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Afonso Cláudio in História da literatura espírito-santense

A primeira composição poética sobre assunto local, foi escrita em 1770, pelo vate baiano, padre Domingos de Caldas. É o poema, que por ele próprio teve o batismo de — Poema Mariano — narrativa em verso rimado, dos milagres da Senhora da Penha, que se venera no cenóbio a que me referi em outro lugar deste livro. Esse poema sacro, foi corrigido e publicado, pela vez primeira, em 1854, pelo notável latinista e pregador espírito-santense, padre Inácio Félix de Alvarenga Sales, devidamente autorizado pelo bispo Conde de Irajá, segundo afirma o cronista Gomes Neto, em seu trabalho — As Maravilhas da Penha, 184. [1]

Não tive dados seguros que me permitissem verificar, se o autor do Poema Mariano habitou por algum tempo o Espírito Santo, tão pouco a data em que daí saiu, com as impressões que transportou em versos; no século em que viveu, a Bahia possuía as sociedades dos Esquecidos e dos Renascidos, de onde saíram nomes ilustres.

Já então as coisas pátrias despertavam interesse afetuoso e sincero a homens como frei Itaparica, Rocha Pita e Antônio José, poetas e narradores dos mais estimados.

Não se deve, portanto, deixar de ler com simpatia o poema narrativo de Domingos de Caldas e tratá-lo com mais benevolência do que severidade.

Uma circunstância, além de diversas outras, detêm a crítica no julgamento do pregador e poeta baiano: Caldas viveu na obscuridade. Não conheço nem um livro de cronista pátrio que o contemple entre os poetas do tempo; de seus escritos, pelo menos o Poema Mariano, permaneceu em cadernos mal copiados de 1770 a 1854, isto é, por oitenta e quatro anos, sem ter a publicidade da imprensa.

Contivesse ou não defeitos, o que é verdade é que não logra estima por tempo tão considerável, produção que não se recomende por algum título.

A de Caldas teve-os e não é muito que inicialmente o confesse, já porque a inveja o destacasse para plano inferior sem razão conhecida, já porque se não fosse a sua cooperação, muito mais demorado seria o alvorecer literário na terra espírito-santense, a despeito de certas veleidades nativistas que pretendem insinuar o contrário. [2]

Por tais motivos é que o padre Domingos de Caldas, não sendo natural da Capitania, figura neste estudo entre os que algo fizeram pela causa das letras nacionais.

O poema contém cento e vinte e seis cantos ou estrofes e todo ele é feito em oitavas rimadas.

A par da preocupação que domina o autor — a celebração mística das prodigiosas virtudes da Senhora da Penha — há nos seus versos, ora descrições pintorescas apreciáveis pela correção, ora trechos agradáveis pelas emoções que reproduzem, ora certo humanismo benfazejo que contrasta com a afetação tão usual na poética do tempo.

Sem dúvida que na maior parte dos cantos, o vate afasta-se do seu capital desígnio, para pintar a natureza que o deslumbra com paisagens surpreendentes. Será uma falha do seu talento ou uma recomendação da sua maneira de colorir?

O leitor melhor poderá dizê-lo sem constrangimento, depois que ler o poema.

A sua primeira feição pode ser apreciada por alguns dos espécimes a seguir.

Vejamos as descrições das vilas do Espírito Santo e Vitória: [*]

“À costa ocidental americana,
Que do antártico pólo é mais vizinha
E o nome Brasil sustenta ufana,
Não o de Santa Cruz que dantes tinha,
Entre o tupi infiel, gente inumana;
Estão sessenta graus ao sul da linha,
Duas vilas chamadas com vanglória
Uma Espírito Santo, outra — Vitória.

Estende o mar um braço pela terra
Que porto faz à tal Capitania;
E com grossas veias nele encerra,
Grandes ilhas de tosca pedraria;
Desce o rio Jucu de rica serra
E outro com o santo nome de Maria,
Que eivado dos mais insanos ritos
Vem ao mar expurgar-se dos delitos.

Uma légua comprida está distante,
A vila da Vitória celebrada,
Da outra que se vê menos possante
Ficar junto da barra edificada;
Duas penhas de altura exorbitante
Uma coberta e outra descalvada,
A entrada defendendo, atemorizam
Quantas quilhas no mar altivas pisam.”

Rememorando a trasladação da imagem da Penha, da vila onde é ainda hoje venerada, para a da Vitória, por ocasião das calamidades das secas, Caldas exprimiu-se assim:

“Chega a Senhora à terra e recebida
Em rico pálio de ouro marchetado
Da turba acompanhada é conduzida,
À Santa Casa de Francisco amado;
Inda não bem ao templo é recolhida,
Já todo o céu de nuvens carregado,
Encobrindo de sol a formosura,
Transforma o claro dia em noite escura.

Apenas entra a Virgem quand’os ares
As nuvens vomitando sobre a terra,
Parece com dilúvio que nos mares,
Quer a água vingar do fogo a guerra;
Os verdes papagaios aos milhares,
Os animais trepadores pela serras,
E os próprios réptis cheios de glória,
Cantam hinos a Deus pela vitória!

