Capítulo IX — Educação e caráter
1. Generalidades
Ao tráfico pouco desenvolvido na região espírito-santense, onde se radicavam os povoadores teutos, corresponde o isolamento espiritual em que eles vivem. Os seus afãs, seu pensar e sentir constituem um minúsculo mundo fechado, em que qualquer progresso é demasiadamente vagaroso e em que se registam retrocessos.
O equipamento intelectual, isto é, o do jornaleiro alemão daquela época, trazido pelos imigrantes vindos da Europa, permaneceu o mesmo, tendo, sob vários aspectos, criado ferrugem. O que os alemães tomaram emprestado ao novo meio, limita-se a cousas da vida exterior, pois a maioria ainda não aprendeu a língua portuguesa, excetuadas certas designações desse idioma, aceitas como estrangeirismos. A ligação espiritual com a pátria de origem só foi mantida na medida em que se impunha conservar vivas, velhas recordações.
Tão débeis como as relações espirituais externas que essa população estabelece, são as internas. O sistema de economia fechada em que vive, significa tanto isolamento econômico quanto espiritual, agravado pelo estilo de povoamento, em sítios.
Assim, a igreja se torna a única portadora da cultura espiritual.
2. A igreja
Já expusemos como se formaram e se desenvolveram, exteriormente, as comunidades católicas e protestantes na região povoada pelos alemães.[ 1 ] Agora trataremos de suas condições internas. Ocupar-nos-emos, principalmente, das comunidades protestantes.
Verificamos ser extraordinariamente rígida a organização dessas comunidades. Os que gostam de apreciar as coisas historicamente, estarão, talvez, inclinados a considerá-la comparável ao Estado Jesuíta. Entre os colonos, toda a vida do espírito é dominada pela igreja. Esta, lá, tem mais influência que no meio rural da Alemanha. As mais afastadas das comunidades camponesas da Alemanha estão sujeitas aos mais variados influxos provenientes da vida política e social multiforme de hoje. Nesse país, entre muitos outros fatores, atuam sobre os que trabalham no campo, o jornal diário, o serviço militar, as viagens à cidade, a feira anual, cousas cujo nome os colonos do Espírito Santo dificilmente saberiam.
Estes não se subordinam servilmente à igreja nem a seus representantes As comunidades que formam são livres; nelas, cada chefe de família tem voz e voto, e escolhe entre os companheiros, os mordomos da igreja. Segundo o estatuto da comunidade de Santa Leopoldina, por exemplo, é elegível qualquer membro, que seja íntegro, tenha 30 anos de idade completos, saiba ler e escrever.
À frente da comunidade e dependendo de suas resoluções, está um ministro (enviado da Alemanha). Exerce sobre ela influência decisiva. É compreensível que diversos pastores cheguem a dispor de poder autocrático; o pároco não é, apenas, o pastor de almas e o predicante, mas, também, o professor, o médico e uma espécie de prefeito; enfim, é a única pessoa que possui instrução superior na comunidade.
Por isso, recai sobre ele uma pesada carga de trabalho. Quantas vezes é chamado (para citar um dos seus múltiplos deveres) à cabeceira de um doente grave ou a um enterro, sendo obrigado a percorrer enormes distâncias, a cavalo, através da noite e da tempestade, pelos caminhos mais difíceis. Mesmo o que rejeita o ideal (a doutrina cristã desses homens que, abnegadamente, exercem o seu difícil mister em meio a grandes privações, na floresta tropical, durante muitos anos; os sacerdotes católicos, a vida inteira), achará, sem dúvida, que eles desempenham uma missão cultural valiosa.
Um ou outro ministro já teve de enfrentar duras lutas dentro da comunidade. O vendeiro ou outro membro influente organiza a oposição, e a autoridade do pastor se expõe a grave perigo. Sustenta-se, francamente, o ponto de vista de que a comunidade paga o pastor e, por isso, pode exigir dele, como “criado” que é, qualquer prestação de serviço. Ocorrem, assim, reuniões tumultuosas, com cenas violentas. Mas, são episódios raríssimos na vida tranqüila das matas. Todavia, o pastor evangélico tem de contar com uma pequena oposição secreta.
Mais sérias que as pequenas disputas internas são as lutas que se travam entre as comunidades. Infelizmente, surgiu impetuoso antagonismo entre as comunidades unidas, ligadas ao Consistório Evangélico, e as comunidades de observância estritamente luterana, e está se verificando a verdade do velho axioma de que a luta, no começo, desperta as forças, mas, no fim, é absolutamente infrutífera, prejudica e destrói. Essa divergência entre os protestantes é mais lamentável ainda, porque, nessa região, como já vimos, a igreja é, por ora, a única portadora da cultura.
A unidade das comunidades católicas, tanto externa como internamente, está melhor assegurada. A Igreja Católica atua, de certo modo, no sentido de misturar o elemento alemão e o nativo.
Reina, atualmente, a ventura de serem irrepreensíveis as relações entre católicos e protestantes, as quais muito deixavam a desejar no inicio da colonização; é pena que essa melhoria não se tenha introduzido noutras áreas povoadas por alemães na América do Sul. Quase não há contato entre os fiéis de ambas as religiões. Raríssimos são os casamentos entre católicos e protestantes.
3. A escola
Os imigrantes alemães, assim como os filhos mais velhos, possuíam instrução primária, adquirida na Alemanha, No começo da colonização, os mais jovens não tiveram oportunidades regulares de aprender a ler, escrever e contar. O ensino caseiro ministrado, por vezes, pelas mães e irmãos mais velhos, não preenchia a absoluta falta de escolas. Assim, quase toda a segunda geração de colonos cresceu sem receber instrução. Realizando um esforço admirável, uma porção deles, depois de adultos, aprendeu a deletrear mas a maioria permaneceu analfabeta.
