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Os barões do Itapemirim

Quem viajasse pela Estrada de Ferro Itapemirim poderia, ainda, até bem pouco tempo, observar perto da linha que margeava o rio, na parada de Muqui, em altiplano, ruínas quase extintas do que foi, outrora, a sede da fazenda Santo Antônio do Muqui, um palacete “construído no feitio dos castelos medievais”, que servira de residência ao Barão de Itapemirim: Joaquim Marcelino Silva Lima. Representou ele a maior fortuna do vale: foi proprietário de diversas fazendas e de algumas centenas de escravos e os seus domínios estendiam por muitas léguas no sul do Estado, possuindo, ainda, a seu serviço, dois navios costeiros.

Se não ficou nenhum desenho ou fotografia do palacete, o historiador itapemirinense Antônio Marins, em fiel descrição, preservou-nos a ideia da sua passada grandeza: “…Escadarias de mármore com leões à entrada e torreões nos cantos. O interior era luxuoso e brunido, contendo biblioteca, salões de bilhar, sala d’armas e alcovas primorosas com leitos marchetados. Os salões eram adornados de quadros e grandes retratos de antepassados. As baixelas de prata, pesadas, brilhavam na vasta copa severamente decorada e sombria. Como nos castelos feudais, também tinha os seus desvãos meio subterrâneos e capela magnífica”.

O Barão de Tschudi, que se hospedou nesse palacete, em 1860, escreveu: “… Raras vezes vi no Brasil casas de fazenda em estilo tão soberbo e de tão bom gosto. O seu interior, porém, não corresponde ao mesmo aspecto de fora. Sente-se a má divisão dos quartos, bem como a falta de comodidade e do asseio como as moradias europeias em semelhante estilo. A capela da fazenda, consagrada ao seu padroeiro, é coberta de ouropéis, segundo os costumes do país”.

O Barão de Itapemirim ter-se-ia queixado, ao visitante, da situação de crise, dizendo que a produção dos canaviais, onde empregava cento e vinte escravos, naquele ano atingia apenas oitenta caixas, a cinqüenta arrobas, a metade da produção dos primeiros anos.

Em seu poemeto descritivo da Província, descreveu o Padre Antunes de Sequeira, em 1884:

“Lembra o Muqui tempos feudais
Morgados de luxuosa investidura,
No pórtico, saguão, nos seus umbrais
Arremeda essa antiga arquitetura
Ali distinguem-se entre os mortais
O nobre Barão, que fez figura
Joaquim Marcelino Silva Lima
Cuja descendência ainda prima.”

Notícia de que o palacete permanecia de pé, em 1879, temos mencionada na História de Daemon, que o relacionou como um dos principais edifícios existentes na Província.

Joaquim Marcelino era natural de São Paulo, donde veio menino, para o Espírito Santo, em 1802, na companhia do seu pai e homônimo, músico tocador de rabecão. Morou, no princípio, em Benevente, em cuja região formou o engenho de açúcar das Três Barras. Casou-se com D. Francisca do Amaral e Silva, de cujo consórcio teve um casal de filhos. Aos 17 anos, ele já servia à Província, como Tenente de Milícias.

Enviuvando, casou-se em segundas núpcias com D. Leocádia Tavares da Silva, indo, então, por volta de 1827, residir no Itapemirim.

Consta que em 1820 já o Tenente de Milícias Joaquim Marcelino possuía terras na parte baixa de Cachoeiro, lado sul (Bahia-e-Minas).

Do seu segundo consórcio, teve quatro filhas e quatro filhos, que se tornaram troncos de importantes famílias capixabas.

Na Província, ele ocupou diversos cargos de relevância: foi vereador; deputado provincial; por oito vezes (período de 1843 a 1858), ocupou a vice-presidência da Província. Além de consertar estradas, construiu, às suas expensas, duas pontes sobre os rios Una e Parati, na estrada de Itapemirim a Vitória, e doou-as às municipalidades; contribuiu, com dois contos e quatrocentos mil réis (o preço de quatro escravos), para a construção da Igreja Matriz da Vila de Itapemirim. Distinguiu-se na repressão aos índios que hostilizavam as fazendas e povoados e deu conta de sua atividade como “Capitão-do-Mato” quando, em 1843, ocupando interinamente a Presidência da Província, informou ao Ministro do Império: “…Possuído do maior prazer, vou participar a V. Exa., para que chegue a conhecimento de S. M. o Imperador, que hoje mesmo veio de bater e destroçar quilombos uma guerrilha que, em conseqüência das ordens existentes, a despeito de dificuldades, consegui aprontar e fiz marchar em tão interessante diligência no dia 12 do corrente mês, a qual arrasou completamente um quilombo de 18 casas, deixando mortos alguns negros, que resistiram, e conduzindo todos que puderam prender. Tenho notícia de que existem mais quilombos, que pretendo tenham a mesma sorte, e para isso não me pouparei aos maiores sacrifícios empregando todos os meios que existirem ao meu alcance por quanto é esse o mais considerável beneficio que se pode fazer a esta Província.”

