Uma equação introdutória que depois será retomada:
Renato Pacheco = R. P. = Erre P. ~= Ezra P. = Ezra Pound.
Os extremos se encontram quando Renato Pacheco, sob o heterônimo de Fernão Ferreiro, decide escrever os Cantos de Fernão Ferreiro por confessada influência poundiana. No Canto-sinótico I, ele não deixa dúvidas: “Ezra Pound, não concordo com você em política, / mas, em poesia, sua poética é a minha.” Explico a discordância política: Renato Pacheco pertenceu, na juventude, ao Partido Socialista Brasileiro e Ezra Pound, não tão jovem, aderiu ao fascismo.
Fernão Ferreiro dividiu sua obra em 81 cantos, agrupados em nove blocos entremeados, cada um, por 8 cantos-sinóticos. Além disso, os 81 cantos estão repartidos em dois mementos. O primeiro memento, situado em fevereiro, possui 45 cantos e foi denominado de “O Lago de Juventa”, ou seja, a lendária fonte da juventude. Esta primeira parte é como que a fonte em que o poeta, banhando-se no ato de escrevê-la, rejuvenesce. O segundo memento, que contém os cantos restantes, é datado de março e intitulado “Sol & Lua”, o que talvez seja uma menção ao término do reinado solar, vital e jovem do verão (cuja morte é assinalada pelas chegadas das famosas chuvas do início de março) e ao começo de uma era lunar de meditação, maturidade, desilusão e fim.
Da mesma forma que sua obra inspiradora, The Cantos de Ezra Pound, os Cantos de Fernão Ferreiro não possuem uma lógica ou uma cronologia que justifique a citação de um fato aqui e de outro ali. No entanto, ao contrário de Pound, há princípio, meio e fim. Os cantos, porém, são mais ou menos intercambiáveis no seu conjunto e totalmente independentes entre si. Os cantos-sinóticos, por exemplo, apresentam uma inter-relação que possibilita a sua leitura fora do contexto do poema. O fato de não haver alguns cantos (como o 3) e de faltarem os últimos (73 a 79) é apenas uma metáfora “de forma” do autor, que com a inconclusão pretende dizer que se trata de uma obra aberta, que é um poema desmontável, que, como diz o Canto 6, está “perdido neste canto / que não tem começo, nem meio, nem fim.)” O último canto (81) não existe, pois o penúltimo (80) informa que “O último / não se canta, vive-se”. Além disso, comprovando a idéia dessa metáfora de forma para a inconclusão, vários cantos são interrompidos na primeira palavra de seu último verso: “E…” (10); “Pois…” (17); “Eis…” (22); “assim…” (32).
São muitos os paralelos com Pound: o combate à usura do Canto 45 de Pound é empreendido também por Fernão Ferreiro (ver, por exemplo, o Canto 25 e o Canto-sinótico II). O multipoema do Canto 9 de Fernão Ferreiro é uma estrutura visualmente similar à que existe no Canto 49 de Pound. Em ambos os casos, a linguagem é trabalhada (chegando, no caso de Fernão Ferreiro, à criação de neologismos e de palavras portmanteau, ao uso de arcaísmos, etc.), direta, concreta, objetiva e cotidiana. O método ideogrâmico é a base em que se estruturam as obras de um e de outro. Ocorre, nos dois, a organização de um paideuma poético-cultural por meio do processo de make it new, pelo qual são renovados, presentificados e introduzidos no espaço intertextual do poema esses muitos autores e fatos fundamentais do universo cultural e emocional vivenciado pelo artista e armazenado em sua memória. Um paideuma é, segundo Augusto de Campos, “a ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos”. O principal intertexto de Fernão Ferreiro é a paráfrase de The Cantos, mas, como informa o Canto-sinótico II, há “Leituras, novas leituras, releituras, tresleituras” de Camões, Proust, Manoel Bandeira, Homero, Jorge de Lima, Dante, Chico Buarque, da Bíblia e muitos mais.
