Nosso destino não é espantoso por irreal; é espantoso porque é irreversível e de ferro. O tempo é a substância de que estou feito” (Outras inquisições, Jorge Luis Borges).
Para Bergson, a verdadeira realidade do tempo é sua duração; o instante é só uma abstração, sem nenhuma validade. Para Roupnel, a verdadeira realidade do tempo é o instante; a duração é apenas construção. Para Einstein, o instante bem precisado passa a ser um absoluto.
Gaston Bachelard, ao se referir à poesia, “busca o instante. Só necessita do instante. A poesia cria o instante. Ela é o que se desenvolve verticalmente no tempo das formas e das pessoas”.
O amor dispõe as premissas. Porque é ritmo. E se nutre de imagens incessantes. A boca do que ama pode repeti-las, num ritual de gerações. E pelas gerações nos descobrimos.
A maturidade é quando divisamos perdas. Sabendo evocar o nome secreto do universo, através dos que muito amamos.
É o gesto de Rilke, nos Sonetos a Orfeu. Foi o de Goethe na Elegia a Marienbad. E, agora, esta Elegia de Maiorca, de Roberto Almada.
Cristiano Martins, que, magistralmente, estudou e traduziu a elegia goethiana, feita em honra de Ulrica de Levetzow, observa: “O motivo predominante no poema é o da despedida. É ele um canto da despedida — mas da despedida definitiva, da despedida-adeus, e não da simples despedida ou da despedida-tornar-a-ver, pois que se exprime sob a forma de uma elegia, isto é, de uma lamentação por uma dor profunda, uma perda irreparável, ou sentimento equivalente.” (Goethe e a Elegia de Marienbad, p. 33-4, Ed. João Calazans).
E eis que também o coração fechou-se —
o coração que, dantes, a seu lado,
como se aos próprios astros se igualasse,
fora senhor de um bem ilimitado.
O desânimo, a dor, a agitação
caem sobre ele, agora, em turbilhão.
(Elegia de Marienbad)
O mesmo tom, ou turbilhão de perdas, marca o texto almadiano. E o instante passa a ser absoluto. Perene.
II
A Elegia de Maiorca compõe uma sinfonia, de vinte partes, desdobrando-se em duetos ou dísticos, a formar, em regra, oitavas de versos, variando ritmicamente, através de massas sonoras, como se construíssem um templo.
Abre em tom geral, exprimindo a passagem das coisas.
De infindas perdas faz-se a arribação
desses amores todos que se vão
pra outros lugares, mares sem velames.
Já não se ocupam de ti por mais que os ames.
Almada trata da transitoriedade com rimas ricas, aliterações, elipses, acompanhando o cortejo da evasão.
O segundo movimento caracteriza-se, animicamente, pelo andar das vagas, onde se verifica a maestria lírica, a beleza das metáforas, a onomatopeia, juntando o ruído das aves e naves (com justapostas imagens), os rastros.
Qual num longínquo voo, vai a ave às cegas
na vaga navegando em que navegas.
A imergir-se no ir-se, ao largo e após
o que imergidos e idos fomos nós.
Na terceira parte, porém, os achados de grande plasticidade, o barulho das águas, a riqueza fônica (interna) entre “sais velhos” e “ais tão velhos” ou a surpresa bem posta de “eólios” e “olhos”, produzem outra belíssima seqüência.
São águas de ventos mais que eólios
a se afogarem aqui nos nossos olhos.
Elas trazem nos sais velhos arcanos
e ais tão velhos quanto os oceanos
de içadas vagas contra o lhano e o rés
das montanhas, no uivo das marés.
No quarto poema, o ritmo denota intimidade. O gesto amante se amortece:
A perna sobreposta à perna em calmo pouso.
E a sensualidade que se detém no verso, até o desfalecimento:
Foi-se, afinal, num extremo arroubo, e indo
desfaleceu-me aos braços se esvaindo.
Impressiona a musicalidade, o tom de partitura, o comprimento vérsico, o retecer melódico que persiste na quinta parte, com novo ritmo. Mais duro, em litania.
Encurta-se a rédea do sexto poema, com versos de seis sílabas.
As horas decimais,
foram momentos idos
como frutos consumidos
de pardos olivais…
A nona parte (rimas em ava e ia logra reproduzir a pungência agônica. O “trêmulo” e o “arfar” reforçam o tremor, calafrio, em que a amada e a tarde se extinguem. E essa mesma cadência é reiterada na parte XVII, com inversão dos dísticos.
Da décima à décima quinta parte, reacendem-se as lembranças da ausente, suas circunstâncias, objetos, dias, semanas, amigos. Os derradeiros instantes daquele domingo festivo e funeral. Ressalta-se o trecho XIX.
Ah, como nos doíam, se irem ledas,
sentidas perdas do que nelas iam.
Em teu sangue, rubro, de águas malsãs,
foram-se as manhãs. Era outubro.
As três partes finais amalgamaram a explosão sinfônica, com “outubro” (mês da morte), repetido em acentos de vária liberdade rítmica. Como se resumissem a contingência humana. E bate o refrão:
Em teu sangue, rubro, de águas malsãs,
foram-se as manhãs. Era outubro.
Continuará outubro. Continuará. Tal o dobrar de sinos. E esta Elegia de Maiorca persevera doendo em nós: alta, nobre, universal.
[Apresentação do livro Elegia de Maiorca, de Roberto Almada, Massao Ohno Editor, São Paulo, 1991.]
———
© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
———
Carlos Nejar (Luís Carlos Verzoni Nejar), nasceu em Porto Alegre, RS, em 1939. Formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS. É poeta, ficcionista, tradutor e crítico literário brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filosofia. Estabeleceu residência em Vila Velha, ES, por vários anos, mudando-se depois para o Rio de Janeiro. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)