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A visita da velha senhora ou mão à palmatória

Quando chegou à sua sala, na delegacia da Chapot Presvot, Pedro viu o homem e a mulher sentados diante da sua Olivetti. E viu logo, pela semelhança fisionômica entre ambos, que eram mãe e filho. Ela, uma velhinha de olhos dinâmicos, trajava um vestido preto com botões corridos do pescoço à barra da saia rodada; ele, um quarentão de rosto bem escanhoado e cabelos pintados de amarelo, vestia uma camisa social sem gravata, a calça escura contrastando com os sapatos mocassins, também brancos, usados sem meias.

“Você é Pedro?” perguntou o quarentão ao ver o escrivão assenhorear-se da mesa com jeito de donatário.

“O próprio.”

“Eu e minha mãe viemos procurá-lo para uma queixa. Aliás, a queixa é dela, porque eu só vim de companhia.”

“Diz logo que você não queria vir…” irritou-se a velhinha com uma firmeza de voz que surpreendeu Pedro.

“Por favor, mãezinha, não comece. Pelo menos, não aqui, na delegacia.”

“Você me conhece, Robertinho! O que tenho de dizer, digo sem papas na língua. Seu pai sabia disso e não me desafiava, mas você, com seus tremeliques de filho temporão, tem a mania de me controlar.”

“Não é nada disso, mãezinha.”

“Eu sei que é. Mas se você preferir pode explicar a seu Pedro o que nós estamos querendo.” E frisou o pronome num desafio ao filho.

“Bem, seu Pedro, acontece que a mãezinha tem, a meu ver, dois enormes defeitos…”

“Virtudes…” cortou a velhinha.

“Está bem, virtudes… Ela é doentiamente capixaba…”

“…capixaba da gema…”

“… pois é, capixaba da gema, e uma leitora voraz. Tudo que cai sob seus olhos ela lê, comenta, discute, critica…”

“…sempre com razão.”

“É, sempre com razão. Só que agora, na minha opinião, ela está indo longe demais…”

“Demais? Não me desmoralize, Robertinho!”

“Calma, mãezinha, deixa que eu falo.”

“Então fala, mas sem fazer observações pessoais,” disse a velhinha abanando-se vivamente com um leque com motivos japoneses.

“Acontece, seu Pedro, que a mãezinha leu um texto que eu tirei da Estação Capixaba, um site da Internet, não sei se o senhor já visitou?”

“Visito sempre.”

“Meu mal foi deixar o texto no criado-mudo porque a mãezinha passou perto, pegou o papel e leu tudinho.”

“Tudinho não. Li até onde o autor falou da borrada de Noel Rosa na praça Costa Pereira.”

“MÃE..!”

“Mas não é o que está escrito ali? Por sinal o termo é outro, muito mais forte. Você também não leu? Mostre a seu Pedro e deixe de ser criança, Robertinho…”

“Na verdade, seu Pedro, a mãezinha ficou chocada com um trecho do escrito do sr. Rogério Coimbra, sob o título Noel Rosa em Vitória.”

“Posso ver o escrito?”

“Claro. Está grifado em vermelho.”

Pedro pegou o texto e leu: “As informações originais partem de Almirante em seu livro No Tempo de Noel porém são os dois companheiros que despojadamente contam as histórias sem censura, inclusive o fato de Noel ter abaixado as calças e se aliviado na Praça Costa Pereira. O escritor Reinaldo Santos Neves observa que deveria haver uma placa no logradouro com os dizeres: ‘Noel cagou aqui!”

“Eu queria entender aonde o senhor e a senhora querem chegar…” comentou o escrivão, mordido por uma vontade louca de transar um cigarro, sem ousar fazê-lo em respeito à velhinha.

“É que a mãezinha quer dar uma queixa crime — por qualquer crime que seja —, contra o sr. Rogério Coimbra, pelo que ele escreveu, e contra o sr. Reinaldo Santos Neves, pelo que ele disse. Ela acha que os dois agiram muito mal, com essa desconsideração às boas tradições da praça Costa Pereira.”

A velhinha entrou de sola: “Acho mesmo. Esta ofensa à praça não devia ser propagada, ainda mais por escritores capixabas!”

“A senhora sabe quem são eles?”, indagou Pedro.

“Esses meninos? Sei, meu filho. Conheço a família deles. A família, não, as famílias, por parte de pai, e por parte de mãe. E pelas famílias a que pertencem, a culpa de cada um é maior ainda.”

“Mas a senhora não acha… como é mesmo o seu nome..?” recarregou as baterias Pedro.

“…dona Magnólia…”

“…a senhora não acha, dona Magnólia, que essa divulgação não passa de literatura?”

“Viu, mãezinha, eu não lhe disse?” assanhou-se Robertinho.

“Disse, mas eu não aceito. E saiba, seu Pedro, que literatura pra mim é romance de Mme. Delly, que eu lia quando era mocinha. O que foi escrito aí é um desfavor, um desfavor à nossa terra, à nossa gente, à minha Praça da Independência, onde namorei o pai de Robertinho, nós, as moças de família andando de um lado e os rapazes pelo lado contrário da calçada. Essa desconsideração dos dois escritores exige um castigo à altura. É o que venho pedir!”

Pedro teve vontade de perguntar se na época daquele namoro já existia na praça o Edifício Antenor Guimarães, mas calou-se precavidamente.

