Um dos aspectos mais interessantes da ciência folclórica — aspecto de encher a boca de água — é o que se refere à culinária popular. A muita gente há de parecer estranho que se encaixe, no domínio do folclore, essa arte dos quitutes, essa ciência de forno e fogão, esse engenho de compor um prato apetitoso. Mas se — conforme definição dominante — o folclore compreende não apenas o que o povo conta ou canta, mas também o que o povo pensa e faz — é evidente que a culinária tradicional se submete aos estudos e pesquisas dos folcloristas.
De fato: não foi através da tradição oral que se transmitiu, até hoje, a maior parte (parte melhor e mais saborosa) desse mundo de receitas de quitutes vários? Não foi por meio da tradição oral que chegaram até nós os reforçados pratos da cozinha portuguesa, associada aos temperos e condimentos africanos e ameríndios? Não se repetem através dos séculos o mesmo ritual, os mesmos processos e técnicas no preparo de uma sopa, de um bolo, de um vatapá, de uma feijoada completa? E não há, característicos de um povo ou de uma região, os pratos típicos, os doces típicos, as bebidas típicas?
Cá no Brasil, por exemplo, quem desconhece — de nome ou de paladar — os vários e pimentosos quitutes baianos? Quem não provou (e como é gostoso!) o tradicional barreado paraense? E o sarapatel e a moqueca de cavala de Pernambuco? E o arroz de cuxá do Maranhão?
Gilberto Freire — interessado na cozinha brasileira como muitos, e na defesa da nossa tradição culinária como poucos – assegura, num dos capítulos do seu livro Região e tradição, que a “arte de cozinha […] é a mais brasileira das nossas artes. A mais expressiva do nosso caráter e a mais impregnada do nosso passado e das suas constantes.”
Não se estranhe, pois, que, até nas panelas e frigideiras, meta o folclorista o seu nariz interessado e farejador.
É coisa sabida e ressabida — principalmente entre os gulosos — que cada época do ano tem os seus pratos prediletos, sua culinária especial. É assim nas festas de Natal e Ano Bom; assim é nas festas juninas. Da mesma forma, em todos os recantos do Brasil, comem-se os apetitosos pratos da Semana Santa.
Ainda Gilberto Freire, em Sobrados e mocambos, registra o fato, de um modo geral, em relação a costumes de todo o Brasil. “Depois dos dias tristíssimos, representação de cenas da Paixão, Sermão em voz tremida, gente chorando alto com pena de Nosso Senhor, mulheres de preto, homens de luto fechado, a Semana Santa terminava em ceias alegres de peixes, de fritada de caranguejo e de caruru, sioba cozida com pirão.”
Aqui no Espírito Santo, desde tempos remotos, o paladar capixaba elegeu como prato típico da Semana Santa, a torta de mariscos. Temos registro dessa nossa predileção, desde, pelo menos, o século passado, através de anúncios que a imprensa de Vitória então publicava. Por exemplo: em A Gazeta da Victoria de 28 de março de 1878 divulgava-se: “Os amantes das Tortas, Camarões secos na casa de negócios de Casilhas, à rua de São Diogo.” O Mesmo jornal, na edição de 18 de abril do mesmo ano, inseria este anúncio: “Alta novidade para Tortas e Empadas: ver para crer na Travessa do Ouvidor 6 – antiga casa do Comendador Souto.” Seguem-se os petiscos ingredientes.
Que tais anúncios visavam à freguesia da Semana Santa não há dúvida, pois é fácil verificar (como o fizemos), que, em 1878, a Quinta-feira Santa caiu precisamente no dia 18 de abril, e o Domingo de Páscoa, conseqüentemente, a 21.
A tradição continua teimosa e gostosa. Em todo o Espírito Santo se prepara, nessa época, a Torta da Semana Santa. Não há capixaba que, vivendo aqui no Estado, ou perdido em distantes plagas por esse Brasil, não procure comer a sua, a nossa Torta, por ocasião da Páscoa. Sei até que é de rigorosa praxe o envio, por via aérea, de centenas de frigideiras de barro contendo a famosa torta, enviadas, como encomendas ou como presentes e lembranças pascais, a capixabas ausentes, no Rio e noutras paragens. Tal a força da tradição secular!
O preparo da Torta Capixaba requer engenho e arte. Nela — quando Deus não manda o contrário —se empregam os mais variados mariscos; nela se misturam temperos de diversos tipos e qualidades; nela se aplicam enfeites de rodelas de ovos de cebolas e azeitonas. Dentro do seu estojo natural — a frigideira ou panela de barro — a Torta, afinal, se apresenta como um belo trabalho de arte, que deleita a vista, o olfato e o paladar. Trabalho de arte — repito! Afirma-o Gilberto Freire, em Região e Tradição: “…um pudim bem feiro, um carneiro bem assado, um peixe bem temperado (e poderia acrescentar: uma torta bem preparada…) são, na realidade, trabalhos d’arte; e os cozinheiros, os quituteiros, os doceiros-artistas, tanto quanto os pintores, os músicos e os escultores.”
Bem. Mas como se prepara essa Torta famosa? Temos o maior empenho em divulgar, mais uma vez, a mágica receita, recolhida, por informação pessoal, da saudosa e sempre lembrada D. Otília Goulart Grijó, cujas saborosas Tortas sempre tiveram fama em Vitória, vai para mais de oitenta anos. Tomem nota:
Preparam-se todos os mariscos: siris, caranguejos, camarões, ostras, sururus do mangue ou mexilhões… bem como os palmitos. Depois de limpos, desfiados, cozidos e espremidos, faz-se o tempero com alho, coentro, azeite doce, limão, cebola e querendo, algumas pimentinhas, sem esquecer o cravo socado, cominho e pimenta-do-reino. Cozinha-se bem o tempero com banha, caldo de toucinho (toucinho derretido) e bastante azeite doce. Logo que estiver cozido, numa frigideira de barro (essencial) misturam-se todos os mariscos e o tempero, tendo o cuidado de adicionar um pouco de peixe desfiado (peixe salgado), para enxugar e ligar a torta. (Alguns usam o bacalhau). Mexe-se muito bem, deixando-se secar a água que ‘chora’ dos mariscos. Depois de tudo bem enxuto e seco, botam-se azeitonas. Batem-se os ovos (6, 12, 18, conforme o tamanho da torta) e com eles cobre-se esta. Cozinham-se à parte uns ovos e aplicam-se cortados, juntamente com azeitonas e rodelas de cebola, para enfeite da torta. Vai ao forno, retirando-se quando estiver bem coradinha. A torta deve ficar bem enxuta e seca, pois é servida fria, em fatias.
Outrora, a torta tradicional era servida às oito horas da noite da Sexta-feira Santa. Hoje em dia, come-se a Torta em almoço ou jantar ou ceia, na quinta-feira, sexta, sábado e domingo – caso sobre, é claro… Aliás, as horas das refeições têm variado através dos tempos. O que não variou – e queira Deus não varie jamais – é o vezo, o costume, a tradição velha dos capixabas: de saborearem, na Semana Santa, a nossa deliciosa torta de mariscos!…
[Artigo publicado em A Gazeta, Vitória-ES, de 14 de abril de 1976]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)