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Vingança de Delegado ou quer mais, pede

Quando o delegado Digital chegou à delegacia da Chapot Presvot, 272, deu com Dimas à sua espera. Dimas era o barbeiro de Digital desde que este servira o Exército.

“Oi, amigão! Venha para o meu gabinete.”

Em seguida, chamou o escrivão. Logo que Pedro entrou, Digital disse para Dimas: “O que você tiver de falar, fala na frente dele, que é nosso escrivão. Assim facilita o registro da queixa, se for o caso.” E, para desfazer qualquer constrangimento do amigão, acrescentou, num acorde desnecessário: “Pedro é da casa.”

Dimas simulou um ar de naturalidade e começou a vender seu peixe.

“Bem, Digital, nesses últimos meses eu tenho carregado uma cruz muito pesada. Minha mulher, a Dulce, tem mais de 100 quilos, é diabética e está com a doença de São Guido. Me dá uma trabalheira do Cão, e ainda me deixa na pior, na parte sexual. Não sou nenhum garanhão, mas ainda tenho as minhas carências.”

“Quem não tem-las?” apoiou Digital.

“Por causa disso, depois de lutar contra minha timidez, porque aos 59 ainda sou um tímido com as mulheres, resolvi procurar uma profissional, dessas que botam anúncios nos jornais,” prosseguiu Dimas.

“Uma decisão corajosa,” interveio Pedro, pela primeira vez.

“Você nem imagina quanto, meu amigo!”

“E aí?” indagou o delegado. “Vai falando que eu estou ouvindo,” disse ele, enquanto tomava água num bebedouro perto da sua mesa, retornando à cadeira com os bigodes molhados.

“Aí já foi difícil a escolha. Eu peguei as páginas dos classificados, li e reli os anúncios para achar quem me interessasse. A candidata mais ao meu gosto, que este negócio de gatinha não é comigo, tinha 27 anos. O anúncio está aqui,” disse Dimas, entregando a Digital um recorte dos classificados.

“Boa escolha,” proclamou o delegado, depois de ler o papelucho que passou a Pedro.

“Posso acender um cigarro?” perguntou o escrivão, olhando o delegado por cima dos óculos.

“Pode e me dá um desses mata-ratos,” autorizou Digital. Pedro ofereceu um também a Dimas, que recusou.

“Mas, por favor, leia o anúncio,” pediu o barbeiro.

O escrivão esticou a fumaça da tragada em direção à janela e leu:

Flor dos Trópicos — morena jambo, minhon, olhos verdes, 25a, seios durinhos, sem silicone, coxas gros., cab. long., bb arrebitado, marquinha de biquíni, discreta, preferência por homem casado, folgosa, telefone…

“Apesar do folgosa parece bem convidativa,” concordou Pedro, devolvendo o recorte ao seu dono.

“E não é folgosa mesmo?” indagou o delegado.

Pedro encheu os pulmões de fumaça para não polemizar com Digital.

“Posso continuar?” perguntou Dimas.

“Vai, amigão,” estimulou-o Digital. “Já sei que sacastes um alô para a Tropical.”

“Liguei e me informei de tudo.”

“O serviço era em domicílio ou em motel?” forçou Digital.

“No apartamento dela, um quarto-e-sala na Rua Zilda Andrade. Sabe onde é?”

“Claro que sei, pô! Eu conheço Vitória como a palma da minha mão. É no Bairro de Lourdes. Começa nesse bairro e vai até Jucutuquara, ou vince-versa. Confere, Pedro?”

“Confere, chefe.”

“Não me chame de chefe. Me chame de Digital, de doutor, de doutor Digital, de delegado, mas não me chame de chefe. Chefe é de índio, e você não é índio, embora seje do interior. Já lhe disse isso várias vezes.” Depois, voltando-se para Dimas: “O que mais a florzinha tropical lhe disse?”

“As condições do pagamento.”

“Salgadas?” insistiu Digital.

“Até que nem. Ela cobrava cinqüenta reais por uma hora; trinta por meia hora, e quinze por uma rapidinha.”

“Como é a rapidinha?” foi a vez de Pedro perguntar em meio a uma golfada de fumaça.

“Vou repetir o que ela disse: é sem tirar os panos, sentado numa cadeira da sala.”

“Qual você escolheu?” quis saber Digital, espreitando o amigo.

“Marquei a de uma hora. Não que eu quisesse ficar esse tempo todo com a mulher. O que eu queria era poder me ambientar melhor.”

“E você foi?” duvidou o Delegado.

“Fui, Digital. Era um apartamento num prédio de três andares, sem elevador, num local discreto. A gente chega, fala pelo interfone, sobe para o primeiro andar, aonde fica o apartamento. A garota vem atender na porta, sai para o corredor, dá uma rodadinha e pergunta: ‘Gostou da boneca?’ Depois avisa: ‘Se não gostou, não precisa entrar.'”

“E a boneca correspondia ao anúncio?” indagou Pedro, baforando mais fumaça para o alto.

“Correspondia.”

“Deu pra ver tudo só naquela rodadinha?” interrogou Digital desafogando uma risada.

“Foi uma visão geral,” esclareceu Dimas. “Ela estava de blusinha transparente e sem calcinha por baixo da saia. Quando rodou, mostrou tudo.”

“Coxas grossas, bumbum arrebitado e marquinha de biquíni?” recitou Digital, que havia decorado o anúncio.

“Deu pra ver sim…” confirmou Dimas.

