Sérgio Luiz Blank, jovem autor de vinte e quatro anos, edita seu terceiro livro de poemas, Um, após o promissor Estilo de ser assim, tampouco, de 1986, e o contundente Pus, de 1987. Penso que ele seja, ao lado de Valdo Motta (cuja hibernação burocrática no DEC impediu-lhe a criação), os melhores nomes da jovem poesia capixaba. Por quê? Talvez porque retratem com precisão o clima “dark”, estilhaçado e niilista do fim deste século, mais próximo de um pesadelo orwelliano que de um sonho de poeta pescador. É claro que não foram feitos para agradar à classe média, conservadora, consumista, dona de Monza e televiseira dos nossos dias globais, e muito menos à burguesia Odete Reytman, que passa as férias em Búzios ou, bem menos chique, Guarapari.
Hoje, atividade marginal, a poesia não é mais feita para as récitas de saraus, os chás acadêmicos ou festas de formatura do Colégio do Carmo. A poesia contemporânea realiza o que Manuel Bandeira propusera em sua “Poética”: “o lirismo dos loucos, dos bêbados, dos clowns de Shakespeare, um lirismo libertação”.
Mas quais são as marcas que constituem a lírica moderna de Sérgio Blank? Se os seus poemas falam dos chaplineanos tempos modernos, como o fazem? Que relações apresentam com a lírica tradicional? Em primeiro lugar, o subjetivismo sentimental e a musicalidade dos versos, características da arte lírica tradicional, são retomados numa postura pós-moderna. Os poemas de Sérgio refletem o homem atual: esquizoide, permeável a tudo, demasiadamente próximo da destruição, promíscuo a todas as experiências, transformando-se numa pura máquina desejante, num revolucionário esquizofrênico: “o meu estado é este / o interior do meu estado é este / […] o meu estado não será o seu / o seu estado é o interior do seu espírito / e o seu santo é o século que não creio” (“O Estado”, p. 53).
Literatura fragmentária, repleta de citações, descontínua, polissêmica, a poesia de Sérgio Blank é alegórica, em contraste com a estética clássica, que é simbólica. Ela é muito mais metonímica e hiper-real que metafórica ou surreal: “me sinto / fora de foco / in loco / foto pose finale / no hotel del leito louco / outra lacraia sem apoio” (“Epitáfio Dark n° 1”, p. 19) ou: “tem por lucro & calamidade o leviatã primo no caos / aquático e réptil aquele das febres quartã e octã / que se desdobram de dor qual camaleão de cor acre” (“Listras rosas no branco”, p. 23).
“Desde que sei o inferno em los outros todos / o belo e o sublime não fazem jus ao maniqueísmo tratado por moléstia” são versos de “A bela e a fera”, p. 27, talvez o seu melhor poema e que melhor retrate a condição pós-moderna. Citando Dante, Lobão e Cazuza, a Bíblia, Sartre, O. Wilde, Castro Alves, Gil Vicente, Foucault e inúmeros outros signos-estilhaços da realidade, Sérgio Blank reconstrói a nebulosa sociedade pós-moderna, os “jogos de linguagem”, citados por Lyotard, heteromórficos, sem regras que os disciplinem. “A bela e a fera” é um poema que faz uma alegoria ao ser social pós-moderno, um fervilhar incontrolável de multiplicidades e particularismos, “pouco importando se alguns vêem nisso um fenômeno negativo, produto de uma tecnociência que programa os homens para serem átomos, ou outros um fenômeno positivo, sintoma de uma sociedade rebelde a todas as totalizações — ou o terrorismo do conceito, ou o da polícia”, segundo Rouanet.
Se os versos de Sérgio Blank incomodam ao leitor, também o fizeram todos os que ousaram antecipar o seu tempo, com sua arte transgressora. Whitman, Baudelaire, Poe, Kafka, Oswald e Drummond são exemplos não muito distantes. Há vários outros, escritores de cabeceira de Sérgio Blank. Resta aos incomodados ler a ironia de “O condenado e o nada”, com epígrafe de Valdo Motta e tudo: “Há de enfrentar a nado o nada por enfim dar a lugar nenhum”. “Os incomodados que se mudem / que se meçam se matem / os condenados que se danem / danifiquem uns aos outros / que se dêem ao luxo de se lixarem / os condenados se destruam uns e outros / ao cubo ao quadrado de cabo a rabo / pois eu (meu bem, meus queridos, meus amores) / eu pois desisto do custo desta festa / o curso deste rio raso / discurso dorsal de dor e sombra / onde me jogo descalço com pedras no percurso / corsário ou cárcere? indaga a festa” (p. 43).
Ironia, deboche, desdém, agressividade são marcas da juventude. Feitas com arte, dão um novo conceito à poesia: “As melhores palavras em sua melhor ordem.” Nem sempre, Coleridge. As piores também. “A arte de excitar a alma.” Por que excluir o corpo, Novalis? “Toda verdadeira poesia é uma visão de mundo”, Eliot. Que mundo? O seu? O do poeta? O do leitor? Nenhum deles? Apenas Um, o da poesia, afirma Sérgio Blank.
[In Estudos críticos de literatura capixaba, Vitória, 1990.]
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Francisco Aurelio Ribeiro, natural de Ibitirama, ES, nasceu em 1955. Possui longa experiência na área de Ensino e Pesquisa, professor em diversas Instituições de Ensino, públicas e privadas, em níveis fundamental, médio e superior (Graduação e Pós-Graduação). Autor de grande número de publicações de pesquisa na área de literatura, e nos gêneros infantil, crônica e conto. Foi Secretário de Cultura da UFES no período de 1992 a 1995 e responsável pela coordenação de cursos em nível de Especialização e Pós-Graduação. Pertence ao Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e à Academia Espírito-santense de Letras, da qual foi presidente em três mandatos.