Quando se abre a crônica pro ato II, nada mudou no cenário da praça do Canto. As luzes que não se apagaram continuam acesas. Estão lá, à mesa do canto, os mesmos quatro sócios do Clube das Terças-Feiras; está lá, à mesa próxima, o mesmo casal de meia-idade dando início a um jogo de biriba; está lá, à porta da joalheria, a moça de pulseira vermelha combinando com seu vestido vermelho. A Garibaldi, como personagem principal, cabe o primeiro movimento do segundo ato. É um movimento sereno, um simples folhear da revista Time à procura de alguma coisa mais com que dar prosseguimento à sua campanha difamatória contra o bom e velho Miles Davis. Com essa sinistra intenção folheia, folheia, folheia, até que:
— Com a devida vênia, queria mostrar isso aqui também pra vocês, “O século nas artes”. É um joguinho besta de cultura geral. Você tem de associar vinte e uma transcrições de Time a vinte e uma personalidades artísticas do século. A foto de Armstrong está aqui, e a transcrição que corresponde a ele é esta merda, que eu peço licença pra traduzir: “Ele tinha acento e ritmo perfeitos. Sua música, tanto tocada quanto cantada, tinha momentos tão gloriosos como uma viagem à lua e tão tristes como as gotas de sangue de um bandido de rua morrendo na sarjeta.” É uma tentativa de fazer uma frase de efeito poético, que acaba saindo pior que um peido bubônico.
Garibaldi ilustra sua crítica movendo a mão diante do nariz. Em seguida:
— Agora querem ver o que tem aqui sobre Charlie Parker?
— Lê aí, Garibaldi, — diz Fernando.
— Pois não tem nada aqui sobre Charlie Parker, — diz Garibaldi. — Nada. Nada. Nada. Mas sobre Miles Davis é claro que tem. Olha aqui a foto do indefectível fidaputa!
Com um dedo indicador e pontiagudo Garibaldi mostra, na página da revista, a foto de Miles Davis, que ali está tocando tranqüilamente seu trompete assurdinado. Aí vai e:
— E qual é a transcrição que se refere a ele? Vamos ver. Ah, está aqui: “Em 1948, quando todo mundo estava tentando tocar como Diz, o noneto deste artista estava depurando o som de alto-forno de Gillespie e transformando-o na clara chama de um bico de Bunsen.” A frase é ruim, mas, pior que ruim, confunde alhos com bugalhos e não faz neca de sentido. Vamos dissecá-la pra demoli-la.
Garibaldi dobra a revista ao meio e, com voz azedada:
— Em primeiro lugar, dizer que em 1948 “todo mundo estava tentando tocar como Diz” já é uma besteira. Os trompetistas vai ver estavam mesmo. Mas o que os músicos de jazz, sem distinção de instrumento, estavam tentando fazer nessa época era tocar bebop, ou seja, tentando tocar de acordo com as inovações, em 1948 já nem tão novas assim, melódicas, harmônicas e rítmicas injetadas no jazz por Dizzy Gillespie e Charlie Parker. Daí o autor da frase faz referência ao noneto que Miles Davis liderava na época, que fez as gravações que anos depois foram reunidas no disco Birth of the Cool. Todo mundo sabe que esse noneto, pra usar as palavras de John Ephland, estava tentando criar um jazz orquestral no contexto do bop: um big band bop que ao mesmo tempo fosse uma alternativa pras altas temperaturas do bop. Então o noneto tinha a ver com o bebop como um todo, é claro, e não especificamente com o trompete de Gillespie, como a frase sugere. Em suma, a frase teria sentido assim: “Em 1948, quando todos os trompetistas estavam tentando tocar como Diz, Miles Davis estava depurando o som de alto-forno de Gillespie e transformando-o na clara chama de um bico de Bunsen.” Ou assim: “Em 1948, quando todo mundo estava tentando tocar no estilo bop, resultado das experiências inovadoras de Charlie Parker e Dizzy Gillespie, o noneto de Miles Davis estava retocando esse estilo e transformando-o numa versão mais contida e mais suave.”
Garibaldi atira a revista sobre a mesa pra então:
— Essa frase canhestra só vem demonstrar que Time não passa de uma revistinha canhestra metida a besta. Mas isso não importa. O que importa é a escolha da referência. Donde me acho no direito de fazer duas perguntas. Primeira: por que Miles Davis é que está ali e não Charlie Parker? Miles Davis, é o que se pode adivinhar da leitura da citação, foi o criador do cool jazz, opinião que aliás eu contesto, mas não vem ao caso agora. Parker foi o criador do bebop, movimento muito mais revolucionário, denso e influente do que o cool jazz: o próprio cool jazz não passa de uma costela do bebop. Segunda pergunta: por que Miles Davis é que está ali e não Dizzy Gillespie? Todos os críticos, inclusive a cambada de tietes de Miles Davis, admitem que ele tinha uma técnica limitada, incompatível com as exigências do bebop. O próprio John Fordham admite que ele errava notas, tinha uma entonação deficiente e não se dava bem com os andamentos mais rápidos. Cannonball Adderley, que tocou no sexteto de Kind of Blue, disse que Miles Davis era um grande solista, embora não fosse um bom trompetista. Já Gillespie tinha uma técnica assombrosa, um dedilhado supersônico, uma facilidade enorme pra escalar os registros mais altos, inclusive alguns picos nunca dantes escalados. Mas não: os formadores de opinião da porra da Time escolhem Miles Davis como imagem do jazz e ainda por cima citam uma frase que induz o leigo a pensar que Dizzy Gillespie tocava feito um músico das cavernas e que Miles Davis foi quem aperfeiçoou e civilizou esse estilo troglodita dele. Isso é uma sacanagem. Meus amigos, não há termo de comparação entre o trompete de um e o trompete de outro. Você ouve um, depois ouve outro, parece que são instrumentos completamente diferentes. Gillespie toca trompete; Miles Davis toca trimpete. Gillespie é aberto, pra cima, cheio de júbilo, exuberante; até a surdina de Gillespie é uma surdina frenética. Já Miles Davis é fechado, pra baixo, melancólico até o cu fazer bico de Bunsen. Comparem as imagens de um e de outro. A de Gillespie mostra aquelas belas bochechas de sapo-boi, aquele trompete com o sino apontando pro céu. A de Miles Davis mostra aquele vulto encolhido, cabisbaixo que nem um morcego, com o trompete escarrando algumas notas tísicas no chão. E o que é, basicamente, um trompete? É o instrumento mais alegre do jazz, mais expansivo, mais altissonante. Cootie Williams fazia o trompete dar gargalhadas. Já o trompete de Miles Davis nunca riu. Miles Davis conseguiu transformar o trompete no seu próprio avesso: num instrumento triste, sombrio, estreito, franzino, mirrado, descarnado, macilento, baço, lúrido, cismático, macambúzio, inanimado, diminutivo e antitérmico. Num instrumento, enfim, coliquativo.
