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A volta do professor Bicalho ou o que se há de fazer?

Era no dous de julho. De que ano?

Basta que fosse no dous de julho — e se disse tudo, porque outra data melhor não poderia haver para o professor Bicalho reaparecer na delegacia.

Pedro o viu entrar na sala de espera quando terminava a tomada de um depoimento. O professor também viu o escrivão e fez um aceno com o guarda-chuva, que carregava no braço, à padre Brown. Naquele gesto indicativo, o escrivão fez a leitura precisa: estou aguardando ser chamado.

Na vez do professor, Pedro o recebeu na porta da sala.

“Novamente na Chapot Presvot, professor?!”

“Espero que hoje eu tenha mais sorte. Da última vez em que estive aqui, perdi meu tempo, perdi o meu latim e você ainda me deu um conselho que não pedi. Agora volto mais esperançoso de sucesso.”

“Ora, professor! Naquela ocasião eu fui mal interpretado. Não foi no caso daquele aluno que escrevia versos no muro da sua casa?” recordou-se o escrivão.

“Exatamente.”

“O conselho que lhe dei foi com a melhor das intenções…” tentou redimir-se Pedro, engrenando uma marcha-a-ré no tempo. “Mas sente-se, por favor.”

“Tudo bem, o que passou, passou, vamos ao que interessa,” disse o professor, sentando-se na cadeira que lhe foi indicada (que, aliás, era a única diante da máquina Olivetti) e ajeitando sobre o nariz os óculos de lentes grossas. Dito e feito o quê, arregaçou a manga comprida da camisa de colarinho, rasgada na altura do cotovelo, e mostrou a Pedro o braço escoriado. “Veja o estrago.”

“O que foi isso, meu amigo?” perguntou Pedro, examinando o braço ralado do professor.

“Fui vítima de uma agressão em via pública.”

Pedro achou por bem, numa demonstração de solidariedade, tal como antes aproximara o rosto para o exame do ferimento, aproximar agora o corpo todo da cadeira do professor. Arrastou o assento de rodinhas e quase ficou joelho com joelho com o queixoso, ou geollo com geollo, como talvez o professor preferisse dizer, recorrendo à forma etimológica da expressão.

“Conte-me o que aconteceu,” pediu Pedro.

“Eu precisei dar um telefonema e escolhi um orelhão, numa rua em Jardim da Penha. Até hoje não me habituei a usar o celular e não pretendo me acostumar nunca…”

“Sabe o nome da rua?” indagou Pedro, escrivão competente.

“Rua Carijós e o orelhão fica em frente a um bar.”

“Sabe o nome do bar?” volveu Pedro, escrivão competentíssimo.

“Copa de Ouro.”

“Copa ou copo?”

“Copa, da copa do mundo…”

“E então?”

“Então, como no orelhão o fone estivesse pendurado pelo fio, eu pensei que alguém o tivesse tirado do gancho por molecagem.”

“Aí o senhor o recolocou no lugar…”

“Não era a atitude lógica? Pu-lo de novo, para ver se dava linha, porque, solto como estava, podia ser também que estivesse enguiçado…”

“E funcionou?”

“Tanto funcionou que comecei a discar. Foi quando apareceu uma mulher histérica que me interpelou, revoltada: O senhor cortou a minha ligação?”

“Então eu respondi: Desculpe, minha senhora, mas não entendi.”

“Eu estava falando com a minha filha, em Foz do Iguaçu, e o senhor cortou a ligação, protestou a histérica.”

“Mas o fone estava fora do gancho. Como eu ia adivinhar que alguém estava usando o orelhão? — tentei justificar a minha gafe. Ela, porém, não se convenceu: Só porque fui no bar pegar um número para a Lucinha, o senhor cortou a ligação. Isso é um absurdo!”

“Absurdo, minha senhora, é as pessoas usarem um telefone público como se fosse propriedade particular, reagi, começando a me sentir injuriado”.

“Além de tudo o senhor é um desaforado, sabia? — agrediu-me novamente a mulher.”

“Desaforada é a senhora me julgando injustamente, respondi à altura. E se alguém cometeu um desaforo foi quem deixou o fone pendurado no ar, enervei-me de vez.”

