Vitória, 5 de novembro de 1954.
Meu prezado Eurico:
Confesso que estava apreensivo com as reações do seu espírito, em face do amargo e desalentador desfecho das urnas. A sua carta, porém, de 22 do mês último, dissipou completamente essa dúvida pela serenidade com que recebe Você os fatos e nobremente os interpreta. É um depoimento elevado que honra o seu autor e confirma em mim a evidência de que havíamos escolhido o homem certo para colocá-lo à frente do nosso Estado. Mas a luta eleitoral nos foi adversa e a maioria dos sufrágios, inconscientes e cegos, fez pender a balança para o lado mau.
Qual a razão desse desatino coletivo? Note-se que não indago os motivos da derrota, que esses poderão ter explicações diversas, mas procuro descobrir o sentido filosófico de tal transmutação. Nem me preocupo com a sorte momentânea do pleito, que essa obedece aos azares das pugnas eleitorais. Tento, apenas, alcançar o porquê dessa profunda distorção dos destinos de nosso Estado. Incontestavelmente estávamos no lado bom. Pelos nossos métodos de ação, pelos princípios que defendemos, pelo sentido construtivo que imprimimos à nossa atuação político-administrativa. E, por que não dizer, pela superioridade dos valores humanos que formavam em nossas fileiras.
E no entanto perdemos. O povo preferiu outros estilos e ratificou o predomínio de concepções e condutas diametralmente opostas. Houve uma verdadeira subversão de valores, uma completa reviravolta no julgamento dos códigos de ética até então vigentes. O que era mau passou a ser bom, e o que representava ou parecia representar um bem sofreu o cruel impacto da execração e do repúdio. Deve existir, e certamente existe, uma finalidade oculta no desenrolar do novo enredo que a História está elaborando às nossas vistas. Porque o fenômeno é nacional, e talvez mesmo universal. Prosseguiremos nos mesmos desviados roteiros, ou retomaremos a cadência espiritual e constante dos capítulos anteriores? Só a Providência Divina, indecifrável em seus desígnios, poderá responder-nos.
O certo é que estamos agora em uma encruzilhada. O Brasil paralisou. A máquina administrativa entrou em síncope. Ingressamos, de súbito, em um período de depressão econômica. As massas, já insatisfeitas pela falta do supérfluo, gritarão amanhã as suas rebeldias pela inexistência de recursos com que atender às suas necessidades essenciais. Enquanto isto a opinião pública ainda se preocupa com detalhes do crime da rua Toneleros [O atentado contra Carlos Lacerda que acelerou a queda do governo Vargas.] e os políticos se divertem nas divagações sobre o futuro pleito presidencial da República. Chegaremos lá? Esperará o povo ainda um ano para repetir nas urnas o seu protesto mudo contra o poder e contra os governos? Ou sairá pelas ruas, muito antes disso, traduzindo em violências as suas reivindicações e a sua revolta?
Essas as indagações que me faço a mim mesmo, com o coração opresso e angustiado pela sorte do nosso Brasil. E ante perspectivas tão sombrias, que praza ao Céu não se concretizem, o episódio recente de nossa desventura política perde significação e quase desaparece. Se nada acontecer de pior, penso como Você que recuperaremos, com facilidade, a posição perdida. Os nossos adversários não possuem fôlego suficiente para a sobrevivência de um quatriênio. E contra eles funcionará, com mais intensidade ainda, o impacto do anti-poder, que é impessoal, volúvel e caprichoso.
O slogan a ser adotado pelo Partido Social Democrático local deve ser, assim, o seguinte: “A próxima será nossa. Vamos à forra.”
Após mimeografada, a sua carta está sendo distribuída a todos os diretórios. As impressões recolhidas dos amigos que a leram se revestem de entusiasmo, louvor e admiração.
Aguardamos todos, com ansiedade, a sua vinda em dezembro para o toque de reunir e o desensarilhar das armas.
Até lá, com a nossa afetuosa visita a D. Alba, receba você o abraço cordial de fraterna estima do sempre amigo.
[In Cartas selecionadas – Jones dos Santos Neves. Vitória: Cultural-ES, 1988.]
Jones dos Santos Neves graduou-se em Farmácia no Rio de Janeiro e, de volta a Vitória, casou-se, em 1925, com Alda Hithchings Magalhães, tornando-se sócio da firma G. Roubach & Cia, juntamente com Arnaldo Magalhães, seu sogro, e Gastão Roubach. A convite de interventor João Punaro Bley, em 1938 funda e dirige, juntamente com Mário Aristides Freire, o Banco de Crédito Agrícola (depois Banestes), tendo depois disso seu nome indicado juntamente com o de outros dois, para a sucessão na interventoria. Foi então escolhido por Getúlio Vargas como novo interventor, cargo em que permaneceu de 1943 a 1945. Em 1954 retomou seu trabalho no banco, chegando à presidência, sendo, em 1950, eleito governador do estado. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)