Os secos algodões reverdecendo,
Os queimados legumes se inundando,
No campo a murcha relva renascendo,
No bosque as mortas árvores brotando;
Na fonte os animais juntos bebendo,
No rio os brutos todos se banhando;
São mudos oradores desta Penha,
Padroeira que a Deus por nós se empenha.”

O flagelo das secas é pintado nesta síntese sóbria:

“O fogo material de Febo ardente,
Que da tórrida zona incende a esfera,
Mais que da Líbia adusta e Arábia quente,
Neste país seus raios reverbera.
O excessivo calor abrasa a gente;
Acende o campo, o gado desespera,
E parece que quer este elemento,
Fazer no alheio espaço o próprio assento.

Desce do monte ao mar o feroz bruto,
Que antes morrer na praia determina
À Berecíntia mãe. Esconde o fruto,
Falta o pão, morre a flor, seca a campina,
Tudo é dor, confusão, miséria e luto.
Vendo tão perto a última ruína,
Todos são Prometeus no sentimento,
Pois de Tântalo têm igual tormento.” [3]

A feição lírica do estro do poeta, trai-se logo no primeiro canto:

“Eu sou aquele que cantando amores,
Muitas vezes ao som de brandas canas,
Lisonjeei a vida dos pastores,
Exaltei a beleza das serranas;
Porém, hoje depondo os seus louvores,
Já não quero cantar glórias mundanas,
Que são sombras de luz, do ar assento,
Formosuras de flor, torres de vento.”

Não devo alongar as transcrições.

O autor do — Poema Mariano — teve suas notas pessoais, suas belezas de forma e também não poucos defeitos.

O Poema, foi como já disse impresso no Espírito Santo, pela primeira vez em 1854, imperfeito ou mutilado como as cópias permitiram; teve segunda e melhor edição na Imprensa Nacional (Rio), em 1888, aparecendo incorporado no livro de Gomes Neto, em outro lugar apontado.

São ignoradas as datas do nascimento e passamento do padre Domingos de Caldas.

Entretanto, por mais obscura que seja a sua individualidade literária, mister é que se lhe faça esta justiça póstuma: ter sido no Espírito Santo, o iniciador do classicismo na poesia e haver despertado com o seu esforço tendências, que, sem esse estímulo, ficariam estioladas.[4]

O depoimento de [Sacramento] Blake nada adianta; transcrevendo-o,[**] apenas desejo salientar que o poeta, a partir de sua permanência em Portugal, esqueceu por completo as impressões que levara do seu país de origem e é fora de dúvida que, distanciado dele como se achou, não podia compor o Poema Mariano com as particularidades descritivas que se lhe notam, uma vez que de Lisboa não tornou mais à sua Pátria. Assim, pois, se para ali seguira em 1762, permanecendo no reino lusitano até 1800, como poderia ter composto o famoso poema que indica a sua presença na Capitania de Coutinho em 1770?

[Transcrito de História da literatura espírito-santense, de Afonso Cláudio, Porto, 1912, p. 42-52.]

Notas  

[ 1 ] Pereira de Vasconcelos, no Jardim Poético, 172-173, declara possuir uma cópia do aludido poema, retocado e emendado por José Gonçalves Fraga, que o escoimou de grosseiros erros e pela qual podem ser verificadas as diferenças da obra emendada por Gonçalves Fraga, em cotejo com a que foi estampada por Alvarenga Sales. O citado cronista atribui somente ao padre Sales, a iniciativa na publicação. Não sei se efetivamente o trabalho de Domingos de Caldas, recebeu polimento de qualquer das duas doutas limas, como em caso idêntico se exprimiu Bocage; inclino-me à opinião de Gomes Neto, porquanto, a declaração feita por Alvarenga Sales ao bispo, no ofício em que solicitava a revisão do escrito do padre baiano, exclui qualquer dúvida. Ele adverte ter feito as correções que pôde e que apesar disso, ainda o escrito teria “outros muitos defeitos que só um literato completo como V.Excia. (o bispo) poderá emendar”. Ora, parece que se alguém deveria ser consultado para dizer do mérito do trabalho de um padre, sobre assunto de milagres, certo a escolha recairia sobre outro sacerdote de preferência a profano. Caldas, pelo tempo em que viveu na Bahia e pela fama de seus versos sacros, com exceção de pequenos detalhes da narração, compreensivos da história local, que não podia conhecer, tinha aptidão suficiente para compor o poema, sem cometer os erros grosseiros que post-mortem lhe argüíram e sem a limagem auxiliar dos que não sabem fazer obra senão pelo molde alheio. Dado, entretanto, que Gonçalves Fraga fosse o retocador, tendo vivido ainda um ano na Capital, após a impressão do poema realizado por ordem do bispo, por que não exigiu do padre Sales, seu patrício, uma declaração pela imprensa, pondo a descoberto o concurso que dera à perfeição da obra do padre baiano? Eu não sei como poderia Vasconcelos sair-se da dificuldade, se antes de mim alguém lha propusera.