Apesar disso, todos tiveram a idéia de construir escolas. Por impulso próprio, os descendentes de pobres jornaleiros pomeranos, fizeram grandes sacrifícios, a fim de proporcionar aos filhos, as noções elementares que não puderam ter. Em Santa Joana, comunidade nova, a contribuição anual, por menino, para a escola, é de 16 mil réis, mais de 20 marcos; em Campinho, 10 mil réis, e em Santa Leopoldina, 6 a 12. Soube, em Campinho, de um colono que contratou por 200 mil réis por ano, um professor a domicílio. Os saxônios e os suíços foram os que mais fizeram pela educação.
Ainda hoje, o ensino de que a juventude desfruta se restringe ao mais elementar.
O aprendizado dura pouco. Freqüenta-se a escola, durante 2 anos, três vezes semanalmente, ou no espaço de três anos, 2 vezes por semana. O dia escolar tem 4 a 5 horas.
O pároco ensina parte dos meninos; a maioria, porém, em virtude da distância, não pode ir à escola paroquial, e cursa uma das várias “escolas de colônias”, existentes em cada comunidade.
Nelas, lecionam professores que lembram os mestres-escolas de aldeia medieval. Quem ensina, ordinariamente, é um colono, que objetiva um ganho adicional, ou, o que provavelmente é raro, se interessa acentuadamente por essa atividade. Encontram-se colonos malogrados, dedicando-se à função de professor. Entre os “mestres de colônia”, acham-se, ocasionalmente, pessoas que naufragaram algures e procuram refúgio na floresta. Quase todos estão em desavença com a ortografia e a gramática, e a tal ponto que, muitas vezes, ignoram que um vocábulo se compõe de determinadas sílabas e, por isso, juntam-nas erradamente. Constitui, por certo, uma exceção, a carta abaixo, que um “mestre de colônia” dirigiu ao pároco:
An den Hern Pafdor…
den 6 dedzemer 1909
ich Habe er Halten den Brif. Von ir das Freut mir das es So gut File Grüse
Von Mir Dabe G
……………H ………. S …..…[ 2 ]
Em face disso, estamos habilitados a formular uma idéia dos resultados pedagógicos das escolas de colônia. Também as escolas paroquiais dificilmente ultrapassam as noções mais elementares, em virtude de o aprendizado ser breve. Naturalmente, falta muito ainda para que as suas atividades atinjam o nível das escolas de aldeia da Alemanha.
Ao fim do curso, antes da confirmação, portanto, todos os meninos são capazes de ler; a maioria, de copiar razoavelmente certo; muitos, até de descrever cousas simples. Mas, para decifrar essas produções, é necessário certo poder de adivinhação.
Os meninos aprendem a somar e diminuir, de 1 a 1.000, encontrando bastantes dificuldades de operar com números compostos de 3 algarismos. Praticamente não aprendem a lidar com frações. Não adquirem segurança nenhuma em multiplicar e dividir. A maioria lê as horas.
Os conhecimentos geográficos e históricos de que dispõem são quase nulos: Era-lhes difícil responder, com acerto, onde fica a Alemanha e como se vai para lá. Uns diziam: no lombo do burro; outros, por estrada de ferro; outros ainda, de navio. Somente alguns alunos sabem o nome do imperador alemão e o do presidente do Brasil.
Ensina-se, principalmente, religião. A instrução distende-se muito, relativamente, nesse setor.[ 3 ]
Seguem abaixo vários dos melhores trabalhos, feitos numa escola paroquial (a meu pedido), no espaço de uma hora, sobre o tema: “Corno se planta o café”, familiar aos garotos. Não se lhes deu nenhuma indicação circunstanciada. A descrição devia ser precedida do nome, idade, número de irmãos e residência.
Parece-me que esses trabalhos ilustram, excelentemente, os resultados do ensino. Apenas deve ficar claro que estão acima do nível que lá vigora.[ 4 ] É interessante verificar como a maneira de escrever dos garotos se diferencia da das meninas. No mesmo espaço de tempo, as moças, de modo geral, escreveram mais (aliás, os trabalhos piores que não estão reproduzidos aqui são, em regra, os mais longos) que os rapazes, mas as asserções destes são mais conseqüentes e mais exatas e contêm, às vezes, juízos apreciativos: “Wenn man den Kaffee draussen liegen lässt, das is Sünde” (É pecado deixar o café exposto ao tempo).
Em Vinte e Cinco de Julho, comunidade filial, o ensino está em melhores condições. Os suíços e saxônios de lá têm gasto mais com a educação dos filhos que os pomeranos. É significativo que, antes de se organizarem religiosamente, tenham fundado uma sociedade escolar.
Compreende-se que o ensino tenha alcançado o maior desenvolvimento na cidadezinha de Porto do Cachoeiro. Aí, a escola alemã só conta com um professor, mas, com suas aulas diárias, presta um serviço semelhante ao das escolas públicas na Alemanha.
Há, ainda, as escolas paroquiais católicas, onde os meninos brasileiros e alemães recebem instrução, em comum, em português e alemão.
Até agora, o governo brasileiro não cuidou da instrução dos colonos. O que estes, porém, têm feito, por iniciativa própria, e continuarão fazendo, constitui o penhor de que, em breve, o analfabetismo desaparecerá do meio deles. Os párocos só admitem à confirmação, os meninos que já tenham freqüentado a escola, e, desse modo, tornam o ensino praticamente obrigatório.
