A “espera” é uma forma simples e curiosa de pesca fluvial praticada nas águas do rio Jacaraípe, em Jacaraípe, vila de pescadores localizada no município da Serra, neste Estado.
A “pesca de espera” consiste em se aguardar, (e daí o seu nome) que o peixe, descendo das cabeceiras do rio, alcance o local da pesca também chamado “espera”, onde se encontra armada uma grande rede fixa, estendida de margem a margem no sentido da largura do rio.
A “rede armada” fica presa em compridas varas enterrados no fundo do rio. A parte superior, onde se enfileiram as “bóias”, toscas rodelas de madeira leve que permitem a flutuação quando se faz preciso, acha-se amarrada nas varas e, por isso, sobressai muito acima da superfície das águas como se fosse uma cortina transparente. Já a parte inferior da rede, conhecida por “chumbo” sendo pesada, mergulha dentro d’água, fazendo o “seio da rede”, formação em ventre decorrente da pressão exercida, pela correnteza de encontro às malhas submersas.
Convém referir, a título de esclarecimento, que o lastro usado para efeito de submersão da rede não é propriamente de chumbo, apesar do nome que, diga-se de passagem, se tradicionalizou. Isto porque o chumbo, empregado antigamente como contra peso, está hoje cabalmente substituído por saquinhos de areia em forma de cartuchos, costurados na parte inferior das malhas, a fim de afundarem a rede. Esta substituição recente do chumbo derivou de medida econômica.
Nas proximidades de uma das extremidades da rede armada, levanta-se um posto de observação rusticamente feito de varas e paus, onde tem assento o “vigia”, pescador encarregado de anunciar a chegada do peixe junto à rede estendida que lhe corta a passagem.
Quando isto ocorre, o vigia avisa os demais pescadores espalhados na margem. É o momento da ação, longa e pacientemente esperado.
Com a menor brevidade de tempo possível os pescadores, lançando-se à água, cruzam de um lado a outro das margens uma segunda rede que impedirá a fuga do peixe represado. Esta segunda rede, menor do que a primeira e da qual se acha afastada uns cinqüenta metros, é presa, por sua vez, a pequenas varas afincadas no leito do rio.
Encurralado pela frente e por trás, o peixe não tem por onde escapar, ficando prisioneiro dentro da “espera”, que se assemelha, desta forma, a uma espécie de tanque improvisado. Isto feito, lançando mão do “tresmalho”* rede de arrasto que se puxa lentamente por dentro do rio e que cobre toda a sua largura os pescadores iniciam o “cerco do peixe”, a partir da “rede armada”.
O trabalho de captura do peixe transcorre dentro d’água, com o pescador usando ligeiros calções de banho ou, então, completamente despido. Nos pontos de maior profundidade trabalha-se com água até os ombros.
Depois de arrastar o tresmalho por todo o trecho de rio que foi cercado, arrebanhando o peixe existente no fundo das águas, os pescadores se aproximam paulatinamente da segunda rede que fecha a “espera”. Ali chegados, levantam o tresmalho pelas “bolas” e “chumbos”, prendendo os peixes num movimento combinado, instantâneo e vigoroso.
O peixe emaranhado nas malhas é em seguida conduzido para terra onde é depositado no chão.
Não raro, conforme a quantidade trazida na rede, o pescador se fere no esforço de soerguer o peixe do fundo do rio e transportá-lo para a margem.
Muitas vezes, de acordo com a fartura dos peixes, costuma-se “passar um segundo tresmalho” ou mesmo repassá-lo depois, se assim se fizer necessário para a pesca completa do cardume encurralado.
Concluídos estes arrastos parciais o produto da pesca é vendido à base de quilo de peixe às pessoas interessadas e, principalmente, aos “mascates”revendedores — que farão o seu comércio em outras localidades do Estado.
Os tresmalhos e as redes utilizadas na pesca são lavados e limpos na água do rio e, logo após, estendidos no sol para secar, sobre os “varais” armações apropriadas de madeira, existentes na margem. Cumpre frisar, todavia, que a rede maior da “espera” não é recolhida como as outras, mas, simplesmente suspensa, das águas. Com, isto, ela se mantém armada, permanentemente, em condições de aproveitamento imediato nas pescas diárias.
E nem, podia ser de outro modo, uma vez que a “pesca de espera” caracteriza-se pela diuturnidade, na época, da “safra” tempo de peixe que ocorre anualmente dos meses de abril a agosto. Mesmo na “safra” a abundância do peixe é porém, irregular, verificando-se mais a miude nos “contra-tempos”, isto é, nas mudanças do tempo: vento sul, chuvas, conjunções da lua, etc. É nestas reviravoltas bruscas do tempo que o peixe aparece em largas quantidades “investindo contra as águas” das marés cheias, pois são elas que atraem os cardumes do alto do rio. Os pescadores, embora conheçam o, mecanismo do fenômeno, não lhe atinam nem lhe explicam a causa, limitando-se a aproveitá-lo da melhor maneira possível.
