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Adivinhe quem vem para depor ou cada qual com o seu cada qual

Depois de um longo apagão que se abateu sobre a delegacia da Chapot Presvot por falta de energia elétrica em suas dependências a rotina habitual parecia que ia voltar à normalidade quando, de súbito, não mais do que de súbito…

“Está ouvindo, seu Pedrinho?” perguntou Lenilda.

“Toda a delegacia está ouvindo…” respondeu o escrivão.

Realmente ouvia Lenilda, ouvia Pedro, ouvia toda a delegacia – o que em bom português significa a delegacia por inteiro – a cantiga que jorrava do gabinete, entoada pelo delegado Digital em voz tremida de barítono:

Sentimental eu sou …

“Sentimental, logo ele?” comentou Pedro.

“É a segunda vez que ele canta sentimental eu sou, seu Pedrinho. Agora mudou, está ouvindo?” No mesmo volume e com a mesma empáfia, a voz de Digital propagava-se:

A deusa da minha rua
Tem os olhos onde a lua
Costuma se embriagar.
Nos seus olhos, eu suponho,
Que o sol, num dourado sonho,
Vai claridade buscar…

“Até que o chefe é entoadinho…” comentou Lenilda.

“Para mim é uma descoberta. Sempre pensei que Digital fosse uma gralha”, observou Pedro.

“Será que ele está em louve?” indagou a faxineira.

“Olha, Lenilda, pelo entusiasmo do protagonista, deduzo que está mesmo inlouve.”

“Quem será a vítima?” inquiriu Lenilda.

“Não faço a menor idéia. Seja quem for, tenho pena dela…” disse Pedro.

“Hiii, mudou a cantiga…” disse Lenilda.

No mesmo tom encorpado, Digital desfraldava o peito:

Tu és divina e graciosa,
Estatua majestosa do amor,
Por Deus esculturada.
És formada com o ardor da alma
Da mais linda flor,
Do mais ativo odor,
Que na vida
é a preferida pelo beija-flor…

“Seu Pedrinho, o negócio parece sério. Já pensou se dona Engrácia souber?”

“Seu Pedrinho, o negócio parece sério. Já pensou se dona Engrácia souber?”

“Cala a boca, que as paredes têm ouvido,” recomendou o escrivão.

“É, mas se dona Engrácia souber, não quero nem pensar.”

“Então não pense,” disse Pedro. “Não pense, não fale, não veja e não ouça. Você conhece os três macaquinhos com as mãos na boca, nos olhos e nas orelhas? Acrescente mais um, com as mãos na testa, e imite os quatro.”

“Mas eu não consigo, seu Pedrinho. Sinto uma vontade danada de saber das coisas… Está no meu sangue…”

“Quer um conselho, Lenilda …” mas não deu para Pedro terminar a frase porque a voz de Digital chegou até eles, gritada do gabinete:

“LENILDA…!”

“Já vou, delegado,” respondeu a faxineira, correndo para atender à convocação. Daí a pouco, voltou à sala de Pedro.

“Seu Pedrinho, a dona vem aí para depor.”

“Que dona?” perguntou o escrivão que havia esquecido o assunto.

“A ‘estátua majestosa’ esclareceu a faxineira, apontando com o indicador, de unha com esmalte desbotado, para a sala do delegado. “E não demora muito”.

“Como você descobriu?” indagou Pedro.

“Porque o delegado mandou limpar a sala e fazer um café caprichado. Ele não é disso… Está até de suspensório com as cores do Flamengo. Vamos conhecer a pessoinha…”

“Vamos, uma vírgula, porque eu vou ficar sentado no meu galho, como um macaco velho. Aliás, como três macaquinhos sábios – sem ver, sem ouvir e sem falar…” disse Pedro.

“Nesse ponto o senhor se engana, seu Pedrinho. O chefe mandou dizer para o senhor ficar pronto para tomar um depoimento sigiloso, na sala dele.”

“Pícolas! como diz Digital. Isso está me cheirando à complicação,” observou Pedro, alisando um cigarro entre os dedos antes de acendê-lo.

Lenilda esperou que ele desse a primeira tragada e, com jeito travesso, propôs:

“Vamos fazer uma brincadeira, seu Pedrinho? Vamos ver quem adivinha como é a estátua majestosa?”