O número de assinantes das folhas dominicais religiosas nos permite formular uma idéia de quantos colonos, atualmente, são analfabetos. Em 1912, em Jequitibá, eram assinantes 95 famílias, isto é, mais de 20% dos membros da comunidade; em Santa Leopoldina, 30 famílias, também 20%; em Santa Joana, 70 famílias, ou seja mais de 25%; e em 1911, em Santa Maria, 82, quase 25% dos membros da comunidade. A grosso modo, um quarto ou um quinto dos colonos assinam uma folha dominical que, acrescente-se, é realmente lida. Uma vez que é raro os adultos lerem qualquer outra cousa impressa, deduziremos que bem mais da metade deles não se dedica a nenhuma leitura. Não se pretende dizer que não sejam de modo nenhum capazes de ler e escrever. Muitos sabem pelo menos, o bastante para ler, quase adivinhando, os versículos e textos bíblicos, que, em parte, decoraram.
4. O linguajar dos colonos
Os colonos alemães, pelo menos os protestantes, embora vivam na nova pátria, há três gerações, não aprenderam o linguajar do país — um português misturado com muitos brasiliarismos. Hoje, entre os católicos, já existem muitos capazes de se entenderem em português, pois os vigários teutos, que pastoreiam também a população nativa, fazem a prédica, primeiro, em português, e, depois, em alemão.
Os numerosos colonos que descendem de imigrantes da Pomerânia Ulterior, mantiveram seu velho dialeto. Muitos dentre eles quase não sabem falar o alto alemão. Os saxônios e os suíços conservaram os respectivos dialetos; todavia, são capazes de se exprimir, inteligivelmente, no alto alemão. Os colonos holandeses aprenderam um pouco de alemão.
A linguagem da terra, os alemães tomaram emprestado muitas expressões na maioria técnicas, adaptando-as a seu jeito. É possível mesmo que, em muitos casos, já tenham esquecido de que se trata de estrangeirismos. Sem a menor pretensão de oferecer uma enumeração completa desses vocábulos, tentaremos apresentá-los, a seguir.
Comecemos pelos termos de caráter geral e expressões coloquiais: freqüentemente, o colono diz, por exemplo, “sim” em lugar de já, “não” em vez de nein, “te loge” (até logo) em lugar de auf baldiges Wiedersehen, “muito” por viel (es gibt muito Kaffee) “kriminose” (criminoso) em lugar de verbrecherisch.
Relacionemos, abaixo, grupando-os, outros elementos do vocabulário adquirido pelos colonos:
Português | Linguajar dos colonos | Alemão |
1. Pessoas e profissões | ||
Arrieiro (m) | Ariehro | Führer der Maultiertruppe |
Caboclo (m) | Kabockel | Einheimischer, Farbiger, Lusobrasilianer |
Camarada (m) | Kamerad | Führer, Begleiter, Diener |
Capanga (m) | Kapanga | Gedungener Morder, Bandit, Raufbold |
Capixaba (m) | Kapischaba | Spítzname fur den Espírito Santenser |
Caixeiro (m) | Kaschero | Kassierer, Ladengehilfe, Kontorist |
Fazendeiro (m) | Fazendehro | Grossgrundbesitzer |
Freguês (m) | Fregese | Kunde |
Mineiro (m) | Minehro | Ein aus Minas Gerais Stammender, insbes. Wanderhändler |
Tropeiro (m) | Tropehro | Maultier, Eseltreiber |
Vendeiro (m) | Vendist | Krämer |
2. Medidas | ||
Arroba (f) | Arrobe | Enthält 32 Arrateis zu 459 Gramm, also 14,7 rund 15 kg |
Braça (f) | Brasse | Klatter-2,2 m |
Quadra (f) | Quader | 100 x 100 Quadratklarter-4,84 ha |
Mil réis (m) | Milreis | Die brasilianische Geldenheit. Im Jahre 1913 noch 16 pence, d.h. etwa 1 1/3 Mark |
Conto (de réis) (m) | Konto n | 1.000 Milreis |
3. Palavras relacionadas com o tráfego | ||
Cancela (f) | Kanzelle | Gatter |
Cabresto (m) | Kapreste | Halfter |
Cangalhas (f pl) | Kangalje | Tragkörbe, Tragsattel |
Lote (m) | Lott | Haufen, Trupp, in der Regel: Trupp von zehn Maultieren |
Mula (f) | Muhle | Maultier |
Rancho (m) | Ransche | Schutzdach am Wege fur Maultiertrupps |
Tropa (f) | Troppe ou Truppe | Maultierzug, Maultierkarawane |
Venda (f) | Vende | Kramladen auf der Kolonie |
4. Palavras relacionadas com o trabalho agrícola | ||
Ajuntamento (m) | Juntament* n | Bittarbeit |
Capoeira (f) | Kapoehra | Busch im Urbargemachten. Walde. |
Facão (m) | Fakong n | Grosses Messer, Buschmesser |
Foice (f) | Fose | Buschsenze, Faschinenmesser |
Foiçar | Fosen | Mit der Buschense niedermähen |
Monjolo (m) | Mascholle (f) | Stampfe |
Picada (f) | Pikade | Schneise |
Roça (f) | Rosse | Urbargemachter Wald, gerodetes Land |
5. Verduras e tubérculos | ||
Aipim (m) | Ehpi | Manniok |
Batata (f) | Batate | Süsse Kartöffel |
Cará (m) | Kára (f) | |
Taiá, taioba (f) | Taja, Tajobe | Sonstige Knollengewächse |
Inhame (m) | Jams | |
Chuchu (m) | Schuschú | Eine Kürbisart |
6. Frutas | ||
Ameixa (f) | Amesche | Brasilianische Pflaume |
Goiaba (f) | Goiabe | Indianische Birne |
Laranja (f) | Larangje* | Orange |
Limão (m) | Limong | Zitrone |
Mamão (m) | Mamong | Frucht des Rizinusbaums** |
Manga (f) | Manga | Mangofrucht |
Tangerina (f) | Tanjarine*** | Mandarine |
7. Objetos de consumo e de comércio | ||