“Então eu é que sou a desaforada, é? — replicou ela, pondo as mãos na cintura. E sem perda de tempo, gritou do orelhão para o bar: Paixão, ô paixão! Vem aqui dar um trato neste desaforado!”

“Quem era paixão?” perguntou Pedro, ajeitando o traseiro magricela sobre o assento da cadeira de rodinhas.

“Devia ser o marido dela, o dono do bar. Um sujeito em forma de barril que se aproximou mascando um palito e se arrastando num par de sandálias. Mal chegou, foi logo indagando: Que-qui-tá havendo, paixão?”

“Antes que eu dissesse chipe-gato, a mulher puxou a brasa para a sardinha dela: Paixão, este cretino cortou meu telefonema pra Lucinha…”

“Como é que é? — balançou-se paixão sobre si mesmo. Aí, meu caro Pedro, eu tentei explicar que as coisas não tinham se passado do jeito como a mulher estava contando, que eu tinha encontrado o fone fora do gancho e pensado que o aparelho não estivesse sendo usado, mas ela, atiçada pela presença do marido, interrompeu-me grosseiramente: Todo mundo sabe que se tem um fone pendurado num orelhão é porque alguém está falando, não é, paixão?”

“Todo mundo sabe, decretou paixão, encarando-me com a cara de canibal de Mike Tyson, antes de um combate.”

“Mas eu não sabia… protestei resoluto.”

“Não sabia, é? Não sabia…? — disse o barril ambulante, dando-me uma barrigada que me atirou ao meio-fio, enquanto ele ainda me bombardeava do alto: Não sabia, é? Pois agora fica sabendo… E fica sabendo também que neste orelhão o titio aí não fala mais, tá ouvindo? Alô, tá ouvindo? Só se passar por cima do meu cadáver.”

“E como terminou esse lamentável incidente?” quis saber Pedro, contristado com a falta de sorte do antigo colega de magistério.

“Terminou com a mulher dizendo para o brutamontes: O cara já aprendeu a dele, paixão. Volta pro bar que tem gente no balcão. Eu vou ligar de novo pra Lucinha. Foi assim que terminou, Pedro, eu tendo de me levantar humilhado para vir aqui na delegacia fazer a minha queixa, com a manga da camisa rasgada e o braço ralado.”

Pedro empurrou a cadeira de rodinhas para trás da Olivetti e se preparou para lavrar a ocorrência. A cabeça funcionava a mil, pensando no que dizer e no como dizer. Finalmente, fez-se franco.

“Olha, professor: Estou pronto para lavrar a ocorrência. Mas o senhor tem alguma testemunha?”

“Foi um incidente sem testemunhas,” respondeu o queixoso secamente.

“Pois é…” disse Pedro, em tom lamurioso. “Sem testemunha sua queixa torna-se inócua. Além disso, o senhor sabe que a Polícia está em greve, devido aos salários atrasados. Eu vou ter de encaminhá-lo, muito a contragosto, ao Instituto Médico Legal, para a lavratura do laudo de escoriações. Lá no IML, eles não estão recolhendo nem cadáver em via pública quanto mais atendendo vítimas de uma esfoladura como a sua. O senhor vai se submeter a uma via crucis por que, pelo respeito que lhe tenho, não desejaria vê-lo passar. E tudo poderá dar em nada, devido à falta de testemunhas.”

“Chega, Pedro!” disse Bicalho levantando-se. “Bato novamente às portas desta delegacia, para apresentar uma queixa, e saio daqui mais desvalido do que entrei. Sei que é o Brasil, meu caro, e você não tem culpa disso. Só me resta entrar numa farmácia, comprar um cicatrizante para aplicar no braço, e me desfazer desta camisa imprestável”.

“Pode não ser o que o senhor desejava, professor, mas é a solução mais sensata, nas atuais circunstâncias.”

“O homem e suas circunstâncias! Triste condicionamento este!” disse Bicalho. “Depois de toda a humilhação e injustiça por que passei ainda vou perder a camisa e gastar dinheiro com remédio!”

Olhando-o amistosamente, Pedro ainda receitou:

“Mas prefira um cicatrizante tipo spray, professor. Além de não arder, é simples de usar.”

“Desta vez aceito seu conselho,” disse Bicalho, retirando-se desalentado da delegacia, o guarda-chuva pendurado no braço, à padre Brown. Era no dous de julho.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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