A “pesca de espera” em Jacaraípe é praticada em dois locais diferentes e distantes entre si: a “espera de baixo” situada nas imediações do desaguadouro do rio, próxina à vila de Jacaraípe; e a “espera, de cima”, bem, mais ao norte, longe da vila.
Como, evidentemente, a presença do peixe na “espera de baixo” depende de livre trânsito na “espera de cima”, o rio deve ser franqueado em determinados momentos, conforme estipulações da própria Capitania dos Portos, que rege o assunto. O franqueamento da “espera de cima” dando vazão aos cardumes para a “espera, de baixo”, é feito durante a noite, das seis horas da tarde, às duas ou três da madrugada, quando, de novo, é fechada. Os peixes que passaram ficam entre um e outro local de, pesca até a ocasião dos “contra tempos”, quando serão atraídos pelas marés montantes.
Aparentemente pode-se supor, que a “espera de cima” leva vantagem sobre sua congênere, em relação às possibilidades de pesca, pela situação favorável que desfruta no cimo do rio . Tal como nos foi informado, entretanto, isto não acontece, como bem atestam casos de quantiosas pescarias levadas a cabo, com ampla sucesso, na “espera de baixo”.
Em ambas as “esperas”, por ser muito elevado o número de pescadores partícipes desta técnica de pesca, criam-se “tripulações” — vale dizer — grupos de pescadores que trabalham em equipe, dividindo entre si as obrigações e os direitos inerentes e decorrentes das pescarias.
O trabalho das “tripulações” — cujo número de componentes é variável escaloneia-se de acordo com o critério “da vez”, cada uma atuando num dia. O pescador que integrar determinada “tripulação” fica impedido de cooperar numa outra, por auto-iniciativa, mas poderá fazê-lo se para tanto receber solicitação expressa.
Em toda “tripulação” existe um “mestre” que orienta as tarefas do grupo e cuida dos interesses gerais, como seja a venda do pescado e a partilha do lucro. A figura do “mestre”, porém, na modalidade de pesca, não é tão destacada e proeminente como caso do arrastão, por exemplo.
Na “pesca de espera” muito importante é a escolha do local onde se apressará o peixe. Escolhido dentro de certas condições deve ser um trecho de rio nem muito raso, nem muito fundo, sobretudo, desprovido de pedras no leito que entravem ou dificultem o arrastamento do “tresmalho”. Pouco importa que o lugar não seja dotado de margens firmes em ambas as bordas: uma só bastará para tornar exeqüível a pescaria, como sucede com a “espera de baixo”, em Jacaraípe, onde margem esquerda é brejo. Este inconveniente, porém, é remediado pela colocação de uma rede lateral que obsta a saída do peixe por aquele lado.
Como se vê, na luta pela subsistência, o pescador de Jacaraípe não conta apenas com os favores da natureza e do meio em que vive. Mas se vale também dos expedientes e recursos de sua inteligência no preparo da “espera” — pequena área fluvial de uns seiscentos metros quadrados — onde desenrola a ação capital de um processo de pesca rudimentar, mas prático e eficiente, pelos resultados compensadores que oferece, com um mínimo relativo de esforço, comparado com o muito de paciência que exige.
Além da paciência, outro requisito imprescindível ao pescador de espera é o silêncio. Não o silêncio absoluto que chegue às raias do mutismo, mas tão somente o silêncio necessário para não espantar o peixe — robalo, carapeba, rainha etc. — que, sendo de água doce, é dos mais espertos que existem, ligeiro na fuga ao menor estrépito que ouve, como afiança o pescador.
O resumo que ora fazemos da maneira como se professa a “pesca de espera” em Jacaraípe, não tem apenas o valor de um registro folclórico. Vale também por um convite a todos quanto se interessam pelos assuntos piscosos ou pelo modo de vida do nos povo simples para que, indo a Jacaraípe, procurem assistir ao desenrolar da “pesca de espera”, apreciando-lhe a riqueza e variedade dos temas e motivos que a caracterizam, na sua singeleza típica mas agradável.
* Existem dois tipos diferentes de “tresmalhos”, conforme a largura apresentada pelas malhas: o tresmalho maeiro (malhas mais abertas) destinado à pesca do peixe grande; e o tresmalho miúdo (malhas mais fechadas), para peixes menores.
[Artigo publicado em Folclore, Vitória-ES, n. 40-48, de janeiro de 1956 a junho de 1957]
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)