Cachaça (f) | Kaschass (m) | Zuckerbranntwein |
Carne seca (f) | Karnesséck (m) | Dörrfleisch |
Farinha (f) | Farin | Mehl, insbesondere Manniokmehl |
Fazenda (f) | Fasenda | Stoffe, Manufakturwaren (zuweilen auch im Sinne von Landgut |
Fumo (m) | Fuhm | Tabak |
Matabicho (m) | Matabisch | Schnaps |
Milho (m) | Miljo | Mais |
Rapadura (f) | Rapadur | Brauner Rohzucker in Ziegelform |
Rosca (f) | Roske | Ringelzwieback, Kringel |
8. Madeiras | ||
Muitas designações da nomenclatura brasileira, nesse domínio, são conhecidas pelos colonos. Mencionaremos apenas: garaúna, ipê, jacarandá, jequitibá, peroba e cipó (representação fonética alemã da pronúncia dos colonos: zipo; significação, em alemão: (Liane, Schlingpflanze | ||
9. Animais | ||
Anta (f) | Ante | Amerikanischer Tapir (Beliebt. Schimpfwort) |
Bicho (m) | Bisch | Insekt, Wurm, insbesondere Sandfloh |
Carrapato (m) | Karabatte (f) | Zecke |
Coati (m) | Koati | Waldhund |
Onça (f) | Onze | Brasilianische Jaguar |
Paca (f) | Pack (m) | Brasilianische gefleckts Halbkaninchen (vorzugl. Wildpret) |
Surucucu (f) | Surukukuh | Brasilianische Klapperschlange |
* Pronuncia-se o J como em francês.
** Nota do tradutor — Parece que o autor, aí, confundiu mamão e mamona, mamoeiro e mamoneiro. Aliás, notamos o mesmo engano no Novo dicionário da língua portuguesa e alemã, de H. Michaelis. Achamos, por isso, provável que o autor tenha sido induzido a erro por algum léxico.
*** Nota do tradutor — Vide nota na seção 3 do cap. oitavo.
Umas 100 palavras, provavelmente, foram introduzidas no alemão dos colonos; o número delas, na região baixa, é um pouco maior que na parte alta. Em regra, os colonos só tomaram de empréstimo as designações de objetos que não conheciam anteriormente.
Consequentemente, chamam o prato nacional brasileiro de Bohnen und Farin e não Feijão und Farinha, como, aliás, seria natural. Em lugar de Mais dizem Miljo,[ 5 ] referindo-se ao milho que só vieram a conhecer no Brasil, pelo menos, como prato ou como alimento substancioso para os animais de grande porte. Adotaram Fakong e Fose[ 6 ] para significar, respectivamente, Buschmesser e Buschsense, mas utilizam as palavras, de bom alemão, Hacke e Axt.[ 7 ] Todavia, dizem Fregese[ 8 ] em lugar de Kunde, Fuhm[ 9 ] em lugar de Tabak, Matabisch em vez de Schnaps, Fazenda em lugar de Zeug.
Pondo-se à margem essas exceções, confirma-se a regra que, utilizada como método inventiva, tantos serviços tem prestado à pesquisa pré-histórica: com o objeto que um povo recebe de gente estrangeira, toma, também, a palavra estrangeira.
A circunstância de que praticamente todas as palavras do linguajar brasileiro, adotadas pelos colonos, se refiram à vida material, prova que a influência espiritual exercida pelo novo meio permanece igual a zero. Eles só têm contato com a gente da terra, esporadicamente; quase todos os comerciantes da região que povoam, são alemães. É muito difícil que viajem até a capital, Vitória; quando muito, vão a Porto do Cachoeiro, onde a maioria é alemã. É raro entrarem em contato com as autoridades; quando tal sucede, é o mesmo superficial, pois não existe serviço militar obrigatório para todos, ou algo semelhante. Quando há oportunidade para uma aproximação estreita, é pouco provável que esta seja aprazível, conforme nos mostra o processo de inventário (processo orfanológico), que representa uma verdadeira praga para os alemães no Espírito Santo.
5. O inventário
Segundo a lei brasileira, com a morte do de cujus, o espólio deve ser inventariado em juízo, antes de ser partilhado entre os herdeiros. Há uma comissão que se incumbe do inventário, remunerada mediante custas. Estas em si mesmas embora não sejam graduadas satisfatoriamente segundo o valor do espólio, não são excessivas para um sitiante. Infelizmente, porém, se adicionam, muitas vezes, grandes honorários para um advogado e para um intérprete, que tem de ser, freqüentemente, designado; e o pior, ainda, são os abusos de poder praticados.
Soube que mais da metade do valor total de uma “colônia” foi para os bolsos dos senhores “magistrados”. Não vamos nos ocupar com a exposição deste ovado; limitar-nos-emos a transcrever o relato magnífico e expressivo da feitura do inventário, que lemos no romance Canaã, de Graça Aranha. Nessa descrição, transparece o juízo que, freqüentemente, se faz dos alemães, na América do Sul e no estrangeiro em geral. Passamos a reproduzir essa narrativa, tendo de fazer, aqui infelizmente, cortes substanciais:[ 10 ]
“Uma manhã, o dono da casa ia partir para o cafezal próximo da habitação, quando um mulato, montado numa besta, se aproximou dele vagarosamente.
— Você se chama Franz Kraus? perguntou o mulato de cima da montaria, desdobrando uma folha de papel, que tirara do bolso.
O colono disse que sim.
— Pois, então, tome conhecimento disto. E desdenhoso entregou o papel ao outro.
