, na ladeira São Bento), num paliteiro de prédios gigantescos. Veja que absurdo, seu menino! E esta vergonha mereceu o aprove-se das nossas autoridades e vereadores só porque prometeram fazer ali um parque comunitário. Não bastam as praças que já existem em frente da chácara? Para mim, essa história de parque comunitário (no meu tempo chamava-se passeio público), não passa de uma potoca, uma potocona de boca cheia. Assim: POC!

Se papai fosse vivo diria, ‘Nolinha (era como ele me chamava), aí tem dente de coelho!’ Ou será que eu estou exagerando, seu menino? Conversei sobre este assunto com o Robertinho, mas Robertinho, conforme você viu quando ele foi na sua delegacia, é aquele tipo acomodado e manso que chega a dar gastura (nisso saiu ao meu falecido marido), que se limitou a dizer, ‘não se mete nisso, mãezinha’. Como não me meter, Robertinho, se não tenho sangue de barata?

Se eu tivesse dez anos a menos, seu Pedrinho (hoje estou indo para os 87, mas não diga a ninguém), juro que no dia em que fossem entrar na Chácara Von Schilgen para acabar com ela, eu ia ficar em frente do portão lá embaixo, à sombra daquelas mangueiras verdoengas, e teriam de passar por cima do meu cadáver, estão pensando o quê? O senhor iria comigo, seu menino?”

Antes que Pedro tivesse tempo de responder caiu-lhe sob os olhos o PS2: “Não quero terminar esta despretensiosa cartinha sem dizer que continuo esperando que o senhor, seu Pedrinho, me convoque para ir na delegacia para dar uns bolos de palmatória naqueles dois escritores capixabas que fizeram o elogio da borrada (perdoe-me a má palavra) que, segundo eles, Noel Rosa depositou na praça da Independência. Quando vou ter a satisfação de soltar os bolos da minha querida sebenta nas mãos desses dois desaforados? Lembre-se, seu amanuense, que promessa é dívida, e o senhor me prometeu que eu daria esse castigo, já faz algum tempo. Novamente, da sua admiradora, Magnólia Louzada.”

Pedro terminou a leitura da carta, com seus PSs pendurados como línguas de trapo e contemplou a guimba que havia atirado dentro do cinzeiro, quando chegou em sua sala, esforçando-se para estabelecer a correta relação entre o acerto do arremesso e a correspondência que acabara de ler. Um arremesso perfeito, um prenúncio de dia promissor — como enquadrar a carta de Dona Magnólia Louzada nesse bom augúrio que inaugurara sua manhã de “amanuense” de delegacia?

Não sabendo matar a charada, recomendou a Lenilda, que limpava com uma flanela desbotada a mesinha da Olivetti: “Não tira as cinzas do cinzeiro, minha amiga, que eu vou resolver o que fazer com esta correspondência,” e mostrou à faxineira a carta que ainda mantinha na mão.

“O que que as cinzas têm a ver com a carta?” perguntou Lenilda com cara de Lenilda.

“É o que eu estou querendo resolver,” respondeu Pedro com cara de Pedro. “E sabe de mais? Vou transferir o problema a quem de direito, no site da Estação Capixaba. Eles que resolvam a questão.”

“O senhor vai mandar as cinzas com a carta?” admirou-se Lenilda com a mesma cara de antes.

“Não, minha cara, vou mandar só a carta,” replicou o escrivão.

Após o quê, depositou no cinzeiro, com a forma de panela de barro, junto da guimba do competente arremesso da chegada, os despojos do segundo cigarro que fumara enquanto lera a carta de uma velha e indômita senhora.

Quando chegou em casa, naquela noite mesmo, escaneou a correspondência de D. Magnólia, a quem o pai chamava de Nolinha, e a remeteu por e-mail para o endereço estacaocapixaba.es@gmail.com.

“A bola está com vocês”, pensou Pedro. E teve a sensação de que, mais uma vez, acertara em cheio no cinzeirinho de artesanato.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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