Dia a dia as pessoas escrevem mais poemas — apesar de não se inserirem na busca do Graal quinta-essencial desta arte — e se dizem poetas. Sem que nenhuma procura do cálice perdido que colheu o sangue de Cristo dê um sentido qualquer ao caos em que se inserem seus versos, dia a dia mais pessoas se dizem poetas. E, no entanto, até o caos necessita da busca de uma teoria que lhe permita rivalizar com a lógica quântica e se fazer linguagem.
Esta atitude parte de uma confusão, de um pecado original da literatura: uma pessoa alfabetizada acha que, só por isso, pode escrever literariamente. É mais incomum que alguém se proponha como músico ou artista plástico graças à sua capacidade de assobiar ou de lançar tintas sobre uma tela. Mas quem escreve bem talvez não seja, necessariamente, um escritor. No máximo, por delicadeza, os caval(h)eiros da távola redonda poderiam lhe conceder o título de escrevente ou de escrivão. Escrever não é técnica nem emoção. Talvez, quem sabe, o gesto que inaugura os primórdios da existência quintessenciante?
Há algo de essencial que emerge da busca em que todo o ser original do poeta se insere, entrelaçando-se inseparavelmente ao texto, palavra que, etimologicamente, significa tecido e se aparenta com teia, trama, tela. Enfim, teia em que alguns são capturados, se deixam capturar ou se capturam como mera presa, espectadores de um espetáculo em que são marionetes distantes daqueles que manipulam os verdadeiros fios que dão sentido e forma ao tear literário. E a forma é sempre a realização do antes impossível executado com uma competência harmônica capaz de transformar mesmo o horrível em belo. Forma é trans-forma.
Na teia textual os fios são palavras em harmônica trama. Não há opção para quem vive no tecido da palavra: nela se acha ou se perde nela e por ela. Ou trama para a palavra ou a palavra trama contra a pressa da presa. E tramar a favor significa resgatar a ressurreição do sentido descoberto do código-primeiro: a palavra, linguagem das linguagens, pois ninguém pensa além do que ela possibilita. A não ser o poeta, cuja função exploratória, exprimindo o inexprimível (cf. Oscar Gama Filho, Congregação do Desencontro, Prefácio ao Artista, l980, p. 4), leva a humanidade a aumentar a sua capacidade de expressão e a pensar além do que, humanamente, poderia.
Inumana atividade do poeta: uma nova ciência precisa de novas palavras e conceitos para expressar o continente epistemológico recém-descoberto — ou inventado. A língua nos obriga, ditatorialmente, a pensar dentro de certas limitações e determinações do idioma. Se, para ser original, o poeta subverte o código estético dominante — revolucionando a gramática, a sintaxe, os valores existenciais ou criando palavras e inter-relações —, então ele também contribui para aumentar a capacidade de expressão e o alcance do pensamento da humanidade pela criação da nova linguagem que a sua poética pessoal deve, necessariamente, propor. Além desta primeira, a poesia também tem as seguintes funções:
2 – Transformação em código estético de qualquer tipo de ocorrência, possibilitando sua incorporação ao tesouro humano e contribuindo para a preservação de uma reserva das características humanas que ajuda a alterar.
3 – Criação do futuro, graças ao seu papel na mudança do mundo por meio do lastro cultural fornecido pela originalidade. Esta é uma função muito mais matemática — no sentido de análise combinatória — do que mística. A busca de originalidade instaura uma ruptura com o presente e faz com que sejam criados, simultaneamente, inúmeros futuros alternativos possíveis, com novas formas de vida propostas. O futuro real é um subconjunto derivado do arranjo, da combinação ou da permutação dos elementos do conjunto sonhado.
Por mais real que pareça uma indústria, houve um arquiteto que a idealizou em um projeto antes de edificá-la. Em suma, o real é construído por sonhos que se transformam em “realidade”. E são tantos os fios-possibilidades originais e novos do continuum existencial propostos pela arte, que alguns acabam acontecendo — entrelaçando-se no tecido do continuum —, em um processo de deslocamento e de condensação metaforonímico, por meio de arranjos, de combinações e de permutações de seus elementos.
A arte propõe um conjunto finito mais-do-que-estético — contudo, paradoxalmente, suas interseções com a realidade o lançam, big-bang, na mesma expansão infinita do universo — e dele as pessoas extraem, aleatoriamente, o subconjunto de elementos que comporão os caminhos futuros.
4 – Fornecimento de um caminho (tao) para a iluminação (satori) superior ao da “realidade”.
Pois é. O escrever bem não é tudo. Por mais espantoso que seja, há poetas e ficcionistas consagrados que escrevem “mal”. Cometem, por exemplo, erros básicos de ortografia, de sintaxe, de virgulação e de colocação de pronomes, entre outros tantos. E, no entanto, são, de fato, escritores, no que a literatura tem de essencial documento de busca do ser.