Kraus olhou o escrito, e como, apesar de estar no Brasil havia 30 anos, não sabia ler o português, ficou embaraçado.
— Não posso ler… Que é ?
— Também vocês vivem aqui na terra a vida inteira e estão sempre na mesma, bradou o mulato. Venho por aqui furando este mundo, e de casa em casa sempre a mesma coisa: ninguém sabe a nossa língua… que raça!
O colono ficou aturdido com aquele tom insolente. Ia replicar meio encolerizado, quando o mulato continuou:
— Pois fique sabendo que isto é um mandato da Justiça. É um mandato do senhor juiz municipal para que vosmecê dê a inventário os bens de seu pai Augusto Kraus. Não era assim o nome dele? A audiência é amanhã, aqui, ao meio dia… A justiça pernoita em sua casa. Prepare do que comer… e do melhor. E os quartos… São três juizes, o escrivão e eu, que sou oficial do juízo, que também se conta.
O colono, ouvindo falar em Justiça, tirou o chapéu submisso, e ficou como fulminado.
— Ah! Prepare tudo para se arrolar. Não esconda nada, senão cadeia. Não lhe deixo contrafé, porque de nada lhe serve … Era só o que faltava… mais essa maçada.
Era mais de meio-dia quando a Justiça entrou senhorialmente na colônia. Os magistrados montavam excelentes bestas, que, segundo o costume, eram emprestadas pelos negociantes ricos de Cachoeiro. O colono correu a recebê-los, de chapéu na mão, solícito em ajudá-los a apearem-se das montarias. Um dos juízes largou-lhe o animal; os outros da comitiva amarraram os seus nas árvores e todos espanaram com o chicote a poeira das botas, batendo no chão ruidosamente com os pés.
— Estou morto! disse o juiz municipal, espreguiçando-se.
— Uma estafada! Quatro horas de viagem… Ainda o senhor veio por obrigação, mas nós dois, eu o colega, que nada temos com isto, e só pelo passeio! Enfim, sempre a gente se diverte… disse o juiz de direito, procurando fitar com o monóculo o promotor.
— Perdão, então não terei ocasião de funcionar? perguntou vivamente o promotor, adaptando a luneta azul aos olhos.
— Ah! é verdade, senhor curador de órfãos…
— Mas aqui não há disto… Todos, meu doutor, são maiores, atalhou com um riso de escárnio um mulato velho, cor de azeitona, recordando nas linhas e na expressão inquieta, a cara de gato maracajá, como era a sua alcunha. Era o escrivão.
— Mas, senhores, entremos… a casa é nossa em nome da lei, disse o juiz de direito, encaminhando-se para dentro.
— Mas onde está esse inventariante imbecil? perguntou com arrogância o promotor.
&mdsh; O sandeu fica todo este tempo a arranjar os animais e nos deixa aqui ao deus dará, explicou o escrivão.
E todos passeavam pela sala com estrépito, batendo com o chicote nos móveis, ou praguejando, ou rindo das pobres estampas nas paredes, ou farejando para dentro, de onde vinha um capitoso cheiro de comida.
Ouvindo tanto rumor, Kraus correu à sala atarantado como se tivesse cometido o primeiro delito, e pôs-se como um criado à espera das ordens.
— Traga parati! ordenou o escrivão. Mas que seja do bom.
O colono sumiu-se, para logo voltar com uma garrafa e um cálix.
— Não há mais copos nesta casa ? perguntou com desprezo o escrivão.
O colono tornou ao interior e depois reapareceu, balbucionando desculpas, e pôs em cima da mesa quatro copos.
— Vamos a isto, meus senhores! propôs o promotor.
— Este sujeito não nos dá almoço? Olhe que já é tarde… Faça o favor de ver isto, senhor escrivão.
O escrivão entrou pela habitação a dentro, procurando o colono.
Quando voltou, disse:
— Vamos almoçar, o homem tinha tudo preparado. O melhor é deixarmos essas nossas cerimônias, tomarmos conta da casa, porque se formos esperar que esta gente se mova, estamos convidados.
Comeram com apetite as comidas da colônia, beberam cerveja em quantidade. O dono da casa e o oficial de justiça serviam a refeição.
Depois do almoço, puseram-se a fumar descansados; e quando um grande torpor ia dominando a companhia, entendeu o escrivão espertá-la, dizendo ao juiz municipal:
— Senhor doutor, Vossa Senhoria não manda abrir a audiência?
O doutor Paulo Maciel espreguiçou-se bocejando, como se o convidassem à mais enfadonha das tarefas.
— Pois sim. Vamos lá, seu Pantoja.
O “Maracajá” pôs os óculos e armou-os na testa, enquanto arranjava a mesa para o serviço. O oficial de justiça apresentou-lhe um bauzinho, de onde ele tirou utensílios para escrever e um formulário, que abriu em página marcada. Procurou a melhor luz, sentou-se e principiou, debruçado sobre o papel de margem dobrada, a lançar os termos do processo. Paulo Maciel tomou um lugar à cabeceira da mesa, e com ar fatigado e distante começou a acompanhar o serviço do escrivão.
— Bem; está pronto o termo…
— Sim senhor, então abra a audiência, ordenou o juiz municipal ao meirinho. Este, de campainha em punho, foi até à porta e começou a badalar, passeando na frente da casa, clamando com voz fanhosa: — Audiência do senhor doutor juiz municipal. Audiência do senhor doutor juiz municipal…
Sob a força do sol de fogo, na grande calmaria do mundo, esses gritos estridentes, avolumando-se no silêncio total, aterravam os moradores da “colônia”.
Depois foi apregoado o dono da casa, que entrou na sala, confuso e medroso.
