O negro sedan Bentley do Consulado Britânico no Rio de Janeiro parou em frente da Prefeitura Municipal de Cachoeiro de Itapemirim, na rua 25 de Março. Alguns curiosos se aproximaram e houve logo uma chuva de palpites, “Deve ser o Núncio Apostólico”, disse um, “Núncio Apostólico porra nenhuma”, consertou outro, “Serão os gringos que vieram comprar a fábrica de cimento?”, perguntou um terceiro, “É um diplomata inglês, seus trouxas”, consertou um estudante que passava. Acertou: lá estavam, plantadas nos pára-lamas dianteiros do carro, as bandeirinhas de Sua Majestade. No mesmo momento em que o cônsul inglês no Rio de Janeiro, Sir Geoffrey Malcolm, saltou do veículo, o sorridente prefeito, Teodomiro Ferraz, que o aguardava, desceu alguns degraus do velho prédio da municipalidade e estreitou-o em caloroso abraço, numa demonstração um tanto deseducada de intimidade, que não agradou muito ao formal diplomata. Daí, Teodomiro Ferraz conduziu Sir Malcolm ao seu gabinete e, no confortável ar condicionado da sala, fez servir ao cônsul um Ballantine’s de 24 anos, produto da última desova de uma sacoleira do Paraguai. Riram muito, o diplomata do macarrônico inglês do prefeito e este do suadouro que estava levando o outro, apesar do ambiente refrigerado. O “diálogo” durou hora e meia, após o que, meio alegrinhos pelo scotch, dirigiram-se ao restaurante Belas Artes, onde o empresariado local ofereceu ao visitante uma moqueca de camarão da Barra. Moqueca, aliás, que fez com que, na volta para o Rio, o elegante Bentley desse diversas e urgentes paradas ensejando aos caminhoneiros que passavam, entre debochadas gargalhadas, oportunidade para prestarem rebarbativa homenagem à genitora do suarento e diarreico Sir Malcolm. Mas após a fatídica moqueca, como dizíamos, dirigiu-se a comitiva ao Almoxarifado da Prefeitura, do qual retiraram dois ou três caixotes que passaram para o bagageiro do Bentley. Na oportunidade — e o fato foi documentado pelo trêfego repórter do Correio do Sul, Mazinho de Andrade — o diplomata foi encarregado de fazer chegar às mãos de sua Majestade Real, como presente da Princesa do Sul, um estojo contendo 65 dos afamados e excelentes pios de caça, de fabricação local. Dias após, quando sobrou tempo a um gentil terceiro secretário do Consulado, que mais se preocupava com suas relações com os garotos de programas de Ipanema do que com as de seu país com o Brasil, o lindo estojo com os pios foi remetido pela mala diplomática para Londres. Nessa capital, funcionários do Foreign Office endereçaram o volume ao Palácio de Buckingham para ser entregue à real destinatária. Lá, homens de elite do Serviço Secreto Inglês, o famoso M4, após quinze dias de minuciosos exames, chegaram à conclusão de que não se tratava de uma bomba nem de algo de comer que pudesse fazer mal à rainha. Fez-se finalmente a luz e deduziram que era mais um dos cruéis instrumentos usados pela mestiçada dum país do terceiro mundo para massacrar a fauna. Mas presente é presente e os pios foram entregues à legítima dona. O elegante estojo de jacarandá ficou algumas semanas, intocado, sobre um móvel no dormitório real. Até que, certa noite, insone pela irritação que lhe causara uma discussão com Lady Diane, resolveu S.M.R. abrir a misteriosa caixa. Ficou maravilhada com o lindo polimento da madeira de lei com que eram feitos os pios e mais perspicaz que todos os seus experientes agentes do célebre M4 logo descobriu que os pios de caça eram pios de caça mesmo. Manuseou-os, sentiu-lhes o torneamento macio e perfeito e sorriu agradecida pela originalidade da amável oferenda. Fechou o estojo, tomou um Valium e adormeceu. Na noite seguinte assaltou-a novamente a insistente insônia, mas a rainha prometera-se não mais tomar o poderoso soporífero. E enquanto não lhe chegava o sono, tornou a admirar os pios, até que finalmente decidiu experimentá-los. Cada noite soprava em dez deles e ficou encantada, mesmo não tendo a prática que têm os caçadores, com o maravilhoso som que reproduziam. Porém, muito embora o augusto sopro fosse fraco e discreto, não deixou de preocupar a segurança do Palácio, que nos primeiros dias se alvoroçou, pensando tratar-se de algum complô para eliminar a distinta dama. O príncipe Philip, que ocupava aposentos contíguos aos da esposa, depois de alguma lucubração, inferiu que sua ilustre companheira estava testando o novo apito proposto pela International Board para as arbitragens de futebol. E o sétimo dia, melhor dizendo, noite, não foi de descanso para a famosa mulher. Faltavam cinco pios para terminar e a soberana, ao soprar no terceiro, sentiu um “frisson” percorrer-lhe o corpo, um calor na nuca, uma comichão nas partes mais íntimas. O príncipe consorte, no quarto ao lado, também ao ouvir o pio provou da mesma sensação que a real esposa: um súbito rejuvenescer, corno se tivesse trinta anos. Aí, num gesto insólito para o seu disciplinado temperamento, encaminhou-se para a porta que ligava os dois dormitórios e arrombou-a com um forte pontapé, penetrando no aposentos de Elizabeth, coisa que só fazia quando necessitava de um comprimidozinho de magnésia bisurada. E vislumbrou, fremente e maravilhado, no alvo e amplo leito real, a gloriosa esposa que docemente o aguardava. Amou-a homericamente. Era o efeito do pio da fêmea do nosso modesto caipira sabiá despertando em dinastias de mil anos a já adormecida disposição para o amor. Na manhã seguinte o milagroso pio foi separado dos demais e cuidadosamente guardado em secretíssimo cofre pela própria rainha, do qual começou a sair regularmente a cada quinze dias para produzir o mágico som que manifestava em ambos os apetites para o mais antigo dos jogos praticados por um casal.
Anos após, já deputado federal, o ex-prefeito Teodomiro Ferraz foi procurado na Câmara por Lord Christian Wawell, embaixador britânico em Brasília que, seguindo instruções diretas do Palácio de Buckingham, outorgou-lhe medalha por relevantes serviços prestados à Inglaterra, Escócia e País de Gales e ainda a comenda de Cavaleiro da Ordem do Feliz Matrimônio (O.F.M), criada por Eduardo III em julho de 1372. Desde então, o nosso simpático parlamentar não perde oportunidade para, nas ocasiões solenes, exibir no peito tais galardões, embora atribua a concessão deles à sua inativa máquina de fazer respingos, copiada pela cidade de Manchester, e também aos originais trabalhos que, em 1950, quando era aplicado aluno do Liceu Cachoeirense, redigiu sobre a poesia inglesa do século XVII. E só recentemente, graças a exaustivas investigações do historiador e escritor Miguei Depes Tallon, descobriu-se o conteúdo dos três misteriosos caixotes que saíram do Almoxarifado da Prefeitura para a mala do Bentley. Tratava-se de antigos apitos para locomotivas, manufaturados pela Thonicroft Limited, de Glasgow, usados até fins de 1925 nas vetustas máquinas da Leopoldina, gentilmente cedidos ao governo britânico para serem expostos no Real Museu Ferroviário. Como e por que foram parar no depósito da municipalidade ainda não se descobriu. Pesquisa-se, porém. Sobre pios e apitos da terra do Rubem Braga era o que tínhamos para contar.
[Transcrito do livro A rainha que piava e outros contos, IHGES, 1997.]