Esta procura se derrama em um sentido que contamina a sua vida, dotando-a de insuportável beleza, de insuportável prazer — que as mulheres conhecem tão bem — porque constante e interminável: 24 horas por dia de maldição bendita que ilumina a luz da visão. Para o artista tudo à beleza se destina: e lavar as mãos — ou não — acaba sendo boa ou má rima. O poeta não consegue abandonar a arte e a poesia porque ela é que o faz no que a gente faria. Mesmo alegre, sua alegria é falsa. Mesmo triste, sua tristeza não passa de fábrica de livros para as traças. E o que para todos se esgota quando se esgota todo o seu mal, nele não termina nem quando ganha rimas e sai no jornal. Sim, no poeta o mal continua e vira fábrica de outros males e de ruas calmas, bucólicas, guerreiras mas estranhas. Ruas que lentamente escorrem de eternas entranhas abertas em sangue e carne vivos nele que, esbranquiçado, perde a vida e vai virando livros.
As coisas têm uma equação de palavras. Ninguém pensa além da linguagem. Se nós descobrirmos qual é a equação mais impossível de palavras das coisas, nós teremos a palavra perfeita que abre todas as portas, chave-mestra atrás de que está todo poeta — e teremos todas as coisas. Por trás dela, reflexo em decúbito no espelho, a beleza mostra, nos seus versos, a soma que conduz à perfeição.
A poesia, no que ela tem de projeto mais radicalmente distante do real e do pragmatismo narrativo — com os quais só tem compromisso se o desejar —, permite que existam poetas que jamais escreveram uma linha. Afinal, não há poetas entre os analfabetos do naipe dos repentistas e dos cantadores populares? Lembremos, também, que os primeiros poetas — os aedos e rapsodos gregos — cantavam seus versos ao som da lira. Não os escreviam, em geral, porque não sabiam ler. Entretanto, nos legaram a métrica, o ritmo, a musicalidade, as figuras, a imagística e os símbolos. Até mesmo o lirismo e o lírico surgem da lira, instrumento musical que usavam para acompanhar suas obras — já que o banquinho e o violão ainda não tinham sido inventados.
Poeta, enfim, é aquele que as musas dotaram do dom de captar o mundo como uma construção magicamente bela de palavras. Transformar a poesia — estado contínuo do e no poeta — em poema nem sempre é possível. Ou desejável. É a inserção do ato poético que define o poeta. Não o poema. E, infelizmente, este é um tempo de muitos poemas e de muito pouca poesia.
Só a sensibilidade treinada reconhece o verdadeiro poeta. O derradeiro poeta copia a lição do irmão analfabeto e dos aedos e rapsodos. Ele não se preocupa em transformar em poemas a poesia de sobra armazenada no arquivo sensorial. Ingressa direto na segunda fase do poeta, a maturidade, em que impera a preocupação com o silêncio, a pausa e o oco. Contudo, a maturidade não chega a ser indispensável. Há os que chegam à velhice sem passar por ela. Outros permanecem fixados em uma juventude povoada de mal-do-século.
Falo destas etapas no Prefácio ao Artista de meu segundo livro de poemas, Congregação do Desencontro (Vitória, Fundação Cultural do Espírito Santo, 1980, p. 2):
Na primeira, o jovem (escritor, músico ou artista plástico) tenta moldar a palavra, o som ou a forma.
No segundo estágio, o da maturidade, o artista passa a tentar modelar o silêncio, a pausa e o oco.
Na terceira fase, a velhice é alcançada quando o artista passa a dominar o silêncio, a pausa e o oco tão bem que compreende a supremacia que eles têm sobre os fatos. Pára de ansiar por trabalhá-los e modificá-los. Percebe que só há música se existirem pausas entre as notas: sem as pausas, teremos um grande acorde no lugar de uma sinfonia. Sem o silêncio, as palavras perdem a sua moldura, seu molde, seu sentido, suas entonações e sua necessidade. Sem o vazio ou o oco para preencher, para que retorcer as espaços-formas no sentido de um buraco na alma — projetada no meio ambiente — a ser ocupado? Ele está cheio de si de arte. Compreende que há um desafio maior e, mais cedo ou mais tarde, adere à observação como atitude. Cala-se, devorado pela própria emoção destilada, devorado porque não há mais mistérios técnicos: sabia pintar com a mão direita e agora já aprendeu a dominar a esquerda (Gauguin). Cala-se porque a realidade se transforma, incessantemente, em livros que não escreverá, músicas que não comporá e quadros que impintará. E que, no entanto, sente vivos, dentro de si, como a possibilidade de expressar a perfeição da maneira irreproduzível que só a quinta-essência possui.
Por último, o artista morre porque seus seis sentidos se transformam em obra de arte em moto-contínuo.
Outra questão importante é a da musicalidade: o poema pode ser musical ou dotado de musicalidade, mas não possui música.