Ordenaram que se aproximasse, e fizeram-lhe perguntas a que respondeu com voz apagada e trêmula. Quando declarou que o pai era morto havia quatro anos, o escrivão resmungou:
— Vejam só… Este herói aqui na posse dos bens, desfrutando-os como já fossem dele… sem dar contas à Justiça, nem à Fazenda Nacional.
Paulo Maciel, desinteressado, levantou-se e disse ao escrivão:
— Seu Pantoja, vá tomando as declarações.
E passou para o quarto, onde os colegas fumavam tranqüilos e preguiçosos, estirados na cama. Tirou o paletó e deitou-se com eles.
Na sala, Pantoja atormentava o colono com perguntas e de vez em quando se interrompia para ameaçá-lo.
— Se você me ocultar qualquer coisa aqui da casa ou das terras, ou do cafezal, tem de se haver com a Justiça… Vocês são finos, mas eu sou macaco velho… são as penas da sonegação… Penas terríveis!
Assim envolvia as suas ameaças nas dobras de termos técnicos, com que ainda mais amedrontava o alemão.
Duas horas levou o escrivão a trabalhar no inventário.
Deram algumas voltas, examinando cada minúcia do sitio; e quando estavam debaixo do laranjal carregado de frutos, notou Paulo Maciel:
— É admirável a ordem e o asseio desta colônia. Nada falta aqui, tudo prospera, tudo nos encanta… Que diferença em viajar nas terras cultivadas por brasileiros… só desleixo, abandono, e com a relaxação a tristeza e a miséria. E ainda se fala contra a imigração!
— Então, pela sua teoria, interrompeu o promotor, devemos entregar, tudo aos alemães?
— Apoiado… comentou o escrivão. É a conseqüência do que diz o Dr. Maciel.
— Sim, confirmou este, para mim era indiferente que o país fosse entregue aos estrangeiros que soubessem apreciá-lo mais do que nós. Não pensa assim, doutor Itapicuru?
O juiz de direito tomou um ar solene:
— Sim e não, como se diz na velha escolástica. Não há dúvida que falta ao brasileiro o espírito de análise. E quando digo brasileiro, refiro-me a todos nós. E que se pode fazer sem análise? É o destino, da Espanha: caiu em nome da filosofia. Não podia entrar em concorrência com um povo analítico…
No dia seguinte, às nove da manhã, o meirinho anunciava ao toque de campainha a audiência dos inventários dos vizinhos de Kraus.
Na sala a juiz municipal e o escrivão estavam no seu posto, à mesa; o promotor e o juiz de direito à janela conversavam, voltados para dentro; em pé, encostados à parede, duas mulheres e um homem, rodeados de crianças, seguiam atemorizados a cena, esperando ser chamados.
— Senhor doutor Brederodes, Vossa Senhoria tem de funcionar como curador de órfãos nos três inventários. Há uns desvalidos que precisam da proteção legal de Vossa Senhoria, disse o escrivão, motejando.
O promotor teve um rizinho de satisfação e veio sentar-se à mesa.
— Não é possível arranjar uma fatia para mim nesta festa? perguntou o doutor Itapicuru, num sorriso idiota.
— Vossa Senhoria sabe que é depois, no fim do negócio, que se precisa de sua bênção. Todos comerão do bolo…
— Viúva Schultz! chamou Pantoja.
Depois de alguma hesitação, uma camponesa alta, ainda moça, se aproximou. Há quanto tempo seu marido é morto? perguntou o escrivão, iniciando o interrogatório diante da apatia do juiz municipal.
— Há dois anos.
— Sempre o mesmo… Ninguém cumpre a lei; aqui todos herdam sem a menor cerimônia… Isto vai acabar. Juro.
Em seguida, passou a tomar as primeiras declarações da viúva, que triste e subjugada por aquele aparato judiciário, ia respondendo docilmente a tudo, O juiz municipal e o promotor, despreocupados da audiência, levantaram-se e foram entretidos para a janela. A mulher, a cada passo, sofria descomposturas insolentes de Pantoja, e um imenso pejo a assaltava.
— Quantos pés de café tem a sua colônia?
— Quinhentos…
— Só? Não minta… senão temos conversa no Cachoeiro.
— Mas, senhor, pode ser que tenha mais ou menos, não contei um por um, meu defunto marido avaliava em quatrocentos,… eu plantei uns cem nestes dois anos.
— Bem, eu arredondo a cifra.
E calado, sem nada dizer à interessada, que, além de tudo, não sabia ler o português, escreveu:
— Mil e quinhentos pés de café.
Continuava Pantoja a lançar os termos do inventário, segundo o seu velho processo de tudo fazer ele mesmo, aumentando descaradamente o valor dos bens para acrescer os seus lucros. Depois de algum tempo, disse à colona:
— Agora pode ir. Daqui a duas semanas apareça no Cachoeiro, no meu cartório, para receber os seu papéis.
A mulher ia se retirando, radiante de alivio.
— Espera lá!… Que desembaraço! Ainda não lhe disse o principal, observou com acento escarninho o “Maracajá”.
Num papel escreveu várias parcelas, somou-as resmungando e disse consigo afinal: — Cento e oitenta mil réis.
— Está direito; olhe leve consigo o dinheiro das custas. Trezentos mil réis. Ouviu?
— Trezentos mil réis!… Trezentos mil réis!… Meu senhor!
— Não tem meu senhor nem nada; aqui não se faz esmola… e dê-se por muito feliz, porque não houve demanda. Se tivesse de meter um advogado, é que havia de ser bonito… Trezentos mil réis. Nada de conversa e bico calado. Se eu souber que vosmecê andou batendo a boca pelo mundo, tem de se haver comigo.