“Foi uma visão giroscópica, delegado,” definiu Pedro, zombando da curiosidade do chefe e recebendo deste um olhar de bombardeiro.

“Quero mais detalhes,” exigiu o delegado.

“Bem, aí eu entrei na sala e vi o cara,” continuou Dimas.

“Que cara?” agitou-se Digital.

“O cafetão da mulher, um negão de costas largas, sem camisa, enfiado numa sunga curtinha, vendo televisão. Aí Flor dos Trópicos me disse, ao notar minha surpresa: ‘Não precisa ficar preocupado. Ele é o meu cafete’. E me puxou para o quarto, batendo a porta da sala.”

“Ou seja, levou você para o campo de batalha,” vibrou o delegado.

“Você pode avaliar, Digital, o meu acanhamento. Se eu já tinha reservas pelo que ia fazer, aquela situação aumentou minha falta de liberdade.”

“Não vai dizer que você broxou,” antecipou-se Digital, às gargalhadas.

“Estive perto, mas consegui me recuperar. O pior, porém, é que quando estava iniciando a transa o cafetão entrou no quarto, abriu a porta do armário, tirou do cabide uma calça branca bem passada, e saiu com a maior naturalidade do mundo.”

“Aí você pifou,” disse Pedro.

“E não era pra menos?” justificou-se Dimas.

“Ficou nisso?” quis saber Digital.

“Não. Com muito esforço Flor dos Trópicos conseguiu me esquentar de novo e comecei a funcionar. Só que o cara voltou ao quarto para pegar um par de sapatos brancos embaixo da cama. Então eu vi que não dava mais. Se aquilo era combinado ou não, eu não sei, mas não dava mais pra mim. Quando ele saiu, como se não tivesse visto nada, eu disse, ‘desisto’! Tudo bem que ele seja seu cafete, mas até hoje eu só sei transar a dois. E me levantei para ir embora.”

“E ela?” indagou o delegado, divertindo-se com a situação vivida pelo amigo.

“Primeiro, ela saiu da cama e vestiu a roupa. Depois, disse com a cara mais lavada do mundo: ‘Tio, se você quer ir embora, pode ir. Mas tem que me pagar.’ Então eu me alterei: ‘Por que pagar se você não prestou o serviço combinado?'”

‘Não prestei porque você recolheu a tesão,’ respondeu a filha da puta. “E acho bom não criar caso, senão vou ter de chamar o Eduardo’, ameaçou, referindo-se ao cafetão.”

“O resultado é que você pagou,” concluiu Pedro.

“É o óbvio ambulante que ele pagou,” socorreu Digital ao amigo.

“Não é óbvio ambulante, delegado, é óbvio ululante,” corrigiu Pedro sem se conter.

“Pícolas, Pedro, eu estou citando Nelson Gonçalves.”

“Não é Nelson Gonçalves, é Nelson Rodrigues, delegado,” rebateu o escrivão.

“Foi o que eu quis dizer.”

“Mas pagou ou não pagou?” voltou Pedro a perguntar.

“Paguei para não ter problemas,” confirmou Dimas. “Mas agora quero dar uma lição naqueles sacanas. Não vou dar queixa por escrito, mas se você puder fazer alguma coisa por mim, Digital, eu lhe ficaria muito grato, em nome de nossa amizade.”

“Deixa comigo, amigão! Vai pra sua barbearia, e aguarde notícias,” comprometeu-se o delegado.

Quando Dimas saiu, Digital virou-se para Pedro: “Agora o caso está nas minhas mãos,” e exibiu as garras abertas onde um anel com um rubi de olho sádico protuberava no anular da mão direita. “Se alguém me ligar, diz pra telefonar depois. Se for o deputado Ribeirinho, eu ligo pra ele na volta. E chame a viatura que eu vou sair!”

“Delegado, vê lá o que você vai aprontar!” alertou Pedro, vendo Digital caminhar às pressas em direção ao carro de polícia.

“Deixa comigo, Pedro, deixa comigo! Lembre-se que meu signo é Touro, e quem nasce neste signo é tourino.”

Pedro não se animou a corrigir o delegado, e enfurnou-se em sua sala. Passadas duas horas, Digital retornou eufórico. Chamou Pedro ao seu gabinete, consultou uma mini-agenda personalizada, discou um número e disse para o escrivão. “Vai ouvindo, só, companheiro!”

“Alhou, Dimas? É Digital. Considere-se vingado! Acabo de chegar da Zilda Andrade, onde dei uma lição naquela filha da puta. Sorte dela é que o cafetão não estava lá, senão sentava-lhe uma porrada de mandíbula fechada…”

“Mandíbula fechada?” murmurou Pedro sobre o ombro direito de Digital. Este explicou a expressão desfechando no ar um murro de punho fechado, sem parar de falar ao telefone. “Me apresentei como delegado, arrastei a putinha pra cima da cama, dei três seguidas, não paguei um tostão pois estava a serviço e jobi is jobi, não é assim que os americanos falam? Agora vem o melhor da festa: em sua honra, amigão, foi cabelo, barba e bigode! Ha, ha, ha, cabelo, barba e bigode…!”

E dirigindo-se a Pedro, enquanto cobria o fone com a mão: “A sacaninha tem fulgor uterino…”

“Fulgor uterino, Digital?” sussurrou Pedro sobre o ombro esquerdo do delegado.

“Ela é folgosa mesmo, amigão,” confirmou Digital, o fone ainda coberto pela “mandíbula”, onde o rubi do anel reverberava um sadismo do tamanho de uma cereja.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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