Pedro acabara de tomar um cafezinho requentado, na cozinha da delegacia, quando D. Lenilda informou:
“O homem chegou. O senhor pediu para avisar, estou avisando.”
“Como está o visual da multifigura?” perguntou Pedro.
“Com aquele terno azul-claro, aquela camisa cor de cenoura, a gravata vermelhona e óculos marrom espelhado,” disse Lenilda, com um risinho significativo.
“Psicologicamente, o que isso quer dizer?” cutucou o escrivão.
“Quer dizer, seu Pedro, que o homem está entre a cruz e a caldeirinha.”
“Traduza pra mim, ó pitonisa!” pediu o escrivão.
“Ele tanto pode dar um berro de raiva como um grito de sastisfação. Depende do assunto.”
“Já entendi, suave Lenilda. Não se admire se ouvir o tal estrondo de raiva quando eu for falar com ele,” disse Pedro liberando pela boca um ectoplasma de Carlton.
“Num caso ou no outro, quero ficar longe,” disse a faxineira, saindo de fininho pela porta dos fundos.
Pedro esmigalhou o cigarro mal defumado no fundo da xicrinha e se dirigiu para a sala do delegado. Bateu na porta com o nó do dedo indicador magro e ossudo, e antecipou-se, sem esperar autorização.
Digital ainda tinha na cabeça a boina tipo chofer, branca, que Lenilda não havia mencionado em sua descrição. No canto da sala, pelo menos quatro outras boinas estavam penduradas no cabideiro de madeira, sobressaindo dentre elas uma verde-malvina e uma amarelo-Van-Gogh.
“Bom dia, Digital.”
“…dia,” grunhiu o delegado, tirando a boina e penduricalhando-a cuidadosamente numa haste do cabide.
“Foi um cumprimento para a cruz ou para a caldeirinha?” interrogou-se Pedro, mas entrando no assunto sem rodeios. “Olha, Digital, tenho uma gelatinosa para o seu lado…”
“Cospe logo a inhaca que eu tenho o que fazer.”
“Eu atendi ontem, depois que você saiu, um senhor que veio te procurar. Estava recomendado pelo deputado Ribeirinho, com bilhete e tudo.” E Pedro entregou a Digital o cartão do deputado com o brasão da Assembléia Legislativa.
O delegado pegou-o com fingido desinteresse e leu a mensagem, balbuciando os lábios como numa reza: “Digital, meu velho. O portador é irmão do meu sogro. Ele quer fazer uma reclamação. Peço para ouvir-lhe como se eu estivesse junto. Depois conversaremos. Socialmente, R.”
“E daí?” perguntou Digital voltando para Pedro as lentes espelhadas dos óculos comprados em camelô da Vila Rubim.
“Daí que primeiro eu pedi ao senhor do cartão que voltasse noutro dia. Expliquei que você tinha saído para uma diligência e coisa e tal. Mas ele disse que voltar, não voltava. Se tivesse de voltar era para reclamar com o deputado e tal e coisa. Então, para quebrar o seu galho, já que você é amigo do deputado, eu insisti para que o homem falasse.”
“Fez de muito bem… O linguajar ajuda a desabafar,” paraninfou Digital.
“Foi o que eu pensei,” concordou Pedro. “Aí eu disse pro homem do cartão, ‘senta que eu vou ouvi-lo’.”
“Ouvir-lhe…” corrigiu Digital.
“Como?” surpreendeu-se Pedro.
“Não é ouvi-lo, Pedro, é ouvir-lhe. Você não leu a concordância certa no cartão do deputado Ribeirinho?”
“É, delegado, mas eu errei na concordância e disse ouvi-lo. E ouvi.”
“E qual era o bavavá do elemento?”
“Era uma queixa sobre o que ele viu na sala do apartamento em frente ao dele.”
“Não vai me dizer que foi uma trepada?”
“Foi, Digital, uma trepada tremendaça em cima da mesa da sala. O homem do cartão abriu a janela e deu de cara com aquela sem-vergonhice (palavras dele). ‘Já pensou se fosse minha mulher?’ ele me perguntou.”
“Ele pensou que fosse a mulher dele?” exultou Digital rasgando na cara um sorriso de boca-larga. “O cara tem queda pra corno?”
“Ele não se referiu à mulher dele transando na mesa, Digital, mas à mulher dele dando de cara com a bimbada,” explicou Pedro com paciência de Jó.
“Entendi… E onde é que esse bisbilhoteiro mora?” indagou o delegado como se escorregasse pelos meandros auriculares de Pedro a mais indiferente das perguntas.
“Em Jardim Camburi, que a turma do Canto da Praia diz que é o sul da Bahia.”
“O cu da Bahia…?”
“Não, delegado, o cu do rio Jucu…” emputeceu-se Pedro com a gozação do delegado.