— Coliquativo? — diz João Luiz. — Que merda é essa?
— Coliquativo, segundo o Aurélio, — diz Garibaldi, — é o adjetivo referente aos estados mórbidos que parecem originar-se da fusão das partes sólidas e se acompanham de abatimento profundo. Uma diarréia às vezes é coliquativa. O trompete assurdinado de Miles Davis sempre é.
Garibaldi esquadrinha as unhas de uma mão, depois de outra: está feliz com sua diatribe contra o trompete de Miles Davis. Aí, pra comemorar, leva ao bico a xícara de chocolate, sopra uma, duas vezes, sorve um gole, faz uma careta e:
— Esta josta está fria! Me trouxeram um chocolate frio!
O que não o impede de beber outro gole, desta vez sem careta. Aí dá uma vasta mordida no pão de queijo e toma outro gole de chocolate. Aí começa a moer nos dentes, igual tal qual um dromedário, aquela pasta. Aí João Luiz aproveita pra:
— O que você disse, Garibaldi, está tudo muito certo, mais ou menos, mas veja bem. Como trompetista, você devia comparar o estilo e o modo de tocar de Miles Davis não com Dizzy Gillespie e sim com Chet Baker. Se bem que mal comparando, porque Chet Baker era melhor, tanto no fraseado como na execução e na improvisação.
Garibaldi não responde: continua mastigando e não responde. João Luiz:
— Não vai dizer nada não, Garibaldi?
— O que está em questão, — diz Garibaldi, — é a dicotomia Gillespie-Davis. É isso que está em questão inclusive na porra dessa revista. Quanto a comparar Miles Davis com Chet Baker, tanto faz seis como meia dúzia. Se eu respeito Chet Baker um pouco mais é porque ele gravou The Route e Jazz For Playboys com Art Pepper. Pelo menos nesses discos Chet Baker foi obrigado a tocar de verdade.
Garibaldi dá uma dentada grande-angular no pão de queijo. Fernando:
— Há pouco, Garibaldi, você disse uma coisa que me deixou curioso. Você disse que não acha que Miles Davis foi o criador do cool jazz.
— Claro que não foi, — exclama Garibaldi, de boca cheia. — Isso é uma falácia que eu pretendo demolir num dos tópicos do meu ensaio.
— Não dá pra você adiantar alguma coisa pra gente, Garibaldi? — pede Fernando.
— Tem certeza que quer ouvir? — diz Garibaldi, como se a revelação pudesse ser dolorosa pra ouvidos sensíveis.
— Claro, Garibaldi, — diz Fernando, impávido.
Aqui o narrador não pode deixar de mencionar a chegada de uma moça de vestido laranja, curto e justo, que chega e pára e pede, no quiosque da praça, um café.
— Bom, — diz Garibaldi. — Vocês viram, por aquela frase malfadada de Time, que as pessoas desinformadas ou mal-informadas, como o staff da revista, têm como certo que o cool jazz nasceu no final dos anos 40 com as gravações do noneto liderado por Miles Davis. Gravações que só em 1957, vejam bem, só em 1957, foram reunidas num lp e lançadas com o título maroto de Birth of the Cool.
Cadê aquela senhora que costumava atender no quiosque da praça, pergunta-se o narrador: estará em férias, estará aposentada? Pois quem agora comanda o quiosque é essa moça de feições um tanto que chinesas e coradas maçãs de rosto, o que, no cômputo final, tem até uma certa graça. Quem sabe não descende de uma família chim — Tchang ou Tcheng — que, desgarrada do Império do Meio no velho século XIX, tenha vindo parar em Rio Novo do Sul, aportuguesando o nome pra Oliveira?
— Agora, — diz Garibaldi, — vamos fazer um recuo no tempo a partir de 1949. Em 1947, segundo reconhece Luiz Orlando Carneiro, por sinal um dos tietes de carteirinha de Miles Davis, em 1947 Woody Herman já vinha adotando uma sonoridade cool na orquestra dele. Diferente de outros líderes de banda da época, Herman assimilou alguns procedimentos harmônicos do bebop e destilou-os nos arranjos da orquestra, pra criar, segundo a frase de Luiz Orlando, um som puro, fresco, despojado de efeitos. E quem eram os arranjadores da orquestra de Woody Herman nessa época? Ralph Burns e um tal de Milton Rajonsky, que usava o nome artístico de Shorty Rogers, que mais tarde fez carreira como um dos principais trompetistas e arranjadores do West Coast Jazz, uma escola coolíssima de jazz. E quem fazia parte da seção de palhetas da orquestra de Woody Herman nessa época? Serge Chaloff, Stan Getz, Zoot Sims e Al Cohn. Tirando Chaloff, que tocava mais pela cartilha bop, os outros fizeram carreira como saxofonistas cool, todos eles influenciados por quem?
— Por Lester Young, — responde João Luiz, afiado.
A moça chim aciona a máquina de café elétrica, e num instante, num passe de mágica, põe sobre o balcão uma xícara de café quente. A moça de vestido laranja paga o café. A moça chim dá algumas moedas de troco, depois tira de sob o balcão um caderno e ali registra, com um lápis metódico, a venda. A moça de vestido laranja traz a xícara de café pra uma mesa pra tomá-lo sentada. A moça chim se apóia ao balcão como se estivesse na varanda de sua casa e deita sobre a praça o seu ilegível olhar chinês.