Por decreto de D. Pedro II, de 2 de julho de 1846, José Marcelino foi nomeado Diretor Geral dos Índios da Província, gozando das honras de Brigadeiro. Em apenso ao relatório do Presidente Leão Veloso (1859), ele informava: “…Quando se abriu a estrada para Minas, foi encontrada uma horda de Puris restante dos destroçados pelos Botocudos habitantes da margem sul do Rio Doce e temíveis por serem antropófagos. Os Botocudos, em contínua luta com os Puris, foram ganhando terreno e chegaram a lançar os Puris para a margem do rio Itabapoana. À vista de tantas barbaridades, necessário foi rebatê-los e grande mortandade sofreram; assim ficaram muito reduzidos e timoratos, regressaram para o rio Doce onde ainda hoje existe uma ou duas hordas que evitam comunicação com os civilizados.”

Esses Puris rechaçados acharam guarida no Quartel Barcelos (Estrada do Rubim) , onde se aldearam. Mas, como não se mostrassem satisfeitos, eles pediram ao Barão de Itapemirim transferência para as cabeceiras do rio Castelo, no que foram atendidos, em fins de 1858, estabelecendo-se no lugar de grandes derribadas de matas, distante quatro léguas da fazenda do Capitão José Vieira Machado, fundando o Aldeamento Imperial Afonsino (hoje Conceição do Castelo).

Em 1883, ainda existia, no Cachoeiro, em ruínas, o edifício público que serviu de residência ao diretor do Aldeamento Imperial Afonsino.

O Barão de Itapemirim era multo estimado e respeitado pelos seus correligionários — escreveu Tschudi — e odiado e temido pelos adversários. “Tive ocasião de ouvir a opinião desses — ajuntou — e segundo me disseram, ele devia ser um verdadeiro monstro. Pessoas imparciais gabavam sua generosidade, sua extrema dedicação aos correligionários políticos e a sua grande hospitalidade. Quando o conheci, ele já estava na casa dos oitenta, rijo e forte, com fisionomia muito inteligente e um gênio humorístico que às vezes descambava para o sarcasmo.”

O melhor retrato desse latifundiário do sul capixaba é ainda o historiador Antônio Marins que nos fornece em seu livro, seja na pose fotográfica, corpo inteiro, sentado, segurando um livro, com ar de intelectual, e ostentando ao peito duas condecorações: Comendador da Ordem de Cristo e Oficial da Ordem da Rosa, ou seja, ainda, na apresentação da genealogia ou nobiliarquia. Analisando o reverso, não buscarei depoimento dos Bittencourts, vizinhos do Barão, na fazenda Areia, seus ferrenhos adversários “que lhe não permitiam sequer, ganhar uma eleição no seu lugar, o Itapemirim”. Seu retrato descrito pelo Presidente da Província, Felipe José Pereira Leal, em carta de fevereiro de 1850 a um primo (documento inédito da Biblioteca do Museu Imperial, se fosse exposto ao Imperador, talvez fizesse malograr o cobiçado título de Barão, conferido em 9 de dezembro de 1854: “…Chegando a esta Província, encontrei em sua administração o celebérrimo Barão de Itapemirim, que por desgraça e vergonha da nossa terra, acaba de ilaquear a boa-fé do nosso adorado Soberano e de obter as honras de grandeza, e o porto desta capital entulhado de navios que sob as janelas do Palácio do Governo, escandalosamente se preparavam para o tráfico de escravos”.

A longa carta, verdadeira catilinária, estende-se por folhas, numa letra miúda, em alguns trechos de difícil leitura. Está cheia de graves acusações ao Barão, “mandante de crimes”, traficante de negros, dono de senzalas. Refere-se a uma viagem do Barão a Guarapari, para levar 13 contos de réis como pagamento da carga de um navio negreiro, e às suas providências para “arranjar desembarques de negros em sua fazenda, reputada como um dos lazaretos da Província”.

O desabafo extravasa bílis e faz graves revelações para a história da escravidão no Espírito Santo: “…Saiba o meu primo que eu por certo não posso, não devo nem quero merecer a simpatia de um traficante de negros tão infame como o Barão, que entrando na Presidência desta Província por vezes tem feito do Palácio do Governo armazém de negros escravos. Esses infelizes têm sido expostos aos exames dos compradores nas salas do Palácio Presidencial e o Vice-Presidente Barão de Itapemirim já saiu do Palácio precedido de uma armação ou grande lote de negros que foi vendendo até Itapemirim, onde acabou de os vender para então regressar à Capital donde todos os dias se lhe mandava expediente do Governo para ser assinado pela sua mão que recebia o preço dos negros!!!”