A colona lançou olhos de súplica para os dois magistrados, que continuavam indiferentes a sua palestra. Sem um apoio, esmagada, saiu cabisbaixa da sala de audiência. Pantoja chamou o colono, que esperava a sua vez de ser apregoado. E depois de repetir com ele a mesma cousa, passou a se ocupar da última intimada.
E o inventário foi feito como os outros, com as mesmas extorsões e violências. No fim, quando o escrivão intimou a colona a que lhe desse duzentos mil réis, esta começou a chorar.
— Deixemos de cenas… Querem obrigar a Justiça a trabalhar de graça… Era só o que faltava.
— Mas não posso arranjar tanto dinheiro.
— Venda a casa.
— Sim, meu senhor, vou vender o que tenho para pagar as dívidas de meu marido, dívidas da moléstia e depois trabalhar para outras novas.
— Primeiro a Justiça… Se não quiser nos pagar, não venderá a casa sem o roçado; eu prendo os papéis, e agora vamos ver.
Depois do almoço, os animais estavam selados para a partida.
Ainda não tive a minha conversa aqui com o amigo.
E batendo no ombro de Franz Kraus, que o fitou espantado da intimidade, acrescentou num gesto de irônica cortesia:
— Muito obrigado pela hospedagem, camarada… mas ainda falta uma cousa.
— Que é ? interrogou inquieto o colono.
— As nossas custas, meu amigo. Você pode… E por isso dê-nos logo. Está me cheirando mal o fiado… vá buscar… Quatrocentos mil réis.
O homem vacilou, como para cair.
Vá, amigo, não se espante. Olhe que o negócio podia ser pior… Advogados, demandas, penhoras…
Sob aquela pressão, o colono foi caminhando automaticamente para a casa.
Depois de alguma demora, que os ia impacientando, apareceu o velho Kraus. Tinha os olhos vermelhos, as faces inchadas e rubras. Chorara.
Pantoja recebeu o dinheiro e contou. O colono olhava-o, mudo e abatido. Muito bem. Agora tudo está em ordem. Fiquemos bons amigos. Procure os papéis no cartório, no fim do mês. E montou. A cavalgada partiu.
Em pé, no meio do terreiro, de chapéu na mão, a cabeça ao sol, o colono via com os olhos desvairados a Justiça sumir-se na estrada… E quando ela desapareceu e tudo voltou ao sossego profundo, ficou ele longo tempo com a vista pregada na mesma direção… Subitamente, numa raiva imensa e cobarde, murmurou olhando medroso para os lados:
— Ladrões!
6. A índole étnica, sua aclimatação
As cenas precedentes (Graça Aranha, com simpatia pelos colonos, as narrou, tanto quanto posso julgar, copiando, com sua arte, a realidade da vida) interessam, ainda, porque descrevem alguns traços de caráter fundamentais do camponês alemão, habitante das matas, cujo comportamento parece lerdo, servil e limitado em face da raça mais desembaraçada. Essa aparência contribuiu bastante para que o povo alemão não desfrute de muito grande apreço, mesmo nos círculos brasileiros mais idôneos, o que, aliás, sucede em toda a América do Sul. A sobrestimação da aparência pela população nativa, impede que esta aprecie o amor à ordem, à exatidão, o temperamento grave, o senso religioso do teuto, induzindo-a a olhar essas qualidades, com ódio e desconfiança, como se elas fossem um fardo inútil e desagradável, e a explorá-las, sempre que possível.
Admira que tenha sido tão reduzida a influência das novas condições e do meio estranho sobre o caráter desse punhado de colonos. Os pomeranos, assim como os alemães de outras procedências, que vieram para o Espírito Santo, geralmente conservaram seu antigo modo de ser.
Nem o sol dos trópicos, nem o ar das matas que se espraiam pela região acidentada, modificou, sensivelmente, o temperamento deles. É difícil de dizer se a atuação da luz mais intensa os tornou mais vivazes, ou se a suavidade e a regularidade da temperatura os fez mais apáticos. Ou haverá a eliminação recíproca de ambos os fatores?
Enquanto o álcool não estimula e não embriaga os espíritos, as festas decorrem comedidas e calmas. Dança-se muito e continuamente, mas os pares parece moverem-se com absoluta indiferença, ao som de melodias monótonas, que lembram a música dos negros, tocadas à harmônica. Embora o clima apresse o desenvolvimento sexual, embora, talvez, aguce a sensualidade, não atiçou as paixões. Os colonos parece terem se tornado mais sérios e mais tranqüilos.
Permaneceu a velha calma e a circunspecção dos pomeranos; também a escrupulosidade, a fidelidade ao dever, a lealdade e a honradez. A economia predominantemente fechada e a rigidez da organização das comunidades motivam que, praticamente, não haja, entre os colonos, crimes contra a propriedade. Na estrutura econômica reinante não há lugar para a prostituição.