— Exatamente, — diz Garibaldi. — Se a orquestra de Woody Herman, em 1947, dois anos antes do noneto de Miles Davis gravar uma só nota, já esbanjava um som cool de inspiração bop, Lester Young já tocava sax com sotaque cool lá por meados dos anos 30, como de fato tocou a vida inteira. Só que a história do cool não começa com Lester Young. Andei fazendo umas leituras pra escrever este ensaio, porque vocês sabem que eu não sou leviano nas minhas opiniões sobre jazz, gosto das minhas opiniões muito bem fundamentadas, pra não me tacharem de radical. Aí, pelo que li aqui e ali, inclusive no livro A história social do jazz, de Eric Hobsbawm, fiquei sabendo que nos anos 20, nos anos 20, vejam bem, já se tocava jazz num estilo cool. Dos músicos que tocavam nesse estilo os mais conhecidos eram Bix Beiderbecke e Frank Trumbauer, que Hobsbawm considera literalmente precursores do cool jazz. Ele até menciona um fato que também li em outras fontes: que o próprio Lester Young reconheceu a influência de Frank Trumbauer sobre o estilo dele. Outros músicos cool dessa época foram Red Nichols, Miff Mole, Joe Venuti e Eddie Lang. Hobsbawm diz que esses caras inspiraram os pequenos conjuntos cool dos anos 50 e descreve o estilo deles como uma espécie de jazz de câmara, com tons suaves, leves, bem-educados e elegantes, e bem pouco sentimento de blues.
A moça de vestido laranja trouxe seu café pra uma mesa próxima e escolheu a esmo uma cadeira e sentou-se com gosto e cruzou a perna esquerda sobre a direita. Não está de frente pro narrador, mas de lado, o que lhe permite, a ele narrador, discernir um band-aid cor de pele na pele da coxa esquerda.
— Agora, — diz Garibaldi, — vamos examinar o caso específico do famigerado noneto de cool jazz liderado por Miles Davis. Na segunda metade dos anos 40 tinha uma orquestra de grande sucesso em Nova York, a orquestra de Claude Thornhill, que era uma orquestra de dança, sem grandes ambições artísticas. Ocorre que nessa orquestra atuavam alguns músicos de jazz, como Gerry Mulligan, Lee Konitz e Gil Evans. Os arranjos da orquestra, feitos principalmente por Evans e Mulligan, tinham como características uma preferência por texturas estáticas, a ausência de vibrato e de registros mais altos, e o emprego de instrumentos geralmente associados à música clássica, como trompas e tubas, pra criar matizes de som bastante originais. Em suma, tudo aquilo que caracteriza o estilo cool.
Roland Barthes, em A câmara clara, refere-se ao que ele chama de punctum numa fotografia, aquele detalhe na imagem que capta instantaneamente a atenção do olhar de quem olha a foto. Na imagem da moça sentada à mesa próxima o punctum, vai ver, seria o band-aid estampado sobre a pele terracota da coxa plena à mostra.
— Esses músicos da orquestra de Claude Thornhill, — diz Garibaldi que, sentado de costas pra moça, nem sabe o que seus olhos estão perdendo, — viviam se reunindo no apartamento de Gil Evans pra bater papo e experimentar, na teoria e na prática, a adaptação da linguagem da orquestra ao jazz. Aí Miles Davis começou a freqüentar o grupo.
— Vindo de onde? — quer saber Fernando.
— Vindo do bop, — diz Garibaldi. — Miles Davis estava se sentindo pouco à vontade no âmbito do bop. Como disse Benny Green, o bop chegou pra provar que os andamentos impossíveis eram possíveis, e a gente já viu que uma das principais limitações técnicas de Miles Davis era justamente nos andamentos mais rápidos. Não dava pra ele competir com Dizzy Gillespie. Gillespie era um monstro no trompete.
— Vai comparar Gillespie com Miles Davis de novo? — se queixa João Luiz.
— Pô, João Luiz, não seja estraga-prazer, — diz Garibaldi. — Em 1946, quando Gillespie apresentou pela primeira vez a composição “Things To Come”, deixou todo mundo de boca aberta. Gunther Schuller, que estava lá, e viu, disse mais tarde que só Gillespie poderia ter concebido aquela composição, e só ele poderia ter tocado aquele solo de trompete naquela época. “Things To Come” foi uma revolução técnica na velocidade, na articulação, no ritmo, na sonoridade, em tudo que se referia à interpretação jazzística. Tocar daquele jeito, Schuller disse, estava além da capacidade de qualquer outro trompetista. Assim, com um Gillespie tocando fogo no paiol do jazz, o jeito era Miles Davis enfiar o trompete no saco e procurar outra freguesia. E me diz, que freguesia melhor pra ele do que o grupo de Gil Evans e Gerry Mulligan, que estava justamente tentando abaixar um pouco o facho do bop? Diga-se, a bem da verdade, que Miles Davis dinamizou o grupo, e começou a tomar uma série de iniciativas de caráter prático. Alugou salas pra ensaiar, recrutou outros músicos, marcou ensaios, cobrou presenças. Deu uma de secretária executiva do grupo. Foi ele também quem conseguiu, mais tarde, um contrato pro noneto tocar no Royal Roost, ali na Times Square, e quem convenceu os produtores da Capitol a gravar a banda. Por sinal, o público de jazz da época não deu a menor pelota pras apresentações ao vivo no Roost nem pros compactos das gravações, que foram um desastre comercial. Mas, de qualquer forma, Miles Davis foi, nesse grupo, uma espécie de pau-pra-toda-obra. Foi boré, gerente, empresário e líder. Também não tiro dele o crédito de ter dado a Mulligan o apelido Jeru, que aliás parece até coisa de veado. Portanto, em termos administrativos, não há dúvida: Miles Davis foi o general daquela banda. Mas em termos musicais, que é o que me parece que importa, já que se trata de um empreendimento musical, qual foi a participação dele naquele noneto?
A moça do band-aid na coxa acabou de tomar o seu café e agora acende um cigarro. Laranja era a cor do seu vestido; agora azul de seda. O narrador fecha os olhos, abre, fecha, abre, mas é isso aí: quem antes vestia laranja agora veste azul de seda. Como entender a ocorrência dessa metamorfose a não ser tomando umas três vodkas com limão ao som de uma música de Charles Mingus chamada “Orange Was the Color of Her Dress; Then Silk Blue”?
— No bebop, — Garibaldi continua, professoral, enchendo o saco, — que era por excelência música de combo, ou seja, de grupo pequeno, o ponto alto da música sempre foram os solos. Charlie Parker, com aquela urgência toda que era a marca registrada dele, nunca perdia tempo com arranjos. Tudo era feito na base do eu faço isso e você faz aquilo, porque o que ele queria mesmo, sendo um pássaro, era o vôo da improvisação. Já o noneto se concentrava nos arranjos, numa inversão da política musical do bebop. É fácil concluir, então, que num grupo como esse o verdadeiro mentor não é o solista, mas o arranjador. Aí é só fazer umas contas de aritmética que a gente identifica na hora o verdadeiro líder do noneto.
