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Introdução à obra Cartas selecionadas

Luiz Guilherme Santos Neves

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Interventor federal no Espírito Santo nomeado por Getúlio Vargas (1943-1945), senador da República pelo voto popular (1947-1950) e, finalmente, consagrado nas urnas governador para o quatriênio 1951-1955, Jones dedicou-se, afincadamente, ao serviço de sua terra natal. Nesta doação à causa pública consumiu cerca de doze anos de sua cinquentenária vida ativa cujas origens recuam à velha Drogaria Popular, no ano de 1922 (por isto se dizia boticário, de profissão). Daí até o seu falecimento, em 20 de dezembro de 1973, serão raros os seus períodos de vacância e ócio.

Ao longo dessa produtiva existência, desenvolverá o hábito de cartear-se, acabando por se transformar em epistológrafo contumaz. Mesmo sob o peso dos afazeres públicos que o absorviam intensamente, sobretudo quando governador do Estado, timbrava em manter atualizada a correspondência particular endereçada a amigos e correligionários políticos, conterrâneos e familiares.

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Na seleção ora editada algumas supressões foram feitas, que maiores proveitos não ofereciam à divulgação. No mais, manteve-se íntegro o texto das cartas dentro dos propósitos que presidiram sua publicação.

O primeiro deles visa confirmar o espírito cívico de Jones dos Santos Neves, sua ferrenha honestidade, seu desprendimento e lisura no trato da coisa pública, virtudes que se rarefazem presentemente.

O extremado amor ao Espírito Santo, num apego de afeição que beirava o obsessivo, fez de Jones um empreendedor, a perseguir alvos grandiosos que antepunha como balizas a serem alcançadas e vencidas, fixadas como metas de governo.

Ao retornar às atividades privadas depois de virada, com dedos úmidos de gratificante suor, a página de sua plena vida pública, preservou Jones a indormida preocupação com o futuro e os destinos de seu Estado. As cartas dão mostra dessa preocupação.

E impossível seria se assim não fosse, tratando-se de quem, com missionária consciência e compulsivo sentimento do Dever, ocupou, desambiciosamente, os sumos cargos que a cidadania política pode reservar a um capixaba em relação ao Estado natal.

Neste superior exercício de cidadania, numerosos foram os dissabores, os “cilícios” e “percalços do poder”, como costumava definir em discursos e cartas.

A essas contrariedades respondeu com a realização de obra na qual sobressai, como marca digital, o binômio visão e empreendimento, assinalando-lhe a administração, numa época em que governar não consistia em cunhar slogans publicitários e logotipos personalizados.

Com efeito, e também isto ressuma da correspondência aqui divulgada, se se pode condensar numa fórmula verbal a ação governamental de Jones, esta, por certo, contém-se na expressão visão e empreendimento.

Não a visão meramente prospectiva, capaz de perlustrar o horizonte, contemplativamente, vaticinando o futuro como o vidente que, antecipando-se ao tempo, predissesse: vai ser assim. Em seguida, formulada a profecia, encerrada estava a missão oracular.

O dom visionário de Jones — e se está aplicando a expressão no ajustado sentido de quem prevê realisticamente e não como estático prisioneiro do premonitório — impingia nele a qualidade do planejador voltado para o futuro. Dotado de espírito de “ordem e método”, como ele próprio reconhecia, o planejamento se lhe tornava fundamental como condição básica para a ação empreendedora.

Esta maneira de ser vai repontar ao longo de sua vida de administrador, notadamente no quatriênio governamental. Ao assumir o governo do Estado, em 31 de janeiro de 1951, quando planejar administração soava como pioneirismo, dirá perante a Assembléia Legislativa: “Impõe-se o abandono das fórmulas românticas de uma direção sem objetivos nem bússola, pelo roteiro seguro da planificação realística.”

Estava aí, neste enunciado preciso e racional, o embrião do Plano de Valorização Econômica que se consubstanciaria na Lei n. 527, de 2 de outubro de 1951. Plano que, por si só, já era meta que se traçava naquele mesmo ato solene de compromisso perante a Assembléia Legislativa Estadual: “A tarefa administrativa inicial consistirá, pois, na estruturação de um planejamento em que figurem os objetivos essenciais ainda não colimados, pela atualização do primitivo esquema [referia-se à fase da interventoria] e pelo acréscimo de outras realizações imprescindíveis à conquista de nossa emancipação econômica e social.”

Vale ressaltar, baseando-se nos dados do IBGE referentes ao censo de 1950, que o Espírito Santo tinha, nessa ocasião, pouco mais de 860 mil habitantes, o que equivale, aproximadamente, à atual população da Grande Vitória. A instrumentalização empresarial da economia estadual repousava, segundo o mesmo censo, em 44.170 estabelecimentos agrícolas, 4.772 comerciais e 1.951 industriais.

O Plano de Valorização Econômica surge, pois, como indispensável proposta de prioridades, paradoxalmente tardias e promissoras, para um Espírito Santo carente de infra-estrutura desenvolvimentista: eletrificação, obras portuárias, fomento à produção agrícola e plano rodoviário.

Ao nuclearizar essas metas, o Plano o faz em função do nível de grandeza das obras a serem executadas, preconizando-as como áreas prioritárias para concentração de esforços e recursos. Mas o governo Jones não se adstringiria a este núcleo de planejamento, tendo dele extravasado em desdobramentos outros. Ampliações que, com igual vigor, atingiram, no quatriênio 51-55, os setores da Saúde Pública, da Educação e do Bem-estar Social.