Já são mais freqüentes delitos contra a pessoa, principalmente ofensas e pancadarias. São, ordinariamente, uma conseqüência do uso do álcool. Homicídios e atos análogos de violência são, em virtude da própria pequenez da população, muito raros. Nesse domínio, os colonos praticamente só contam com suas próprias forças, pois as “considerações de ordem mercantil” são as mais ponderáveis para os encarregados da Justiça, quando eles não veneram o princípio do laisser-faire. Assim, revivesceu um pouco, a vedeta. É expressivo o caso seguinte, sucedido pouco antes de minha chegada ao Espírito Santo, e que foi o grande acontecimento do dia: Um jovem alemão, caixeiro, ofendido por um colono prostrou-o, a tiros, pelas costas. Foi posto na cadeia. Mas os amigos e parentes o “resgataram”. Quando voltou à cena, foi abatido a bala. Os autores tiveram que se haver com a Justiça, mas souberam, por sua vez, resolver o caso com dinheiro…
A contingência de o colono contar apenas com seus recursos, sobressai ainda mais no seu labor. Não pode, com efeito, prescindir da ajuda dos vizinhos, do ajuntamento, mas, de ordinário, dispõe somente de suas próprias forças.[ 11 ]
Por isso, cresceu a sua altivez. Esse sentimento não se manifesta diante das autoridades do país — uma triste herança da servidão de outrora — mas, fora isso, transparece claramente. Ele é altivo mesmo diante de outro de sua estirpe. É muito sensível a ofensas. Não conhece diferenças sociais. Qualquer pessoa, até o vendeiro, o padre e o viajante, ele cumprimenta com um aperto de mão e trata por tu. Gosta do anexim: Gleiche Brüder, gleiche Kappen.[ 12 ] Diferenças de riqueza não têm nenhuma importância na vida da comunidade. Não se notam ambição e afã de poder na eleição do mordomo da igreja, conforme demonstra o caso de se ter escolhido para o cargo um membro, muito dado à bebida, a fim de pô-lo no bom caminho mediante as novas obrigações assumidas. Nalguns casos já se notam indícios de transmissão por herança do lugar de mordomo. São pouco autoritários para com os filhos. Raramente batem neles. Logo que estão crescidos, os filhos se tornam independentes, o que as condições econômicas permitem. Cantam-se muitas canções cujo tema é a desobediência dos meninos.
A autonomia, o senso de independência, a altivez ampliaram-se no novo meio, uma conseqüência, naturalmente, não das condições climáticas, mas econômicas e sociais. A ação modeladora do ambiente diverso restringe-se, praticamente, a esse complexo de qualidade de caráter.
Do ponto de vista intelectual, a escassez inicial de escolas não deixou rastros visíveis, com exceção de um analfabetismo passageiro. As superstições que grassam, intensas, foram herdadas dos antepassados. Aprenderam deles a rezar animais doentes, a ver na comunhão um remédio para o organismo humano. As almas do outro mundo e os agouros de morte, pertencem às mesmas espécies de fantasmagorias que fazem suas aparições na região rural da Alemanha. Parece que não aceitaram nenhuma das superstições, ainda mais disparatadas, dos pretos.
É difícil verificar que a vida singular da floresta tenha estimulado a fantasia. O colono tem um modo de pensar seco e sóbrio. É o que revela, mas suas manifestações, no seu humor, do qual a seguinte amostra é expressiva: Depois das refeições não se deve esquecer de fumar. “E isto” está na Bíblia.
Num sentido, o poder imaginativo tem florescido extraordinariamente: lembro-me, naturalmente, dos famosos mexericos, em que são postos, com freqüência, na berlinda, o pároco e sua família. O que é possível no gênero de invenções mostra o boato que se espalhou, durante a viagem do autor destas linhas ao Espírito Santo: ele era o príncipe herdeiro alemão, que viajava incógnito, e, em breve, viria buscá-lo o imperador em pessoa.
Terá sido o desejo que motivou, no caso, a notícia? Não acredito muito. A estreiteza do horizonte espiritual impede que surjam e se desenvolvam idéias patrióticas. Como já se mencionou, existe um forte sentimento racial, mas a sua natureza é puramente instintiva. Se os colonos ainda se sentem alemães, depois de haver três gerações que estão radicados em terra brasileira, não expressam, por isso, nenhuma saudade pela velha pátria, ou a consciência de a ela pertencer culturalmente. Pelo contrário! Muitas vezes, ouvi dizer que se vive de maneira infinitamente mais agradável e melhor no Espírito Santo, no Brasil, do que na Alemanha.
Falando com franqueza, é, em grande parte, a indiferença do povo e do estado que os acolheram, no tocante à educação, que permite aos colonos se manterem fiéis à sua língua e à sua fé. A estreiteza espiritual, que impede o aparecimento de uma consciência nacional, é, entretanto, ouso dizê-lo, um firme reduto da alemanidade, no Espírito Santo.
Entram em jogo, ainda o fator vontade: um apego tenaz ao que vem do passado, o senso conservador do camponês germânico. Com esse espírito de continuidade, sustém-se a organização da comunidade e transmitem-se usos e costumes antiquados, como se fossem doenças crônicas e eternas.
Há um magnífico reverso: manteve-se vigorosa a disposição para o trabalho, persistiu inalterada a energia para as atividades econômicas. Quando muito no clima quente e úmido da região baixa, esse vigor começa a relaxar-se. Dentro da estrutura econômica dominante, não foi possível desenvolver-se o instinto de lucro, o que não significa debilitamento.
Em síntese: o camponês alemão, nas matas do Espírito Santo, está diante de nós como uma imagem robusta. No curso de três gerações, o clima brando não o amoleceu nem o debilitou, nem o consumiu, o penoso trabalho na floresta. Ao contrário, ele saiu retemperado da luta pela existência. Ainda continua a ter, juntamente com as pequenas fraquezas e os grandes pecados, as virtudes magníficas do germano: a constância e a tenacidade, a fidelidade e a contingência, a piedade e a sinceridade, o senso de independência e o orgulho. Lá está ele como a sentinela avançada não do domínio político da Alemanha, mas da índole alemã e da cultura alemã sem, por certo, suspeitar da grandeza e do poderio do império, da magnificência e do esplendor das criações do espírito alemão.
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NOTAS
Ernst Wagemann (autor) nasceu em 18 de Fevereiro de 1884, em Chañarcillo, Chile, faleceu em 20 de Março de 1956, em Bad Godesberg, Alemanha. Foi economista político e estatístico muito atuante na Alemanha a partir dos anos de 1920. Para mais informações sobre o autor clique aqui.