Tomado o seu café, fumado o seu cigarro, mudada de laranja pra azul a cor do seu vestido, a moça do band-aid na coxa encerra sua participação na crônica. Levanta e vai, com Deus, toda gostosa em seu azul de seda. Vai por onde foi a moça prematura deste texto, Márcia, a moça de março perdida em janeiro, que tinha flores de pele na calça jeans — só que vai pressurosa, sem perder tempo em olhar vitrines, como se de repente atrasada pra encontro com namorado ou pra consulta com terapeuta.
— Acontece, porém, — diz Garibaldi, — que quando se trata de Miles Davis qualquer informação exige uma capina, porque tem sempre muito mato em redor. Segundo as notas de Ira Gitler no disco Birth of the Cool, Gerry Mulligan fez quatro dos doze arranjos, John Lewis fez três, Gil Evans fez dois, Johnny Carisi fez um só, o de “Israel”, e Miles Davis fez também um só, o de “Deception”.
— Pera lá, — diz Fernando. — Quatro e três, sete, com mais dois, nove, com mais dois, onze. Falta um.
— Ira Gitler não esclarece nas notas quem fez o arranjo de “Jeru”, — diz Garibaldi. — Mas essa é uma composição de Mulligan, o que levaria a crer que o próprio Mulligan é que fez o arranjo, ampliando a quota dele de quatro arranjos pra cinco.
A moça da Work Chop faz nova visita à mesa pra saber se alguém quer mais alguma coisa.
— Você me trouxe um chocolate frio, — reclama Garibaldi.
— Eu não, — defende-se ela. — Só se você demorou a tomar. Quer que eu trago outro?
— Quero não, — diz Garibaldi. — Traz uma Coca-Cola bem gelada.
— Bem cool, — diz Fernando. A moça olha pra ele com um olhar de través. — Também quero uma.
— Traz uma pra mim também, — pede o narrador.
João Luiz permanece calado e abstêmio.
— Em 1991, quarenta anos depois daquela aventura cool, — Garibaldi continua a preleção, — Gerry Mulligan teve a idéia de regravar o repertório do noneto. Miles Davis foi convidado a participar, mas, que pena, morreu antes de começarem as gravações, que foram feitas em 1992. Do noneto original, além de Mulligan, só estão presentes John Lewis ao piano e Bill Barber na tuba. Eu tenho esse cd. Ali se dá o crédito direitinho pra quem fez o arranjo de cada composição em 1949. O arranjo de “Jeru” foi feito mesmo por Mulligan, o que não é nenhuma surpresa. Surpresa, sim, é descobrir que um dos arranjos atribuídos a John Lewis mais o arranjo de “Deception”, atribuído a Miles Davis, também foram feitos por Mulligan. Conclusão: Mulligan, que segundo as informações fajutas de Ira Gitler tinha feito quatro arranjos, na verdade fez sete. Sete dentre doze. Mais da metade. Sem esquecer que, além de ter sido o principal arranjador do projeto, Mulligan também atuou como solista nas gravações de forma tão destacada como Miles Davis. Em suma, pode-se dizer que em termos musicais o disco é mais de Mulligan do que de Miles Davis. Pra dar a cada um o que lhe cabe, pode-se dizer que Mulligan foi a cabeça e Miles Davis foi o cabeça desse evento. E nesse caso mais vale um a do que um o.
Moça de blusa preta que trabalha numa das lojas da praça chega ao quiosque pra tomar um mate gelado. Tem no pulso direito uma pulseira semelhante à da sua colega da joalheria, só que preta, pra combinar com o preto de sua blusa.
— Não é de admirar, portanto, — diz Garibaldi, — que meu crítico favorito, Whitney Balliett, no livro The sound of surprise, todas as cinco vezes que se refere a esse noneto ou a essas gravações de 1949-50, ele hifeniza o crédito, se é que posso usar esse verbo: o grupo é o grupo de Davis-Mulligan, as gravações foram feitas por Davis-Mulligan. Ele compreendeu melhor do que qualquer outro crítico o que tinha acontecido ali.
— Tudo bem, — diz Fernando, conciliador. — O cool jazz teve dois pais, um negro e um branco, Miles Davis e Gerry Mulligan.
— Contesto, — diz Garibaldi.
A moça de blusa preta toma seu mate de pé junto ao balcão. A moça chim sussurra-lhe alguma coisa no ouvido, ela se vira pra olhar pra mesa do clube. Ambas sorriem. A moça chim sussurra mais alguma coisa. Riem ambas.
— Como contesta? — diz Fernando. — Se bem entendi a coisa, o jazz teve algumas correntes refrigeradas nos anos 20 e 30, e até nos 40, mas me parece que só com o noneto de Miles Davis e Gerry Mulligan é que o cool jazz adquiriu mesmo uma identidade própria.
— Não estou interessado em identidade, — diz Garibaldi. — Estou interessado em continuidade. Identifique quem deu continuidade ao projeto cool e você terá o pai, ou os pais, do cool jazz.
— E Miles Davis não deu continuidade ao projeto? — ainda Fernando.
— Miles Davis estava atrás de sucesso, — diz Garibaldi. — Como o noneto não teve sucesso, ele deixou aquilo pra lá e voltou à freguesia do bop. Passou a década de 50 tocando bop e hardbop. Primeiro com Charlie Parker e com Sonny Rollins, depois com Jay Jay Johnson, com Jackie McLean, com Jimmy Heath e, por fim, com John Coltrane e Cannonball Adderley. Tanto que é considerado, pra variar, um dos fundadores do hardbop, que eu vejo como um desenvolvimento natural do bop e nada mais, não tem nada ali que justifique dizer que alguém fundou aquele troço.
A moça da Work Chop traz três latas de Coca-Cola e três copos plásticos, que distribui a quem de direito, ou seja, só a João Luiz é que não. Há uma pausa pra se abrirem latas, encherem-se copos, beberem-se os primeiros goles. Garibaldi chega a estalar os lábios de prazer, como um Coca-Cola Kid. Aí:
— Agora chega de falar em Miles Davis. Vamos identificar os músicos que deram continuidade ao projeto cool nos anos 50 e que, no meu entender, foram dois. Um deles foi Shorty Rogers.
— Shorty Rogers? — estranha Fernando.