A bruma do passado cobriu essas lembranças e se do vetusto palacete da fazenda Santo Antônio do Muqui só nos restam algumas pedras dissimuladas pelo vassoural e capim do pasto, a numerosa prole do Barão de Itapemirim, filhos, netos e bisnetos, povoadores da região, soube honrar o título nobiliárquico.

Conta Tschudi que quando D. Pedro II visitou a Vila de Itapemirim (fevereiro de 1860), as famílias Silva Lima e Bittencourt, que lideravam os dois partidos então existentes, o Liberal e o Conservador, fizeram os maiores esforços para hospedarem o Monarca e que ele, inteirado da contenda, não querendo acirrar os ânimos, declinou dos oferecimentos. De sua comitiva, fazia parte o então Ministro do Império, Conselheiro João de Almeida Pereira, primo-irmão dos “Moços da Areia”.

Diz Antônio Marins que o Monarca deu preferência à hospedagem na fazenda da Areia, do Comendador João Nepomuceno Gomes Bittencourt e que o Barão, “ferido no seu orgulho”, não pôde resistir a tão duro golpe moral, baqueando para o túmulo com o seu ódio, poucos meses depois.

Quanto ao falecimento, é certo que ocorreu a 18 de dezembro de 1860, sendo o Barão de Itapemirim vitimado por fatal ataque de apoplexia, aos oitenta anos de idade. Mas, o que consta de verdadeiro na história, é que D. Pedro II, desembarcando na Vila de Itapemirim numa quarta-feira, 8 de fevereiro de 1860, às três e meia da tarde, foi hospedar-se na casa de sobrado que pertencia ao sogro do Barão, Capitão José Tavares de Brum.

A Baronesa de Itapemirim, D. Leocádia Silva Lima, viveu ainda mais vinte e cinco anos, quando, então, acompanhou o seu velho companheiro, conforme os desejos manifestos, no mesmo túmulo na capela da fazenda.

O herdeiro presuntivo do título, 2.º Barão de Itapemirim, homônimo do pai, foi o Coronel Joaquim Marcelino Silva Lima, Comandante da Guarda Nacional do Sul, deputado provincial e político influente do Partido Liberal, segundo notícia registrada em 22-11-1885, na folha O Constitucional, publicada na Vila de Itapemirim.

O título de 3.º Barão de Itapemirim teria sido ostentado pelo Dr. Joaquim Antônio de Oliveira Seabra (nascido em Campos, em 1-3-1829 e falecido na Corte a 23-11-1888). Era casado com D. Leocádia Seabra, filha do 1.º Barão. Bacharelou-se em Olinda. Foi proprietário da fazenda Morro Grande, onde residiu por muitos anos, transferindo-se para o Rio de Janeiro, atraído pelos negócios de uma firma de café. Teve quatro filhos: D. Maria Seabra Nogueira da Silva, esposa do Dr. Norberto Alves Nogueira da Silva; D. Leocádia Seabra Riso, esposa do Dr. Salvador Riso; D. Joaquina Seabra e Manoel Seabra de Oliveira.

O quarto Barão de Itapemirim teria sido o Dr. Luiz Siqueira Silva Lima, de quem Antônio Marins nos forneceu, além dos traços biográficos, um retrato a óleo, ainda conservado na Biblioteca de Maçonaria. Natural do Espírito Santo, onde nasceu a 10 de abril de 1844, na fazenda Santo Antônio do Muqui, era filho do segundo matrimônio do 1.º Barão de Itapemirim. Advogado, foi juiz de paz da freguesia do Alegre; juiz de direito da Comarca de Cachoeiro; deputado à Assembléia Provincial e senador federal pelo Espírito Santo. Muito tempo residiu na fazenda Bananal, de sua propriedade. Desposou D. Mariana Moreira Sales, filha do Coronel José Gomes Pinheiro, dono da fazenda São José. Conferiu-lhe o título de Barão o decreto de 25 de setembro de 1889.

“Homem de valor e energia — escreveu o seu retratista e biógrafo Marins — foi chefe político acatado e sinceramente estimado pelo seu trato lhano e caráter bondoso.”

Faleceu a 9 de novembro de 1916, no Rio de Janeiro, em pleno advento da República, à qual ele aderiu e prestou serviços, conformando-se em enfurnar na velha canastra o título nobiliárquico.

[In Crônicas de Cachoeiro. Rio de Janeiro: Gelsa, 1966. Reprodução autorizada pela família.]

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Levy Rocha nasceu em 14 de merco de 1916, em São Felipe, então distrito de São João do Muqui. Graduado em Farmácia, residiu em Cachoeiro de Itapemirim e no Rio de Janeiro, interessando pela história de seu Estado natal. Publicou vários livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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