Anteriormente, vimos que, quando de seu nascimento, nos primórdios homéricos, os poemas eram cantados pelos aedos e rapsodos. O fato de serem acompanhados pela lira e dotados de melodia foi o responsável pela criação do sistema métrico greco-latino. Surgiram, por isso, elementos como o metro, o ritmo e os acentos. Posteriormente, as pessoas perceberam que os versos soavam bem mesmo sem música. O poema, então, se tornou independente da melodia e, apesar de sair do campo da música, manteve a musicalidade. O rap moderno executou o caminho oposto e optou por abolir a melodia em prol do ritmo e da poesia.
A visualidade também é uma característica presente desde a antiguidade clássica. Os gregos chamavam de technopaegnia a trabalhos como os de Símias de Rodes (c. 300 a. C.), que produziu poemas em forma de ovo, de asa e de machado. Os romanos os denominavam de carmen figuratum, que podemos traduzir por poema figurativo. Guillaume Apollinaire (l880-1918) os intitulou de caligramas. Venâncio Fortunato (530-c. 600) criou textos em forma de cruz. George Herbert (l593-1633), de altar e de asa. William Blake (l757-l827), de rosa. O brasileiro Fagundes Varela (1841-1875), de cruz. Lewis Carroll (1832-1898), em Alice no País das Maravilhas, preferiu reproduzir o rabo de um rato. Mallarmé (1842-1898) experimenta suas “subdivisões prismáticas da Idéia” no genial Um Lance de Dados (Un Coup de Dés Jamais n’Abolira le Hasard). Os autores barrocos portugueses e brasileiros (séculos XVII e XVIII) possuem inúmeros poemas visuais, entre os quais se destacam os de Manuel de Andrade de Figueiredo (c.1674-1735), primeiro vate nascido no Espírito Santo.
Por último, resta falar da literatura como produtora de um caminho (tao) para a iluminação (satori). Ambos são conceitos preciosos do pensamento zen que apresentam semelhanças com o processo de desenvolvimento de um artista. No oriente, as pessoas que desejam atingir o satori se dedicam, por tempo indeterminado, a um aprendizado de técnicas ligadas a atividades tão diferentes quanto a cerimônia do chá, as artes marciais, a caligrafia ou a pintura, entre inúmeras mais. Entretanto, reproduzindo o que acontece no domínio estético, segundo Fritjof Capra, embora “todas exijam uma perfeição de técnica, o domínio efetivo só é alcançado quando se transcende a técnica e a arte se torna uma ‘arte sem arte’, brotando arraigada no inconsciente” (O Tao da Física, São Paulo, Cultrix, 1988, p. 98).
A iluminação, portanto, não é atingida pelo mero domínio técnico. Nem o melhor caminho é o da meditação sentada — o zazen. Há diversos canais de acesso a ela e muitos parecem até mesmo opostos já que, para alguns, ela ocorrerá em um nível emocional e, para outros, em um nível mental ou intelectual.
— Os espontaneístas negam o aprendizado técnico como se não tivessem absorvido informalmente o saber de sua arte que se encontra diluído culturalmente no caldeirão saturado de informações que constitui a atmosfera da civilização. Contudo, o estudo técnico convencional não é necessário para se atingir o satori.
— Aqueles que pregam uma literatura objetiva e concreta abrem mão do orgasmo que há na inspiração misteriosa que gera um poema, em uma lição de desapego absolutamente zen. Quando aparentam se desligar da emoção, na verdade a acessam em um outro nível, ideal, radical e contido, que não chega a ser uma iluminação sem luz. Este exercício de ascese estaria mais próximo de uma iluminação ideal e espiritual, uma ultraluz, desencarnada, sem corpo, sem o gozo da luz ou sem a luz do gozo.
Nossa busca do satori pode ser entendida como zen, no sentido de que ele é o indefinível, o eternamente impossível e o possível desde sempre: seria como cavalgar um cavalo em procura do cavalo no qual se está montado.
A iluminação é o raio de luz que dissolve a noite em que vivemos, permitindo que enxerguemos uma realidade superior ao real em que nos movemos aos trancos e barrancos.
E, convenhamos, se todo cavaleiro andante em busca do graal necessita de visões, as Iluminações são indispensáveis para que a saga prossiga. A existência pode ser comparada a um livro ou a um filme. Sem a poesia para criar boas cenas e belas frases no espetáculo de nossa vida, o tédio invade os sentidos, o público se retira e passamos a ter vontade de abandonar o filme de nós mesmos para ingressarmos em uma outra aventura, semelhante a um “Além da Imaginação” além da natureza, nos limites do além-natural.
Eis então, senhoras e senhores, o graal: a beleza. Podemos não ser felizes e até tristes, mas há beleza também nas cores, vistas ao microscópio, das chagas do câncer. Ela nos redime e nos abençoa com a sua maldição continuada que nos conduz em direção ao reino da beleza da luz.
[Publicado na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, fase VII, outubro-novembro-dezembro de 1996, Ano III, nº 9, p. 48.]
Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)