— Já esqueceu de Shorty Rogers? — diz Garibaldi. — Foi um dos arranjadores que criaram o estilo cool da orquestra de Woody Herman nos anos 40. Pois Shorty Rogers se radicou na Califórnia no início dos anos 50, fez estudos particulares de música clássica e continuou a desenvolver um estilo cool de jazz, que se tornaria uma das vertentes principais do chamado West Coast Jazz. Com ele, em volta dele ou paralelamente a ele estavam músicos como Jimmy Giuffre, Bill Holman, Bob Cooper, Bud Shank, Howard Rumsey, Shelly Manne e, é claro, Art Pepper: o mais hot dos músicos do cool jazz. Mas faz parte da política de hipervalorização de tudo que diz respeito a Miles Davis creditar a ele, via noneto de 49-50, uma influência direta sobre a música de Shorty Rogers, o que me parece um contra-senso, já que Shorty Rogers começou a experimentar com padrões cool dois anos antes, em 1947. Faz mais sentido creditar a Shorty Rogers um desenvolvimento inteiramente independente, que é o que eu faço. A propósito, Shorty Rogers andou experimentando com improvisações modais bem antes de Miles Davis, também, mas não deve ter visto muita graça naquilo porque não foi muito a fundo. O outro músico da minha lista —
— Só pode ser Gerry Mulligan, — se antecipa Fernando.
— O próprio, — diz Garibaldi. — Mulligan continuou envolvido até a alma com a proposta do cool jazz. Em 1951 ele grava Mulligan Plays Mulligan com um tenteto que pra mim não passa de um noneto com mais uma tal de Gail Madden tocando maracas. Felizmente a gravação é meio precária, e não dá pra perceber a porra das maracas.
O que não falta no Centro da Praia nesta terça é moça transeunte a sós consigo mesma. Garibaldi se cala bem a tempo de se juntar aos demais de nós pra olhar uma moça que desliza, que bonita, ao largo da praça, e ao longo, com mãos nos quadris e andar de passarela. Veste calça jeans e blusa preta, e porta uma mochila preta às costas, como uma squaw o seu papoose. Depois que ela se vai, sem deixar nome nem palavra, Garibaldi:
— Mas você ouve esse disco, Mulligan Plays Mulligan, você vê que aí está a continuidade do trabalho do noneto de 49-50. E reparem que não há, nas notas desse disco, nenhuma referência às gravações do noneto, nem a nenhum estilo cool. O que só confirma que as gravações de 49-50 passaram em brancas nuvens, a ponto de ninguém nem se preocupar em mencioná-las nem em dar-lhes um rótulo. Muito bem. E depois, o que é que Mulligan vai fazer da vida? Vai pra Califórnia, e instala em Los Angeles o seu quartel-general musical pra aprimorar e diversificar o projeto cool. Em 1952 já inventa um novo estilo de tocar cool, que é —
— O quarteto pianoless, — diz João Luiz, que adora essa palavra, pianoless.
— Isso mesmo, o quarteto sem piano com Chet Baker, — confirma Garibaldi. — Nem isso de pianoless era novo, porque até 1917 não se usavam pianos no jazz, talvez por causa da natureza ambulante das bandas, de formas que a função do piano era executada pelo violino. Nem o quarteto sem piano de Mulligan resultou de nenhuma proposta musical longamente amadurecida. Aconteceu que, quando Mulligan foi tocar no Haig, um night-club de Los Angeles, ele viu que tinha um vibrafone no lugar do piano. Aí ele perguntou, Cadê o piano que estava aqui? Aí explicaram que Red Norvo estava tocando lá em outros dias da semana e não queria sentir nem cheiro de piano. Por isso o dono do Haig armazenou o piano no seu próprio apartamento. Aí, como não tinha piano, o jeito foi Mulligan inventar o quarteto sem piano. O quarteto fez tanto sucesso que daí a pouco lá foram Mulligan e seus compinchas pro estúdio fazer umas gravações. Poucos meses depois, já eram tão badalados que Time, sempre um termômetro do sucesso, fez uma matéria sobre eles. Uma daquelas matérias poéticas de merda, que Time só sabe escrever sobre jazz poeticamente. Nessa época a fila pra entrar no Haig dobrava a esquina. Os discos estavam vendendo bem pra caralho. Choviam convites pra tocar nos melhores espaços do país inteiro. Aquilo que não tinha acontecido com o noneto em Nova York aconteceu com o quarteto em Los Angeles. Em 1953 Mulligan entrou em cana por uso de drogas, mas em 1954, de novo em atividade, fez aquele célebre concerto em Paris, começou a trabalhar com grupos maiores, quintetos e sextetos, com Jon Eardley, Zoot Sims, Bob Brookmeyer, e gravou os inesquecíveis California Concerts.
João Luiz, ouvindo falar nessas gravações, que inclui entre as suas favoritas preferidas, se sente todo no direito de dar um pitaco:
— Por sinal esses discos deveriam ser uma referência da música West Coast pros apreciadores do jazz. São simplesmente maravilhosos, o fino do cool jazz. Os arranjos de Mulligan são soberbos e os músicos são magníficos, desde o pessoal de sopro, Mulligan, Brookmeyer, Zoot Sims, até o pessoal da cozinha, Red Mitchell, Larry Bunker e Chico Hamilton. Sem esquecer que tanto Mulligan como Brookmeyer tocam um piano foda quando é preciso. E sem esquecer Jon Eardley, um trompetista vários furos acima de Miles Davis, que nunca teve o reconhecimento que merecia e acabou se retirando pra Europa, onde arranjou emprego numa daquelas rádios alemãs que têm orquestra, banda e o caralho a quatro. Nunca mais voltou. Ficou lá, tocando trompete em alemão, e lá morreu em 1981.
É João Luiz fazer uma pausa pra respirar e Garibaldi:
— Como eu ia dizendo, é nesse momento, em 1954, pra pegar carona no sucesso de Gerry Mulligan, que a Capitol lançou oito das músicas do noneto de 49-50 num lp de 10 polegadas na série Classics in Jazz. Enquanto isso, o West Coast Jazz, que englobava todas as vertentes do jazz da Califórnia, ia se transformando cada vez mais numa realidade palpável e vendável. Aí a Capitol ataca de novo. Em 1957 se reuniram em disco as onze gravações instrumentais do velho noneto (a faixa vocal, “Darn That Dream”, ficou de fora). Os produtores deram ao disco o título de Birth of the Cool, pra capitalizar em cima do sucesso do cool jazz e, lógico, pra atribuir a Miles Davis a paternidade do movimento. A minha intuição me diz que toda a grande mídia sediada em Nova York ajudou a vender essa versão revisionista da história. Estava em jogo o prestígio de Nova York como centro de produção do jazz, era preciso demonstrar que o que estava acontecendo lá na Califórnia tinha começado aqui em Nova York, e com um músico que continuava aqui em Nova York. A coisa pegou, e Miles Davis se transformou numa espécie de pai pródigo do cool jazz.