“Tá bem, não se aborreça… E o que mais disse o nosso alcagüete?” interrogou Digital dedilhando (poco presto) os dedos de unhas esmaltadas sobre a mesa.
“Agora vem o mais delicado do bavavá…” E Pedro tentou enxergar os olhos do delegado através do pára-brisa dos óculos. “Nosso alcagüete disse que, aconselhado pelo deputado Ribeirinho, procurou saber o nome do casal da transada escancarada, para passar pra você junto com o cartão que o deputado lhe entregara.”
“E o puto conseguiu descobrir?” perguntou Digital, a dedilhação estremecida (più presto).
“Conseguiu sim, na portaria do condomínio. Descobriu o nome da dona do apartamento e o nome de quem freqüenta o apartamento ou… de quem freqüenta a dona do próprio.”
“E quem é o cara?” perguntou o delegado, os dedos incontidos.
“O cara, delegado, é um tal de Archibaldo Evangelino de Souza… Conheces?” informou Pedro, como se cantasse gloriosamente o verso do hino espírito-santense “surge ao longe a estrela prometida”.
“Pícolas, como é que sabem o meu nome na portaria do condomínio?!” soltou Digital o estrondo que Pedro havia prometido a Dona Lenilda.
“Ora, Digital, com aquele Honda azul-turquesa que você tem, todo mundo quer saber quem é o dono. E o Honda do Dr. Archibaldo leva à mui distinta pessoa do Dr. Archibaldo.”
“Já lhe disse que meu nome não é Arquibaldo, como você gosta de falar. É Archibaldo. Faço questão que seje pronunciado o ch como meu pai registrou.”
“Está bem, Dr.Archibaldo. Mas com ch ou com q como você vai sair dessa furada?” divertiu-se Pedro.
“Deixa comigo, companheiro! Você chegou a tomar o depoimento do queixoso?”
“Ficou só numa tarrafada geral. Acabei convencendo-o a voltar outro dia, para ser atendido por você.”
“Agiu bem. Ao cabo e ao rabo, tudo será resolvido com meu amigo Ribeirinho. Não se esqueça que eu conheço mais podres dele do que ele pode lembrar,” vangloriou-se Digital, os dedos tamborilantes sobre a mesa (andante maestoso).
“Tudo bem, Digital, mas não é ao cabo e ao rabo que se diz. É ao fim e ao cabo…”
“O que que o fim tem a ver com o cabo?”, redargüiu Digital.
“E o que que o cabo tem a ver com o rabo?”, sacou Pedro.
“Pelo menos rima,” cortou a bola o delegado.
“Eu não havia notado isso…” ironizou o escrivão.
“Seu mal, Pedro, é que você é um sujeito que observa as coisas mas não deduz. Já eu sou um cara de espírito dedutório…” E os dedos de Digital quase tocaram uma sonata à Beethoven.
“Bem, Digital, já que eu fiz a parte nobre nesse latifúndio, você assume a solução do caso?”
“Inteiramente.”
“Então, vou voltar pra minha sala…”
“Antes, porém, vou lhe confessar uma coisa. É um particular de amigo para amigo. Você sabia que não tem nada melhor do que trepada em cima da mesa? A Silvinha fica na posição de frango assado, empinada diante de mim, peladinha e sardônica…”
“Sardônica?” estranhou Pedro.
“Ela tem sarda até a beira do busílis… Aí não dá pra agüentar. Quando ela dá uma fumadinha então, fica louca para mostrar que é mulher de cama e mesa.”
“Estou imaginando a mesa posta…”
“Imagine. Imagine do fim ao cabo, como você diz. Mas se você quiser fazer a experiência, siga este conselho: que não seje em mesa com tampo de vidro e que seje com mulher de canela fina.”
Pedro não reprimiu a curiosidade: “Não ser em mesa de vidro eu entendo, Digital, mas ser com mulher de canela fina, não matei a charada…”
O delegado esgoelou uma gargalhada e explicou, PHD: “Porque se você esquecer da primeira recomendação — mulher de canela fina pesa menos na mesa, meu caro!”
“Mas precisa ser com a janela aberta?” E os olhos de Pedro brilharam com o prazer da estocada.
“Precisar não precisa. Mas a porra do apartamento da Silvinha ainda não tem cortina.”
“Pois tá na hora de botar…” aconselhou Pedro.
“Qual a cor que você sugere?”
A pergunta pegou o escrivão no contrapé. “Eu, sugerir…?”
“Por que não?”
“Se é assim, me diga a cor das paredes do apartamento,” topou Pedro o desafio.
“Azul-claro.”
“Então bota cortinas cor de cenoura, Digital…”
“Pícolas! Não é que tenho de reconhecer o seu bom gosto…”
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)