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A ponte municipal

É fácil imaginar as dificuldades para atravessar o rio Itapemirim quando ainda não havia nenhuma ponte ligando as duas margens. O recurso eram as canoas. As tropas de burros tinham de arriar a carga, para ser embarcada, e os animais atravessavam a nado. Com os carros de bois, o trabalho não era menos penoso, pois a carga também era passada nas canoas.

Em 1841, a Câmara Municipal da Vila de Itapemirim comunicava ao presidente da Província, Machado de Oliveira, o péssimo estado (vinha já de quatro anos) da estrada de Cachoeiro (sic) pela margem sul do Itapemirim. Os viajantes viam-se forçados a transitar pelo lado norte e perdiam muito tempo esperando, defronte da vila, o obséquio de algum morador disposto a lhes fazer a travessia, acontecendo mesmo “que algumas pessoas têm regressado a suas casas sem arranjarem seus negócios por não terem quem os passe”.

Em 1863, o presidente Costa Pereira consignava em relatório que a ponte sobre os “caxoeiros de Itapemirim” (sic) estava orçada em dois contos de réis, acrescentando: “…foi ela construída gratuitamente e acabada pelos cidadãos capitão Joaquim Marcelino da Silva Lima e Dr. Joaquim Antônio de Oliveira Seabra”, ao mesmo tempo em que lhes agradecia o “ato de desinteresse e de civismo”. Alguma enchente teria anulado os esforços desses dois beneméritos, pois mal decorriam três anos, isto é, em 1866, o sexto número do jornal O Itabira registrava “a grande necessidade de uma ponte nas Cachoeiras prestes a tomar o lugar entre as mais importantes vilas da Província”. Dois anos após, o vigário Manuel Leite Sampaio Melo encarecia ao presidente da Província a necessidade de uma ponte na “freguesia de São Pedro das Caxoeiras de Itapemirim” (sic). Comentava que os cinco contos concedidos pela Assembléia eram insuficientes, uma vez que muitos fazendeiros não queriam contribuir com coisa alguma, considerando de maior necessidade providenciar consertos das estradas.

Em 1870, o presidente Dionísio Resendo, cumprindo lei provincial de quatro anos atrás, mandou entregar dois contos e quinhentos à Câmara Municipal de Itapemirim, como ajuda para a construção da ponte no Cachoeiro.

O lugar mais apropriado que acharam, de acordo com notícia do jornal O Horizonte (5-7-1883), publicado em Vitória, foi entre as casas de negócios dos portugueses, Capitão Luiz Bernardino da Costa e Manoel José de Araújo Machado, quase em frente à travessa que dava para o Largo de São João, do lado do Sul, indo dar, do lado Norte, em frente à chácara do Dr. Gil Goulart.

Até então, o máximo que os poderes públicos haviam conseguido em favor dos transeuntes, fora regular a travessia, estipulando contrato com um canoeiro.

Conta Newton Braga, no livro Histórias de Cachoeiro, que “cada pessoa pagava oitenta réis e a canoa tinha lugar para oito passageiros. O último contratante desse serviço foi um preto, Felipe da Silva Costa”.

Mestre Felipe deu passagem a muita gente, inclusive ao poeta João Mota, quando ele ia para a escola…

O jornal O Cachoeirano estampou um aviso, em 1881: “Felipe, passador da passagem pública, pede a todas as pessoas que tiverem de passar, paguem suas passagens ao embarcar…” No mesmo número do jornal, Luiz Antônio Corvacho, concessionário do contrato para a travessia do rio, advertia aos proprietários de canoas para somente darem passagem a pessoas de sua família, escravos, empregados e criados.

Outro número do mencionado jornal (começos de 1887) publicou um aviso do preto Felipe aos fregueses: “O arrematante da passagem pede às pessoas que devem a importância das passagens que venham pagá-las; bem assim aos passageiros que tragam dinheiro trocado para o pagamento das passagens, visto não ter na canoa troco para dez mil réis nem para cinco mil réis que alguns lhe apresentam talvez com o propósito de furtarem-se ao pagamento. As passagens devem ser pagas na ocasião de embarque tanto no porto de baixo como no de cima.”