A moça chim vem vindo pegar a xícara largada sobre a mesa pela moça de vestido laranja depois azul de seda. Do lado de fora do balcão, exposta de corpo inteiro a quem a quiser olhar, dá pra ver que ela usa, preso à cintura, um avental curto como uma tanga.
— Olha só, Garibaldi, — diz o narrador, — a chinesa que puseram pra atender nesse quiosque. Dá até vontade de trair Alcides e pedir um café aqui mesmo.
Garibaldi se vira pra olhar. A moça se vê observada e não consegue deixar de deixar escapar um sorriso. Na sua mão esquerda reluz de ouro uma aliança de casamento.
— Essa moça não é chinesa, — discorda Garibaldi, — é esquimó. Foi pra ela que Dick Twardzik compôs aquela música, “The Girl from Greenland”.
— Essa música não é de Chet Baker? — pergunta o narrador.
— Sei lá, — diz Garibaldi. — É de um ou de outro. Só sei que gravaram essa música em Paris, em 1955, três dias antes de Twardzik morrer de overdose.
— E é casada, — acrescenta João Luiz. — Tem aliança na mão esquerda.
— Maravilha, — diz Garibaldi. — O marido esquimó é o marido mais altruísta do mundo. É só você aparecer de visita no iglu dele que ele te dá logo a mulher pra foder com você.
A moça retorna ao quiosque. O narrador repara em seu cabelo negro, derramado sobre as costas num grosso rabo-de-cavalo; repara em sua bunda, bem bonita em dois volumes suaves e redondos. De volta à sua peroração, Garibaldi:
— Não tem animal mais incoerente do que um crítico. A principal característica do West Coast Jazz, segundo os próprios críticos, é a valorização dos arranjos. Os arranjos passam a ter tanta importância na música como as improvisações. Os músicos mais representativos da escola, além de serem todos eles instrumentistas, são grandes arranjadores: Shorty Rogers, Gerry Mulligan, Bob Brookmeyer, Bill Holman, Jimmy Giuffre, Marty Paich, Gerald Wilson, Bob Enevoldsen, John Graas. Como é que a criação dessa escola de arranjadores pode, em sã consciência, ser atribuída a um cara que não sabia arranjar porra nenhuma?
Olha-nos com olhos ominosos de ameaça, bem capaz de desafiar pra um duelo ai de quem se atrevesse a discordar. Na falta de discordância:
— O estilo cool entrou em declínio, pelo menos em termos de sucesso, nos anos 60. Lembro bem de uma frase de Cannonball Adderley que eu li na Down Beat, lembro dele soltando uma ironia do tipo “cadê todos aqueles sujeitos chamados Bob que tocavam jazz lá na Califórnia?” Isso por causa de que tinha mesmo uma porção de Bobs no West Coast Jazz, como Bob Brookmeyer, Bob Cooper, Bob Gordon, Bob Enevoldsen e Bob Whitlock. Mas quando, nos anos 60, terminou a idade de ouro do movimento, os críticos escolheram o cool jazz como saco de pancadas e começaram a tripudiar. A impressão que dá é que eles não tinham perdoado aqueles anos de sucesso do jazz da Califórnia. Aí a moda é descer o malho no cool jazz. Bill Quinn, por exemplo, fala com o maior desdém da gelidez da abordagem do West Coast Jazz. E aí você vê a falta de coerência desses críticos. Quando eles falam mal do cool jazz, eles nunca atribuem a criação do estilo a Miles Davis, e quando falam bem de Miles Davis, aí incluem entre as grandes realizações dele a criação do cool jazz. Dá pra entender?
— Os críticos podem achar, — diz João Luiz, — que o West Coast Jazz foi uma merda, mas na minha concepção os melhores músicos de jazz, bem como os melhores temas e arranjos, a gente encontra é no West Coast jazz.
Um sujeito de seus sessenta anos encosta-se ao balcão do quiosque e bate um papo com a moça já não mais chinesa mas da Groenlândia. Ela o escuta com a cabeça inclinada pra um lado, fazendo-se sensual, depois ri do que ele diz, mostrando dentes brancos e compactos. Aí abre o freezer, tira de lá uma garrafa de água mineral. O sujeito paga e estende a mão em concha pra receber o troco; a moça deposita algumas moedas no interior da concha e os três segundos que seus dedos demoram nesse gesto parecem não ter fim. O sujeito leva a garrafa até uma mesa — a que fica exatamente entre o quiosque e uma das barras de aço pintado que demarcam a fronteira da praça — e ali senta de costas pro quiosque. Garibaldi, enquanto isso:
— Mas não adianta: o bem, no fim, sempre triunfa. Eu mencionei que em 1992 Mulligan organizou um novo noneto pra regravar o repertório de 49-50. Miles Davis tinha morrido em 1991 e não pôde participar. Em vista disso, o disco Re-birth of the Cool, em vez de sair com o nome de Miles Davis, como teria sido certamente o caso, saiu com o nome de Gerry Mulligan. No fim se fez justiça: uma justiça poética e musical.
O que é que o sujeito de seus sessenta anos tem que o torna irresistível à moça da Groenlândia? Pois por ele, olha só, ela abandona o quiosque pra se empoleirar brejeira na barra de aço ao lado da sua mesa. Pena que não dê pro narrador ouvir o que eles dizem e registrar aqui por escrito no lugar da infindável xaropada de Garibaldi:
— Agora, pra não dizerem que eu tenho marcação com Miles Davis, vou dar um crédito a ele, que é o crédito a que ele tem direito insofismável, sem precisar roubar nada dos outros. Miles Davis realmente foi o criador de um estilo cool de tocar trompete.
— Tenho cá as minhas dúvidas, — atiça João Luiz. — Foi ele ou foi Chet Baker?