[ 2 ] Afonso Cláudio refere-se ao fato de que tanto Pereira de Vasconcelos como Basílio Daemon mencionaram “como precursor do movimento literário local” o poeta Gonçalo Soares da França, nascido no Espírito Santo em 1632. Já está mais do que provado que esse poeta não era natural desta capitania, cf.

[ * ] Oscar Gama Filho demonstrou que Afonso Cláudio, ao transcrever algumas estrofes do poema na História da literatura espírito-santense, alterou o texto em alguns pontos. Cf. “Os erros do clássico”, in Você n. 2, julho de 1992, p. 23-7. Nota do Neples.

[ 3 ] Ao contrário do que se tem asseverado, o fenômeno das secas no Espírito Santo, há tido reproduções. Além da de 1769 a que alude o autor d’As Maravilhas da Penha, 123, outras apareceram no findo e no presente séculos. Parece, pois, que a destruição das matas e a densidade da população, agravam, mas não são a causa produtora do mal. Não há negar que em 1700, muito menos densa devera ser a população e muito pouco extenso o aproveitamento das matas; entretanto, a seca desse período foi maior que a dos subseqüentes anos de 1800 e 1900, notando-se que as mais consideráveis contribuições imigrantistas européias e nacionais que recebemos, datam de 40 anos atrás somente. Quero acreditar que no caso contribuem outros elementos para o resultado das secas, que não são de desprezar, tais como: a estrutura geológica da região, o contraste entre a extensão enorme do seu litoral e a estreiteza do seu sertão, do que resulta maior absorção de clorureto em detrimento da vida dos seres orgânicos; a predominância de certos ventos que interceptam as monções benfazejas; em suma, toda uma série de circunstâncias que nos fazem o clima semelhante ao da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Fenômenos complexos não podem ser explicados por fatos isolados; tal me parece ser a situação do que ligeiramente abordo sem pretensões de o haver elucidado.

[ 4 ] A naturalidade do padre Domingos de Caldas, atribuída por Alvarenga Sales à Bahia, reputo duvidosa ante informações ministradas pelo valoroso autor da História da Literatura Brasileira [Sílvio Romero], muito mais explícitas e categóricas. Domingos de Caldas, parece que é o mesmo padre Domingos Caldas Barbosa, nascido no Rio de Janeiro em 1740, discípulo dos jesuítas, que, por suas qualidades de repentista e por motejos aos portugueses, foi desterrado para a Colônia do Sacramento, onde permaneceu até 1762, como soldado recrutado. Era filho de pai português e de mãe africana. Mais tarde retirou-se por qualquer motivo para Portugal; aí fez novos estudos e recebeu ordens sacras, salientando-se desde então nos prélios poéticos da época, principalmente nos travados no seio da Arcádia, de que veio a fazer parte, com o batismo de Lereno. Em Lisboa foi capelão da Casa da Suplicação. Contemporâneo de Filinto Elísio e Bocage, por várias vezes satirizou-os fortemente. Bocage entre muitos outros, tem um verso que lembra o ódio que votava ao poeta brasileiro. É assim a quadrinha: “Dizem que o Caldas Barbosa / Em Bocage aferra o dente. / Ora é forte admiração / Ver um cão mordendo a gente.” Caldas Barbosa, diz S. Romero, era um talento aberto às boas impressões, uma alma simples, pouco apta às vilezas da sociedade em que viveu. Morreu a 9 de novembro de 1800; seus versos foram publicados sob o título — Viola de Lereno, coleção das suas cantigas oferecidas aos seus amigos, edição de Lisboa, 1825; cit. Hist. da Lit., 261-263, I. Como quer que seja, não encontro sobre a individualidade do autor do Poema Mariano, indicações mais amplas, em nem um dos escritores e cronistas do século XVIII que compulsei. A identidade que ora se discute apenas tem contra si um argumento que não é de fácil resposta: se Caldas Barbosa seguiu para a Europa depois de 1762, como podia compor o Poema que é de 1770, época de sua residência em Lisboa?

[ ** ] O verbete de Sacramento Blake sobre Domingos de Caldas Barbosa encontra-se transcrito na “Nota biobibliográfica”. Nota do Neples.

Afonso Cláudio, autor da História da literatura espírito-santense, de onde foi tirado este texto, participou ativamente do movimento republicano e, quando da Proclamação da República, foi escolhido primeiro governador do estado do Espírito Santo, exercendo o cargo somente até 1890. Foi membro fundador da Academia Espírito-santense de Letras tendo ocupado a primeira cadeira, que tem como patrono Marcelino Duarte.Em 1891 foi nomeado desembargador do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, exercendo a presidência nos anos de 1892 e 1918. Em homenagem a ele, a um dos municípios capixabas foi dado seu nome. Foi também professor da Faculdade de Direito de Niterói (atual UFF).

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