Então, cuidava-se dos arremates da construção da Ponte Municipal, cuja estrutura metálica havia sido importada da Alemanha. O presidente da Província dera a idéia de se levantar o dinheiro necessário por empréstimo entre quotistas, no Cachoeiro, e a obra fora confiada ao Tenente-coronel Ildefonso da Silveira Viana que a deu por pronta a 10 de junho de 1887. Na manhã do dia seguinte, a banda de música “Estrela do Norte” e muita gente compareciam à festa da inauguração.

A admirada obra de arte tinha o comprimento de 114 metros; a largura de três metros e meio; a altura de 16 metros, e ficava dois metros e meio acima do nível atingido pela maior enchente.

O vigário Sampaio fez a bênção da ponte e o presidente da Câmara Municipal, Carlos Bernardino Maciel, discursou, valendo-se da oportunidade para dar a carta de alforria ao seu escravo André, e pondo seiscentos mil réis à disposição do Juiz de Órfãos, para libertar a escrava Beatriz, do médico italiano Dr. Salvador Rizzo, “a qual foi logo declarada liberta, por ser aquele seu valor legal.” Outro discursante, o Dr. Joaquim de Oliveira Seabra (sogro do Dr. Rizzo), declarou liberto o seu escravo Vidal.

E as praças fronteiras à ponte receberam batismo: Gil Goulart, a do lado Norte, e Coronel Silveira, a do lado Sul.

O fotógrafo Joaquim Aires, nome que ficaria incorporado à história da cidade pelos seus empreendimentos, deslocou a máquina fotográfica por diversos ângulos, e documentou o acontecimento, “fazendo uma edição de 500 exemplares que correm mundo” — conforme ele próprio escreveu, posteriormente.

Diz mais, Newton Braga, que a ponte se encarregou de pagar, ela mesma, as despesas da sua construção. E transcreveu a tabela de preços, estabelecida pela Câmara, para observância do arrematante do serviço de exploração (prazo de um ano), pedágio que durou até 1920: “Pessoa calçada: sessenta réis; ida e volta: cem réis. Gado vacum: cento e vinte réis (mais de um, cem réis cada). Aves tocadas ou conduzidas em jacás, caixões ou capoeiras: vinte réis. Carro de eixo fixo, carregado: um mil réis. Carro de eixo fixo, vazio: seiscentos réis. Carro de eixo móvel, carregado: mil e quinhentos. Vazio: seiscentos réis. Carroça de duas rodas, carregada: quinhentos réis. Vazia: duzentos réis. Carrinho liteira ou tílburi de duas rodas: quinhentos réis. Carrocinha de pão: quinhentos réis. Pipa rolada, cheia: cento e sessenta réis. Vazia: oitenta réis. Café ou qualquer outro gênero quando não transportado nos veículos já mencionados, de cada dez quilos ou litro ou fração dos mesmos: dez mil réis.”

Com o aparecimento dos veículos motorizados e seu rápido aumento, a ponte começou a não mais atender às necessidades. O tráfego atravancado: dois carros não se podiam cruzar, na passagem. E nem se diga do barulho que a madeira do piso fazia, batendo como se fora um grande teclado.

Há pouco menos duns trinta anos, construiu-se a Ponte Fernando de Abreu, ao lado da velha Ponte Municipal, cuja estrutura, ainda bem conservada, foi afinal, desmontada no decorrer de outubro de 1965, vendida como ferro velho.

[In Crônicas de Cachoeiro. Rio de Janeiro: Gelsa, 1966. Reprodução autorizada pela família.]

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Levy Rocha nasceu em 14 de merco de 1916, em São Felipe, então distrito de São João do Muqui. Graduado em Farmácia, residiu em Cachoeiro de Itapemirim e no Rio de Janeiro, interessando pela história de seu Estado natal. Publicou vários livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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