“A mãezinha guarda até hoje uma mágoa muito grande de Noel Rosa e do regional de que ele fazia parte, por terem suspendido o show no Politeama, no dia em que ela ia assistir…”

“Caluda, Robertinho! Você não tem o direito de revelar para estranhos coisas que lhe contei sobre a minha meninice. Mesmo porque você sabe muito bem que a suspensão da sessão não tem nada a ver com minha revolta com o relato sobre Noel Rosa. O que me aborrece é ressuscitarem um assunto tão antigo e vergonhoso, é essa falta de respeito com as nossas tradições. Vejam esta casa…”

“A senhora está se referindo a esta delegacia?” perguntou Pedro, curioso com a nova investida da velhinha.

“A ela mesma, meu filho. Eu morei aqui pertinho. Me lembro como se fosse hoje. Este pé de carambola que tem aí, eu vi ele destamaninho. No outro lado da casa, onde foi construído este prédio com paredes de ladrilhos…”

“É de granito, mãezinha…” interveio Robertinho.

“… o terreno era maior, com mangueiras, goiabeiras e um sapotizeiro lindo. Você já viu um pé de sapoti, seu menino?”

“Não me recordo,” respondeu Pedro.

“Ah, então você nunca viu. A lembrança de um pé de sapoti morre com a gente. Tinha também um caramanchão com trepadeira São João que servia de garagem para o carro de seu Barcelos. Ele era gerente do Banco do Brasil e marido da minha comadre, Dona Zulmira. Sabe onde ficava o Banco do Brasil, seu menino? Ficava em frente dos Correios, no centro de Vitória.”

“Mãezinha, vamos voltar à nossa queixa, pra não tomar o tempo de seu Pedro,” implorou Robertinho.

“Deixa ela contar,” disse Pedro, tamborilando os dedos sobre a carteira de cigarros.

“Conto sim… Seu Barcelos tinha um carro preto, em forma de charuto…”

“Era um Studebaker, mãe,” colaborou Robertinho.

“Pois então. Em Vitória havia poucos carros, todos importados. Tinha um inspetor de trânsito, chamado seu Pascoal, que gostava de fazer farol dizendo de cor as chapas desses automóveis. Se não era ele, era um funcionário dele, minha cabeça às vezes falha. Isso foi no tempo do bonde. Era de bonde que as pessoas vinham para a Praia. A Avenida Vitória, seu menino, só tinha uma pista estreita, de macadame, ao lado da linha do bonde.”

“Por favor, mãe…” voltou a interferir Robertinho.

“Deixa eu falar. Olha, seu menino: quando eu entrei aqui na delegacia me deu um nó no coração de ver o estado desta casa. Acabaram com tudo. O pé de tília, que tinha no jardim, não existe mais. Você já viu um pé de tília? Vai ver que não. As flores são belíssimas: parecem couve-flor cor de rosa. Este assoalho de tacos pretos e brancos, que era uma maravilha encerado, está uma nojeira. Era a própria comadre Zulmira quem encerava com uma enceradeira elétrica e cera Parquetina. A enceradeira tinha dois jogos de escovas: um para espalhar a cera e outro para dar o brilho. E ainda tinha uns feltros amarelinhos, postos nas escovas para o lustre final. Ficava um verdadeiro espelho. Seu Barcelos dizia que podia fazer a barba mirando o rosto no chão. Eu me lembro também que, no banheiro, tinha uma banheira magnífica, com os pés imitando patas de dragão. Será que podemos vê-la?”

Pedro sentiu que era necessário pôr termo às reminiscências da velha senhora, até porque a banheira, chamada de vovozinha na delegacia, era usada como mictório masculino.

“Não creio que seja uma boa idéia, dona Magnólia. O banheiro está muito sujo, só vai aumentar a sua decepção.”

“Tem razão, meu filho, porque de decepções eu ando cheia,” concordou, cravando os olhos em Robertinho. “E o que vai ser da minha queixa, senhor calígrafo?”

“Ele é escrivão, mãezinha!”

“Pois como ficamos nós, senhor escrivão?”

Diante daquela insistência, Pedro arquitetou uma saída diplomática.

“Eu não acho, dona Magnólia, que uma queixa-crime seja uma boa medida contra os dois escritores. Além disso, a queixa vai lhe trazer muita amolação. Como sou capaz de jurar que a senhora já foi professora…”

“… como você adivinhou, seu menino?”

“…pelo seu modo de falar e de agir,” respondeu Pedro, completando: “O castigo que eu proponho é convocar os dois escritores a esta delegacia para a senhora dar neles uns bolos de palmatória. Eu mesmo me encarrego de arranjar o instrumento.”

“Não precisa, seu menino. Sua idéia é ótima até porque eu tenho uma palmatória pendurada na porta do meu quarto, não é, Robertinho? Marque o dia e a hora, chame os dois desaforados, que eu venho cá com a maior satisfação. Nem acredito que antes de morrer vou poder dar umas bolachadazinhas de palmatória,” disse a velhinha beijando a mão de Pedro, que não a pôde tirar a tempo. Em seguida, comentou ela: “Hum, está com catinga de cigarro!…”

“Que dupla!”, pensou Pedro quando mãe e filho deixaram a delegacia. Na mesma hora, tomou a decisão de avisar a Rogério e a Reinaldo, na primeira reunião do Clube das Terças-Feiras, que o escrivão também freqüentava na praça do Centro da Praia, do que sobrara para os dois amigos da borrada de Noel Rosa na Costa Pereira, no ano da graça de 1934.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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