— Cara, eu não vou sair na porrada por causa disso, — diz Garibaldi, — mas entendo que, dos dois, Miles Davis veio primeiro e influenciou mais. Quando ele voltou ao bop, no início dos anos 50, ele trouxe na bagagem, pro que desse e viesse, a sonoridade cool que tinha adotado pro trompete durante a experiência com o noneto. Eu particularmente não gosto dessa sonoridade, mas ele se distinguiu com ela e, entre os músicos, teve centenas de seguidores. O que, aliás, não admira: era muito mais fácil copiar o estilo dele do que o de Dizzy Gillespie.
Lá no seu poleiro na borda da praça, a moça da Groenlândia — Assuliak, já que precisa de um nome — enfia as mãos no bolso do avental, que parece ser agora o assunto de conversa com o sujeito de seus sessenta anos. De repente, atendendo-lhe só pode a um capricho, Assuliak desata o avental e despe-se dele, exibindo-o no ar com um gesto triunfal e um sorriso de malícia cheia de graça. É o primeiro ato, e único, de seu strip-tease. Aí bate um pudor, ela olha o relógio no pulso, depois dobra o avental direitinho, com o respeito devido a uma bandeira nacional.
— Se bem me lembro, — diz o narrador, — há doze horas atrás, quando você começou a arengar pra nós sobre Miles Davis, você disse que tinha uma teoria sobre as razões do sucesso de Miles Davis no jazz. E aí, não vai falar disso não?
Nesse momento três pessoas se apossam de roldão de uma das mesas da praça: duas mulheres espevitadas e um sujeito de camisa azul neném. Garibaldi toma um gole de Coca-Cola e retém o líquido na boca, formando redondas bochechas que lembram — muito de longe, é claro — as de Dizzy Gillespie. Depois bebe e:
— O sucesso de Miles Davis no jazz se deve a cinco fatores principais. O primeiro é que essa sonoridade que ele criou pro trompete, uma sonoridade compatível com sua pobreza técnica no instrumento, acabou que foi muito bem aceita pelo público. Eu tenho pra mim que foi aceita porque é o som que representa a época. O início dos anos 50 é a época da guerra fria, os americanos estão com medo de tudo, desde invasões de Marte até bombas atômicas dos russos. Não se sentem seguros em lugar nenhum. Os próprios vizinhos podem ser seres do espaço disfarçados de terráqueos, podem ser espiões soviéticos, podem ser até agentes do FBI caçando bruxas comunistas e, se você não tiver cuidado com o que diz, pode ser confundido com uma bruxa comunista, e aí você está fodido. O trompete assurdinado de Miles Davis é o som do cagaço da época. É um trompete com o cuzinho na mão. Isso em termos políticos. Em termos psicológicos, o trompete dele transmite um discurso lírico sobre a solidão. Soa como o ganido de um coração sensível em situação de abandono, ou seja, eleva a autopiedade a uma dimensão musical, logo artística. Quem há de resistir? Eu mesmo confesso que me deixei seduzir por esse trompete quando ouvi Miles Davis pela primeira vez, que foi no disco Someday My Prince Will Come.
Uma das mulheres espevitadas chega junto ao balcão do quiosque. Está usando um vestido estampado e sua idade orça pelos cinqüenta anos. Assuliak tem de interromper o seu idílio pra vir atendê-la. Pior que a mulher não está ali pra comprar nada, mas pra filar do quiosque um copo cheio de cubos de gelo. Por quê e pra quê? Basta seguir, a olhos vistos, a mulher em seu regresso de volta à mesa: no centro da mesa ergue-se, toda imponente, uma garrafa de whisky Johnnie Walker. Quanto a Assuliak, ei-la de volta ao posto de namoro; ali meio se senta, meio se encosta na barra de aço, estica as pernas, alisa as coxas com as mãos. A um convite do sujeito de seus sessenta anos ela acaba por sentar à mesa ao lado dele.
— Um segundo fator, — continua Garibaldi, — foi que Miles Davis contou com a sorte pra remover do seu caminho alguns trompetistas geniais que bem poderiam tê-lo eclipsado se tivessem vivido mais tempo. Estou falando de Fats Navarro, que morreu de tuberculose em 1950 com 30 anos, e principalmente de Clifford Brown, que morreu em 1956 com 26 anos num acidente de automóvel. Uma coisa era Miles Davis suplantar Dizzy Gillespie, que o público estava cansado de ver e ouvir. Outra coisa muito diferente seria concorrer com um músico mais jovem e mais talentoso como Clifford Brown.
Quem disse que Assuliak será deixada namorar em paz? A mulher do vestido estampado volta a convocá-la, não estão conseguindo abrir a garrafa de Johnnie Walker. Assuliak levanta da mesa, obediente, e vem. Não dá pra ver qualquer indício algum de má vontade em seu rosto cor de neve da Groenlândia.
— Terceiro fator: a exposição na mídia. Miles Davis não era besta, e sabia que, na nossa civilização mercadológica, muitas vezes um músico pode vender mais discos por causa do penteado do que da própria música. Era preciso criar uma imagem social, e foi isso que ele fez. Se tanto Louis Armstrong como Dizzy Gillespie eram figuras sorridentes, simpáticas, bem-humoradas, divertidas, ele seria exatamente o contrário. Começou a vender a imagem de sujeito difícil, controvertido, arrogante e agressivo: chegou até ao ponto de praticar boxe. Começou, inclusive, a tratar mal as próprias platéias, bem sabendo que isso impõe respeito e veneração. Paralelamente, decidiu que as contracapas de seus discos não teriam mais textos sobre a sua música. Assim, abriu espaço pra que se falasse ali de seu guarda-roupa, por exemplo, inaugurando sutilmente um culto de personalidade.
Assuliak envolve numa toalha o gargalo da garrafa de whisky mas, por mais que torça e retorça a tampa da garrafa, não consegue abri-la. Alguém sugere uma faca, que Assuliak fornece do arsenal de utensílios do quiosque. O sujeito de camisa azul neném, com muita falta de jeito, consegue finalmente serrar a tampa e abrir a garrafa. As mulheres batem palmas, espevitadas. A mulher de vestido estampado distribui em três copos as pedras de gelo que filou do quiosque. O homem da casa serve a bebida, que tem bela cor de mijo esplandecente. Nos bastidores, a persistente Assuliak retorna à mesa do sujeito de seus sessenta anos e se senta.
