Chegou o dia da inauguração. Gravata? Nem pensar. Vai de paletó mas sem gravata. Era jovem e a ausência daquele inútil complemento burguês em sua roupa dava-lhe um certo ar transgressor, rebelde, próprio aliás de quem estava disposto a ajudar na inadiável reforma do mundo. Penteou os cabelos com um pouco de brilhantina, porque também era preciso não exagerar nas excentricidades, e foi para a rua fazer hora, esperando o momento da inauguração.
Um grande dia. Vitória, a cidade, curvava-se diante da Nação de Jucutuquara com a estréia de novo cinema, ao pé da Pedra do Bode e, mais importante, a cinqüenta metros de sua casa.
Bondes lotados despejavam citadinos e esposas com seus vestidos recendendo a alfazema. Muitos, um tanto incrédulos, buscando conferir a grande novidade.
O Trianon representou uma espécie de rebelião nos costumes. Todo mundo sabia o que era próprio em matéria de cinema na capital do Espírito Santo, na altura da metade do século XX. Às vinte horas de todos os dias, era possível cumprir um digestivo programa de cinema onde o confortável happy end era tão certo como o nascer do sol. Filmes vindo somente de Hollywood e que chegavam à cidade, em média, dois anos depois de lançados.
A ponta da dúvida quanto à inexorabilidade desse item dos sagrados estatutos do lazer provinciano e de outros fatos estabelecidos só começou a aparecer alguns anos depois da Guerra. Umas certas reuniões no número 29 da rua Cerqueira Lima, no Centro, resultando em telegramas veementes reafirmando que o petróleo era nosso e coisas similares, sinalizando que não se aceitava mais o mundo como um quadro acabado. E então?
Então quando aquele francês, o Monsieur Delanos, por volta de 1947, contratou o italiano Bortoluzzi, ambos recém-chegados da Europa do pós-guerra, para construção de um prédio onde seria instalado um cinema, abriu-se uma possibilidade de mudar fatos estabelecidos quanto a um dos itens pétreos do lazer da cidade. Seria mesmo possível assistir filmes, verdadeiros filmes, fora do Glória, do Carlos Gomes ou do barracão do Politeama? Filmes feitos na Europa, como se sussurrava? Olha, queria ver. Seriam aceitáveis cenas em que os personagens dissessem, com naturalidade, por exemplo, uns versos que acabara de ler num certo livro? Havia um trecho assim: “Les parfums du printemps le sable les ignore: Voici mourir le mai dans les dunes du Nord.” Como soariam palavras assim no cinema? Como seriam traduzidas? Seu francês era curto mas desconfiava que aquelas palavras carregavam um grande lastro de beleza. Mas não era tanto a tradução que lhe importava. Estava interessado em sentir como esses bárbaros vocábulos neolatinos soariam numa sala de cinema. No caso de filmes italianos, o caso era impensavelmente mais sério. Imaginem um intérprete, um ator, dizendo vieni qua (como a nonna, lá na montanha) ao invés do adequado come on, uma castiça e (julgava) insubstituível expressão cinematográfica?
M. Delanos andava de um lado para outro, num nervosismo de pai que se mata de preocupação com o filho que vai nascer. Toda Vitória está ali, endomingada. Os homens, embora corretamente vestidos em seus ternos e gravatas sóbrias, acompanhados de suas elegantes esposas, trazem, como ele, um certo tempero de transgressão pela heresia de estarem num cinema fora do circuito normal. Um certo gosto de aventura vivida na periferia da cidade.
De repente, uma novidade. Bate um inesperado gongo para anunciar o início da sessão inaugural do Cine Trianon. Logo depois, mais surpresas. Luzes presas no teto vão se acendendo alternadamente. Primeiro a sala é inundada de verde — ah! oh! oh! — depois, vermelho. Um azul intenso nos transporta a todos para a beira do Empíreo… A platéia citadina e os clãs jucutuquarenses não resistem: irrompem numa prolongada e consagradora salva de palmas. Consuma-se a transgressão.
Santa ignorância. Seus receios eram completamente infundados. Havia mesmo um cinema neolatino. Mais: com uma linguagem renovadora. Um cinema que, nas especiais circunstâncias do pós-guerra, falava mais perto do ouvido da alma, com linha direta para o coração.
Agora era possível dar adeus àquele obsessivo dobrado (que se pretendia vibrante) do maestro John Philip Souza. Um dobrado que, marcialmente, ao término das sessões dominicais do Glória, nos tangia a todos, sem cerimônia, em marcha acelerada para o cinza da segunda-feira. Uma espécie de chamamento à ordem após os derramados finais felizes dos filmes, avisando que nossa quota semanal de ilusão estava esgotada.
“Um monumento. Um monumento a M. Delanos.” Esta foi a conclusão de uma pessoa ligada a cinema, séculos mais tarde, numa conversa de restaurante, no Rio. José Carlos Oliveira, jucutuquarense ilustre, e ele, desenvolvendo odisseias em torno do Trianon. O cineasta, boquiaberto. Talvez até tivéssemos exagerado um pouco nas loas a nosso templo cinematográfico, envolvidos pela bruma da saudade. É possível. Mas a sugestão do cineasta não era exagerada.
[Transcrito de Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.]
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)