Para o tópico presentemente em análise nesta Introdução, ou seja, o do planejamento bem articulado e direcionado para a demanda futura das reais necessidades do Espírito Santo como condição de progresso e expansão, o Plano espelha a capacidade de visão de Jones. A execução dele, trilhada de forma incansável e diuturna, num acompanhamento permanente que cobria todos os campos da administração, traduz o seu espírito empreendedor e dinâmico. Dinamismo que faz de Jones um trabalhador implacável, torturado, inclusive, pelos limites do tempo disponível para a realização das metas de governo.

Em carta dirigida a José Pacheco Pimenta, de 9 de julho de 1951 — três meses antes da Assembléia Legislativa aprovar o Plano de Valorização —, a ânsia de realizações que obceca Jones está assim relatada: “Pretendo realizar um trabalho sério em nosso Estado, nesse como em outros setores [reportava-se ao setor agrícola]. Anexo encontrará o prezado conterrâneo um exemplar do Plano de Valorização Econômica que instituí e já pus em marcha. Os setores de eletrificação, rodovias e obras portuárias já estão em pleno desenvolvimento, apesar de não estar a lei sancionada” (grifou-se). Eram passados, então, apenas cinco meses desde sua posse.

O segundo propósito que norteou a edição destas Cartas foi o de colocar à disposição dos leitores um documentário epistolar capaz de permitir dados e subsídios para a melhor compreensão e o mais exato acompanhamento da trajetória biográfica de um homem público capixaba que se situa, como poucos em nossa história, na verdadeira posição de estadista.

Pretende-se ainda que esta coletânea se preste para contribuir ao esclarecimento de um ou outro episódio que se insira no âmbito de nossa história político-partidária que, por sua natureza, constitui sementeira propícia para as mais díspares e personalísticas versões, segundo angularidades prismático-interpretativas sujeitas aos inevitáveis passionalismos individuais.

Com a presente publicação almeja-se, também, começar a preencher o espaço vazio da literatura capixaba referente à literatura epistolar de que, no Brasil, são exemplos citáveis, dentre outras, as correspondências de Capistrano de Abreu, de Mário de Andrade, de Monteiro Lobato e outros mais.

Mas, acima de tudo, como propósito maior, a divulgação das Cartas busca apresentar o signatário delas em sua intimidade coloquial, corriqueira e cotidiana, no trato com amigos e familiares, no convívio com os que lhe eram caros, tendo, como qualquer pessoa, hábitos, gostos e desvelos, alegrias e pesares, certezas e incertezas, derrotas e vitórias. Um homem rigoroso consigo próprio, submisso ao cumprimento do que considerava seu dever de cidadão espírito-santense e que, talvez, a muitos possa ter equivocadamente parecido e ainda pareça no distanciamento do tempo formal, vaidoso, inacessível e ambicioso. Um homem para quem o princípio de lealdade se revestia de postulações sagradas, como dá mostra o texto da carta, em defesa do governador Carlos Lindenberg, dirigida a José Scardini, em 14 de setembro de 1950, ou o episódio do voto contrário dado, no Senado Federal, à consagração, como feriado nacional, do dia 29 de outubro, data da deposição de Getúlio Vargas (Carta a Carlos Lindenberg, de 29/10/1948).

Um homem com a virtude da auto-análise, predispondo-se a revisionar atitudes e conceitos, sempre pronto a fazer justiça a quem a merecia: “Concordo, perfeitamente, que me faltava, ao assumir a interventoria, ‘essa experiência mais concreta das coisas e dos homens na vida pública e até mesmo esse sofrimento ante as injustiças, os desentendimentos, as incompreensões que a vida pública semeia’. Mas, mesmo assim, eu me dou por bem pago, porque a verdade é que o político improvisado de então, se não acertou com alguns homens, teve, no entanto, a ventura de formar ao seu lado uma equipe de capixabas fiéis e dignos…” (Carta a Xenócrates Calmon, de 5/11/50).

Um homem para quem o exercício da função pública, além de sacrifícios pessoais, impunha postura respeitável e condigna: “Não fui assim, meu querido amigo, nem poderia ter sido, um governante popular. Governo é coisa séria que diz respeito direto com o bem-estar e o destino da coletividade. Não se pode exercê-lo sem compenetração e sobriedade, discrição e respeito, severa compostura e alta dignidade”. (Carta a Edgard Feitosa, de 19/6/56).

Um homem com a capacidade de rever suas atitudes e de submetê-las ao crivo da ironia sem, todavia, descair para a complacência de si mesmo. Da malsucedida experiência de retorno à vida pública como candidato ao governo do Estado, em 1962, escreve a Álvaro Castello, em 30/11/62: “Não podia imaginar que partisse, novamente, a combater moinhos de vento, em defesa de uma vaga e esquecida dulcineia”, para, mais adiante, num exorcismo confessional, deixar escapar este impensável mea-culpa: “Por outro lado, havia, no fundo do coração, o desejo ardente de ir à forra para levar a um amigo, no além, uma retardada mensagem de reparação…”

Se a edição das Cartas lograr atingir a revelação desta outra face da pessoa humana de Jones dos Santos Neves, desconhecida do grande público, ter-se-á, só por isso — o que é muitíssimo —, atingido o objetivo deste livro, com justificados motivos de satisfação.

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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