“Você está inventando moda, Lenilda!” disse Pedro.

“Só de brincadeirinha,” insistiu a faxineira.

“Então diga como você pensa que ela é,” sugeriu Pedro.

“Pra mim é uma sirigaita baixa e gordinha, mais pra sarará do que para outra coisa. Deve ter também cabelo oxigenado. E acho que vai vir de blusa com frente única, amarrada nas costas, sem sutiã. E pro senhor, seu Pedrinho?”

Pedro coçou o queixo, mandou outra tragada para as cucuias e disse: “Pra mim a figura é o contrário da sua: é morena, cabelos cor de caju, unhas pintadas de verde, corpo apertado numa calça comprida bem surrada com a bainha desfiada, e vem de blusa transparente, mostrando o sutiã brilhante”.

“Parece até que o senhor descreveu uma piranha”, disse Lenilda rindo.

“E você, minha querida? Eu segui o seu modelo…” disse o escrivão, também divertido.

“LENILDA…!” berrou Digital pela segunda vez.

A faxineira repetiu a corridinha em direção à sala do delegado e voltou turbinada. “A dona chegou, seu Pedrinho! E não é nada do que nós pensamos. É um tipão de mulher, o senhor nem vai acreditar. Um pedaço de mau caminho, um obelisco como o senhor gosta de dizer, bem produzida, cheirosa, cheia de anéis e pulseiras, vestida nos trinques. Eu quase desmaiei! E o delegado está chamando o senhor pra tomar o depoimento dela enquanto vou pegar um cafezinho. Agora, tem um porém, seu Pedrinho: o senhor vai me contar tudinho, tudinho, está combinado?”

Sem dizer nem que sim, nem que não, Pedro foi atender ao chamado. Movia-o a curiosidade que matou o gato e suave como um bichano apresentou-se ao delegado, só faltando ronronar.

“Pronto, delgado,” disse ele, cravando os olhos no monumento sentado à frente de Digital. Lenilda tinha razão – não dava para acreditar. A mulher era digna de um desmaio. A única forma que acorreu a Pedro para descrever a visão radiosa com que se deparou foi fundir os versos das canções que o delegado cantara há pouco: Tu és divina e graciosa, estatua majestosa do amor, por Deus esculturada. Nos seus olhos, eu suponho, que o sol, num dourado sonho, vai claridade buscar… Mesmo assim, ainda ficava devendo créditos à estátua portentosa sentada de pernas cruzadas, enchendo a sala de luz e transpirando sensualidade.

“Seu escrivão, queira sentar-se na máquina para tomar o depoimento de DonaHermenegilda Barbosa de Barbosa” ordenou o delegado, quebrando o transe entorpecido em que Pedro se encafifara.

Já a postos, Pedro dirigiu-se ao delegado: “Faço eu as perguntas ou o senhor prefere fazê-las?”

“Pode-as fazer para que não digam que tenho interesse no caso,” respondeu Digital.

“Interesse como?” cortou com picardia o bisturi de Pedro.

“Interesse, ora… influência… proteção, essas coisas que as pessoas falam…”

“Mas falar por que, delegado? E que pessoas?” insistiu Pedro, aprofundando a incisão do bisturi.

“Não me venha com telecotecos idiotas,” irritou-se Digital encarando o escrivão com cara de mau amigo. “Cumpra sua função de escrivão e deixe que eu pense pelos dois.”

Pedro engoliu um risinho maquiavélico e depois de registrar os dados preliminares, na forma do costume, entrou no interrogatório:

“A queixa da senhora diz respeito a quê?”

Nem precisou perguntar mais nada porque a interrogada desenrolou a língua:

“É contra o estrupício do meu marido que se engraçou com uma piranhuda de meio-fio, de cabeleira catingosa …”

Quando, mais tarde, Lenilda quis saber a impressão de Pedro sobre a depoente, o escrivão sintetizou-a numa frase: “Pourriture riche, Lenilda.”

“Que fala é essa, seu Pedrinho?”

“É francês e quer dizer rica porcaria.”

“Mas uma estátua tão majestosa…” desencantou-se a faxineira.

“Olha, Lenilda: que era uma estátua majestosa era, mas com pés de barro, digna de Digital.”

E mais não disse, apesar do muito que lhe foi perguntado.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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