— Tudo isso fez de Miles Davis, — prossegue Garibaldi, alheio a toda essa agitação à sua volta, — um dos queridinhos do colunismo social, e são as colunas sociais, mais que as resenhas de discos, que fazem a fama de um músico. Eu li em algum lugar que os colunistas sociais tinham fixação pelas roupas de Miles Davis, pelos carros, pelas esposas e pelas namoradas dele. A própria Down Beat uma vez fez uma reportagem sobre Miles Davis o boxeador. O cara não perdia uma oportunidade pra acontecer em termos sociais. Quando foi à França gravar a trilha sonora do filme Elevador para o cadafalso, não só se congraçou com os intelectuais franceses mas ainda por cima parece que comeu a atriz do filme, no que fez de muito bem, aliás. Se essa mulher deu pra Miles Davis, ela merecia ser comida por ele.
Algumas lojas da praça começam a fechar as portas e apagar as luzes. O casal de meia-idade se levanta, recolhe baralho e toalha de mesa e se retira.
— Um quarto fator é que Miles Davis sempre tinha uma novidade na manga. Sempre estava metido com algum novo projeto, sempre tinha motivo pra se falar dele. A partir dos anos 60, ele pula do hardbop pro jazz modal, do modal pro jazz eletrificado, do eletrificado pro jazz-rock. É o homem das novidades, e tanto a mídia como o público adoram novidades.
Namoro de Assuliak foi curto. O sujeito de seus sessenta anos se despede brusco e vai embora. Assuliak prega-lhe nas costas um olhar escoriado como de quem está pensando: Foi pra isso que eu tirei meu avental pra você? Aí dá de ombros e retorna ao quiosque e começa a arrumar as coisas pra ir embora também.
— O quinto e último fator, e o principal, é a defecção de Miles Davis pro rock. É o golpe de mestre de um músico que sempre deu mais importância ao sucesso que à música. Como é que foi essa mudança? Ora, na virada dos anos 60 pros 70 a situação de vendas de discos de jazz era a pior possível. De cada cem discos e fitas vendidos, um era de jazz, seis de música clássica e 75 de rock e congêneres.
A pele de aço cromado da máquina de café serve de espelho pra Assuliak olhar o próprio rosto e ver se está bonita. Vê que está. De algum compartimento secreto do quiosque retira a bolsa e, com a bolsa a tiracolo, sai do quiosque, fecha a portinhola e se desgarra corredor a fora em busca de uma saída pro ar livre.
— Miles Davis era, sem dúvida, — diz Garibaldi, — o músico de jazz que mais vendia discos, mas até ele estava sofrendo com aquela crise. Os produtores, preocupadíssimos com a queda das vendas dos discos dele, fizeram a ele a proposta indecorosa de se bandear pro rock. Duvido que algum produtor tivesse coragem de fazer uma proposta dessas a um Thelonious Monk ou a um Coleman Hawkins. Mas Miles Davis já tinha mostrado que topava qualquer parada. Não tinha incorporado a seus grupos órgão, baixo elétrico, piano elétrico, sintetizadores, e até um baterista brasileiro tocando frigideira? Então ficou acertado que a próxima fase da evolução de Miles Davis seria a fusão com o rock. Foi genial. E deu certo. Daí pra frente Miles Davis conseguiu uma projeção inconcebível pra um músico de jazz. A exposição que ele já tinha na mídia se ampliou de maneira explosiva. As vendas de seus discos voltaram a subir, tanto dos novos como dos antigos. Os concertos encheram de jovens e adolescentes. Miles Davis se tornou um superstar da música. Pronto: eis a quinta e principal razão do sucesso de Miles Davis: ele se tornou o músico mais famoso do jazz porque se tornou um músico de rock. Bebop saudações.
Garibaldi se cala, enche o copo até à borda e começa a beber aquela Coca toda num longo gole que não acaba mais. Aí João Luiz:
— Concordo com você, Garibaldi, em gênero, número e degrau. Esse degrau era pra Miles Davis ter tropeçado nele em 1961 e se foder todo, que aí era menos um pra melar o jazz. Acho que a minha convivência de mais de quarenta anos com o jazz me habilita a dizer o seguinte: Miles Davis, por conta de sua personalidade controvertida e sua capacidade de organizar movimentos e reunir bons músicos pra tocar com ele, foi endeusado mais do que devia pela mídia americana. Acho que a mídia encontrou nele o protótipo ideal e conseguiu transformá-lo num mito do jazz, e quase todo mundo aceitou essa enganação. Na realidade eu só concebo Miles Davis como músico e compositor de jazz no período que vai de 1949 a 1961. Nesse período ele realizou um trabalho até certo ponto razoável dentro do universo jazzístico, como tantos outros fizeram, mas nada que desse pra considerá-lo um dos gigantes do jazz, muito menos pra se tornar um mito da música do século XX. Agora, no período de 1961 em diante, o que Miles Davis fez, compõs e tocou foi tudo, menos jazz.
Garibaldi fixa o olho em João Luiz, como quem vê surgir um possível concorrente. Aí, mais que depressa:
— O que importa é que Miles Davis não conseguiu acabar com o jazz. Wynton Marsalis veio, viu e venceu. Sei que até ele, a princípio, quis tomar Miles Davis como modelo. Mas não demorou pra perceber que aquela merda de música não tinha nada a ver com nada. Então partiu pra outra: pra redenção do jazz. Igual a um Moisés, Marsalis trouxe o povo do jazz de volta à terra prometida, que é a velha e querida tradição, que os músicos do passado criaram pra ser eterna e que estava ali, pronta, como sempre, pra ser eterna. Aí é que Marsalis rejeita a morbidez musical de Miles Davis pra dar ao jazz um sopro de vitalidade. Então, quando eu ouço aquela Orquestra de Jazz do Lincoln Center, comandada por Marsalis, eu fico de alma lavada. E quando ouço aquela faixa maravilhosa, “Back to Basics”, e ouço Marsalis gargalhando no trompete que nem Cootie Williams, eu fico todo feliz e sinto vontade de dançar.
Garibaldi levanta, lança longe, no ar, o exemplar da revista Time com Albert Einstein na capa, dança alguns passos pernaltas de dança em volta da mesa e, pra pôr fim à crônica:
— E o trompete que nunca riu que vá pra puta que o pariu!
Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Puta texto bacana, Reinaldo! Como fã de jazz (de Chet e Miles e, claro, de Gillespie) e trompetista, deliciei-me com sua narrativa. Parabéns!