A aldeia ficava nas montanhas do estado brasileiro do Espírito Santo e também possuía nuvens ameaçadoras que empurravam aqueles personagens para abrigos seguros. Mas o clima era apropriado, o que compensava. Enfermeiros com seus estojos de aço inoxidável contendo uma profusão de seringas cruzavam as ruas de madrugada revelando que alguém “passava mal”. Personagens sombrios? Não diria isso. As histórias invariáveis coladas nas biografias dos homens se enredavam por farras homéricas, noites e mais noites insones passadas lá embaixo na cidade do prazer e da perdição. Mas, depois que se livravam da tosse noturna com ocorrências até de hemoptises, eles surgiam pela manhã muito sorridentes, com duas rosas no rosto, denunciadoras de restos de febre. Mas não queriam falar disso. Falavam de champanhe. “Ah, sim, no lupanar” — falava-se lupanar — “da francesa.” E os olhos nostálgicos induziam a outro ataque de tosse, dessa vez mais discreto e logo abafado por brancos lenços de cambraia trazidos às dúzias nos bolsos do sobretudo de casimira.
Mas havia os solenes. Aquele alugou a casa mais ampla, trazia uma multidão de criados e muitos familiares, todos compungidos diante da fatalidade que acometera o chefe, cidadão grisalho do qual jamais se ouviu o menor traço de tosse e que caminhava com seu séquito pelas alamedas de eucalipto — árvore regeneradora do ar — afundado em capotes de lã e cachenês encarnados. Sussurrava-se: “Seria apenas uma temporada de vilegiatura do Grande Personagem?” “Não,” — respondiam os bem informados. — “Infelizmente, tuberculose em último grau. Sem cura.”
Indiferente aos comentários, o Grande Personagem prosseguia em seu passeio com uma dignidade granítica, seguido de seu séquito, até sumir pela borda do morro que ficava por trás da igreja.
Eles gostavam de fazer desenhos com a técnica do nanquim sobre vidro e o motivo era quase sempre o mesmo, melindrosas de cabelinho curto na testa e longas piteiras fumegantes. Quadros pendurados na sala de visitas talvez simbolizando a impossibilidade, um signo perdido.
De onde teriam vindo esses personagens que chegavam sem parar a Campos Verdes?
Vários deles se despediam pela madrugada. Vinha um carro branco e os transportava, já finados. Mas outros tomavam cores, evitavam pingos de chuva, pulavam poças de lama e olhavam com confiança o céu azul. Recolhiam os quadros das melindrosas de piteira, ficavam curados e desapareciam.
Ele observava todo esse movimento e imaginava a outra cidade lá embaixo, perto do mar e perto de tudo de bom. Suas luzes, o brilho, o bar Hamburgo, a Duque de Caxias produtora de muitos desses temporários habitantes de Campos Verdes, pisando leve para não sujar os sapatos com a lama das estradas que iam dar na cascatinha, na granja do Schenk, na estrada para Melgaço e quem sabe para o olhar da professorinha corajosa que talvez estivesse olhando por trás da veneziana, ela uma habitante do mundo sadio, flertando com os passageiros da outra via. Houve uma que acabou fixando residência por ali, casada com um da outra via e que cuidava de um jardim de camélias e antúrios, vestida com um casacão de flanela azul nas frias manhãs de Campos Verdes.
Um dia, ele ficou olhando para ela que tinha o nome de Saudade, Dona Saudade e um sorriso de Santa Maria. Ela foi a um canteiro, cortou um antúrio e deu para ele, que era ainda um menino de oito anos.
[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)