Naquele ano, as senhoras de Grumari resolveram fundar um centro cultural. Reuniram-se, ao chá, na casa de Lisbeth Abraão, mulher do homem mais rico da cidade. Entre torradas e geleias, depois de muitas discussões:
— Academia Grumariense de Letras e Artes?
— Academia Grumariense de Artes e Letras?
Acabaram por optar por Centro Cultural Grumariense de Artes e Letras.
— E os estatutos? E o registro em cartório?
D. Jusmi, especialista em pintar pratos de porcelana, lembrou:
— Por que não pedimos ajuda ao poeta?
O poeta — Sérgio Mário Castelo Branco — é uma figura. Dono e único locutor da rádio local, 1 kw na antena, editor do periódico Panorama Grumariense, é chamado para opinar em tudo que é anúncio, carta comercial, pau para toda obra na programação linguística, visual e auditiva. Todos os chamam de “o poeta”.
A próxima reunião, em casa da poetisa D. Juliana, Juli para os íntimos, contou com a simpatia do poeta que, dedos lambuzados de manteiga, se comprometeu a entregar à presidenta eleita, D. Lisbeth, o anteprojeto dos estatutos, o que fez dentro do prazo combinado.
Havia algumas dúvidas, houve muitas reuniões entre o poeta e a presidenta, declamação ao pé do ouvido de versos pretensamente eróticos, Dona Lisbeth escreveu crônica no jornal diário da cidade vizinha elogiando o estro do poeta, Seu Abraão, o marido rico, não estava gostando nada daquilo.
A entidade cultural — ong — não atingia o empuxe de voo, mas o namoro da presidenta com o poeta ia de vento em popa.
Seu Elias Abraão, homem idoso e de poucas palavras, pensou:
— É isto que dá casamento com mulher nova…
Contratou, no Cachoeiro, um detetive, e mandou seguir a mulher, que na época fazia um curso de extensão sobre a literatura inglesa no século XVIII. O rapaz até fotografias, meio desfocadas, tirou.
Aquela morena miudinha e linda, risonha e liberal, lábios carnudos e sensuais, entrando de braços dados com o poeta pela porta lateral do Motel Kiss, quer prova mais concludente?
Seu Abraão levantou diversas possibilidades:
a) eliminar, pessoalmente, os dois quando saíssem de seu ninho de amor, vingança como recomendada por seus antepassados libaneses;
b) eliminar apenas a Lisbeth;
c) mandar eliminar o poeta.
Optou pela terceira solução, que lhe pareceu mais cômoda e de fácil execução.
Foi a Brasília visitar deputado amigo, que ele ajudava financeiramente em suas campanhas eleitorais.
— Isto é fácil. Em Anápolis procure o Sr. Anacleto, nesse endereço, e lhe exponha o problema…
Na Praça da Matriz da bela cidade goiana, onda se negociava de tudo — gado, cereais e vidas humanas — acertou o contrato com o executor do crime.
No dia combinado, Seu Abraão e D. Lisbeth estavam em São Paulo visitando o Salão do Automóvel (Abraão, entre muitos negócios, tinha também uma revenda de veículos).
De madrugada, Elias Abraão acordou a mulher e lhe disse:
— Seu poeta está sendo morto agora…
Lisbeth em choque — ela nem sabia que o marido descobrira o romance — saiu do quarto e na sala de estar tentou ligar para o celular do poeta.
Uma voz longínqua atendeu:
— Alô…
— Sergito…
Uma lataria de carro batendo, um estampido semelhando tiro e Lisbeth nada mais ouviu. O celular foi desligado.
Os matadores (eram dois) tiraram o poeta do carro dele e o colocaram na mala do carro em que viajavam. Tinham chegado, na véspera, como prósperos vendedores de computadores, laptops, estas maravilhosas máquinas eletrônicas. Estiveram inclusive na rádio, onde o poeta era locutor do programa “Noite, silenciosa noite…” Feito o reconhecimento, fecharam a conta no hotel e aguardaram, pacientemente, a hora em que o poeta costumava chegar a casa, depois de suas noites insones.
Saíram de Grumari em direção ao Cachoeiro. Jogaram o corpo do poeta numa vala que cortava um pasto ermo, à altura do Conduru. Entregaram o carro limpo na locadora, e às 7 da manhã já estavam no avião que os levou a Goiânia, dando uma volta via Salvador.
A polícia prendeu um suspeito — um ladrão pé de chinelo que rendera um motorista e lhe roubara o carro. As evidências eram tão fracas que o delegado deixou a porta da cela destrancada, facilitando a fuga do suspeito.
Com o tempo, Lisbeth esqueceu-se de tudo. Escondeu a morte do poeta no mais fundo do inconsciente. O plano do Centro Cultural gorou.
Lisbeth faz agora um curso de extensão em Exegese Bíblica e adora o professor, Dr. José Augusto Gueiros, ex-padre, “um gênio”.
P.S. – Publiquei este conto, ficção pura, no tradicional Correio do Sul de Cachoeiro de Itapemirim, e recebi uma carta anônima ameaçadora assinada por “um amigo”:
“Senhor: V. Exa., figura ímpar da literatura, etc. etc., em seu conto “A morte do poeta”, parece que estava descrevendo a morte do médico Alberto Medina, da cidade de Alto Caparaó. Que está o Sr. insinuando? Cuidado!”
Para falar a verdade, nada insinuei.
É só o vezo do ficcionista inventando estórias em suas madrugadas insones. Juro que sou inocente. Ainda mais que acho que tudo, inclusive a vida real, não passa de pura ficção.
[Reprodução autorizada pelo autor.]
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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)