Soldado camuflado na operação que prendeu os integrantes do movimento da minha aldeia vejo quanto da terra pode se ver no Universo, porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura. (Fernando Pessoa) |
Eu era apenas um menino de sete anos.
Morávamos na roça, em Alegre, no Sul do Espírito Santo, distância de uma légua da rua, como dizíamos por lá. Eram os primeiros dias de abril de 1967 e minha mãe estava indo mais regularmente à cidade porque a família preparava-se para migrar no caldo do grande êxodo rural que houve naquela época. Lembro-me ainda dos cafezais sendo arrancados na grande erradicação ordenada pelo governo.
De repente, segurando numa das mãos de minha mãe, paramos na calçada da Praça 6 de Janeiro para ver, junto com centenas de pessoas que se aglomeravam ao longo das ruas que servem de passagem para os viajantes, o desfile de dezenas de caminhões do Exército, lotados de soldados, em direção ao maciço central da Serra do Caparaó, a alguns quilômetros dali.
Era um tempo em que se falava de comunistas que roubavam as mulheres de seus maridos e comiam criancinhas, o que causava pesadelos perturbadores em todos nós. Aquela imagem fixou-se em minha retina e em minha memória. Eu dava meus primeiros passos na escola. Estava sendo alfabetizado numa escolinha de fim de rua, a mais próxima que havia de nossa casa. Andava uns oito quilômetros por dia para estudar.
Ninguém, em tempo algum, conseguiu dar-me uma explicação convincente para o que havia ocorrido no Caparaó e que movimentou tantos soldados. Nem mesmo quando prestei o serviço militar ou quando tive contato com muita gente de esquerda, anos mais tarde, já trabalhando em redações de jornais de Vitória e do Rio de Janeiro — nessa época, trabalhei com Franklin Martins na redação de O Globo sem saber, ainda, de suas atividades na resistência ao regime de 1964.
Quando, com um grupo de amigos, subi a serra para ver o sol nascer no Pico da Bandeira, na lua cheia de agosto de 1997, com temperatura a quase zero grau e o vento cortando no rosto, veio-me a inspiração: resgatar a história da guerrilha que um dia abalou a tranqüilidade da serra e dos habitantes em torno dela — dentre eles, eu.
Assim, pus-me a buscar a ponta da meada, o fio que desenrolaria todo o novelo. Depois de um ano investigando, sem respostas, junto a gente que fez a resistência ao regime militar e que ainda nos dias atuais milita em movimentos de esquerda, fui encontrar a primeira resposta na Biblioteca Estadual do Paraná, em Curitiba, onde entrei quase acidentalmente — quando se persegue um ideal, nada é por acaso.
A partir de uma informação contida em um livro que encontrei naquela biblioteca, localizei no interior paranaense o homem que foi o comandante militar da Guerrilha do Caparaó: Amadeu Felipe da Luz Ferreira.
O que se seguiu foi uma série de viagens e entrevistas que se constituem, hoje, com certeza, no mais completo acervo de depoimentos sobre a primeira tentativa de resistência armada ao regime militar de 1964 — feita por gente que, até o golpe, havia pertencido às próprias Forças Armadas, mas que divergia ideologicamente do movimento instalado sob o comando de Mourão Filho, Costa e Silva e Castelo Branco, este último o primeiro dos cinco presidentes militares.
Com meus próprios recursos, aproveitando períodos de férias enquanto estive empregado na redação de A Tribuna, em Vitória, durante seis anos viajei aproximadamente 30 mil quilômetros por nove estados brasileiros, de avião e de automóvel, entrevistei mais de duas dezenas de pessoas de uma forma ou de outra envolvidas com o que aconteceu entre 1966 e 1967 na Serra do Caparaó, resultando em mais de 100 horas de gravações e milhões de caracteres de transcrições de depoimentos. Li e pesquisei mais de 50 livros.
Enfim, um exaustivo esforço jornalístico tenta, se não responder, mas pelo menos lançar alguma luz e resgatar a memória de um movimento armado que ousou desafiar todo o aparato instalado no comando da Nação de 1964 a 1985, quando assumiu o primeiro governo civil desde que o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco inaugurou o regime militar.
É a história recontada por quem, supostamente, perdeu a guerra. E transmitida pelas mãos de um jornalista que era apenas uma criança quando, acidentalmente, tornou-se testemunha ocular da marcha das tropas da repressão.
Quase 40 anos depois, não se pode apagar Caparaó da memória histórica e política brasileira — apesar da omissão dos que escreveram a História, oficial ou não, do período, que parecem querer sufocar ou jogar para debaixo do tapete tudo o que aconteceu no decurso de oito a nove longos meses na divisa entre Espírito Santo e Minas Gerais.
Esta é a minha versão, após intensa busca. Mas não está isenta de incorreções e injustiças. Se alguém possui uma versão diferente, e quer registrá-la para as atuais e futuras gerações, disponho-me humildemente a considerá-la, reservando-me, entretanto, o livre arbítrio de aproveitá-la ou não numa segunda edição, se houver.
[COSTA, José Caldas da. Cabras e Ratos — Por que lutaram militares da Marinha, Exército e Aeronáutica na Guerrilha do Caparaó, primeira tentativa de reação armada ao regime de 1964. Textos introdutórios ao livro Caparaó, a primeira guerrilha contra a ditadura, baseado em depoimentos e entrevistas, com prefácio de Carlos Heitor Cony. Rio de Janeiro: Boitempo, 2007. Reprodução autorizada pelo autor.]
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José Caldas da Costa é jornalista e nasceu em 1960, em Alegre, Sul do Espírito Santo, no sopé da Serra de Caparaó. Escreveu para as principais revistas do Espírito Santo, atuou como repórter, redator e chefe de sucursal de A Gazeta (ES) e redator de O Globo, e voltou ao jornal A Tribuna como editor, respondendo por cinco anos (1996-2001) pela coluna política Plenário.