O método ideogrâmico foi criado por Pound graças ao contato com um ensaio de Ernest Fenollosa, intitulado The Chinese Written Character as a Medium for Poetry (Os Caracteres Gráficos Chineses como um Meio para a Poesia). Augusto de Campos cita um trecho do ensaio de Fenollosa: “In this process of compounding two things added together do not produce a third thing, but suggest some fundamental relation between them”. No método ideogrâmico, um conjunto de duas ou mais palavras ou idéias propõe, por meio da interação das relações comuns aos elementos (em linguagem matemática, chamar-se-ia de conjunto-intersecção), um novo sentido que difere da soma individual de cada uma das palavras ou idéias. Que se veja o ideograma, por exemplo, nas várias possibilidade de combinação destes termos: palavras em relação a palavras, versos em relação a versos, cantos em relação a versos, cantos em relação a palavras, mementos em relação a cantos, etc. Os Cantos de Fernão Ferreiro, considerados isoladamente, são apenas o ideograma-mor, chave do baú do tesouro. Mas o tesouro existe mesmo que o baú não seja aberto. A “relação comum” estaria, é óbvio, ligada a um conjunto-intersecção primitivo, exclusivo do autor, mas como ele se propõe a fugir da lógica cotidiana, cada leitor pode e deve estabelecer seu próprio conjunto-intersecção, isto é, estabelecer ou descobrir suas próprias relações, atuando na produção e na re-criação da obra no ato de tentar compreendê-la.
As rimas praticamente inexistem, como também ocorre em Pound, mas um ritmo sutil é estabelecido pela inter-relação das palavras e das idéias no espaço do poema, apesar do que Fernão Ferreiro diz no Canto 36: “o poema se constrói sem ritmo, pesado”. Contudo, devido ao esquema ideogrâmico que adotou, justifica-se que o primordial não seja a musicalidade. Nos poemas chineses, por exemplo, os ideogramas, como numa pintura ou numa operação matemática, são dispostos de acordo com seu valor e significado, e não por causa da eventual musicalidade das palavras enquanto significantes: a rima era desconhecida na literatura clássica dos chineses e dos japoneses, assim como ocorria entre os gregos e os latinos.
Os Cantos de Fernão Ferreiro pertencem, como os romances, ao gênero épico, e não só por causa de sua extensão, mas também porque o tempo verbal predominante — em especial no primeiro memento — é um passado narrado de maneira discursiva e detalhada por um herói (Fernão Ferreiro) cuja grandiloqüência enobrecedora age até mesmo sobre o cotidiano e sobre o comum. Além disso, graças ao distanciamento de Fernão Ferreiro, que é objetivo na sua descrição visionária e pessoal do mundo exterior (o seu texto é sobre acontecimentos e ações, e não sobre o mundo interior, ao contrário do que sugere Drummond, esse grande lírico, em “Procura da Poesia”), há um estado de espírito mais ou menos uniforme por todo esse poema épico. O uso da primeira pessoa denuncia a presença de um narrador autodiegético (Fernão Ferreiro), isto é, que conta sua própria história. Esse narrador dialoga, em exercícios metanarrativos, com o leitor, que ocupa o papel de narratário (receptor fictício do texto, a quem se dirige o narrador) extradiegético, que, apesar de não ser personagem da história, de estar fora dela, é mencionado pelo narrador (Canto 39), é instruído para procurar a fonte de acontecimentos citados (Canto 36) e para reler o Canto 39 (Canto-sinótico V) e, além disso, recebe esclarecimentos sobre um canto não-escrito (o Canto 3), canto não-concluído (29), canto que se perdeu (6), personagens que eliminou (Canto-sinótico II), etc. Renato Pacheco, inaugurando-se como poeta, coerentemente com seu passado, leva como herança o sol do mesmo gênero em torno do qual gravitou durante a maior parte da sua vida literária. O curioso é que os Cantos de Fernão Ferreiro talvez sejam até mesmo mais épicos do que os seus romances. Aliás, como grande parte dos romances, os Cantos de Fernão Ferreiro são metonímicos e sinedóquicos, já que, em sua articulação ideogrâmica, há uma substituição mútua que permite que a parte seja tomada pelo todo, a causa pelo efeito, o continente pelo conteúdo, o indivíduo pela classe social, etc.
Renato Pacheco se propõe a epicizar o cotidiano, provando que qualquer ato humano é tão importante quanto um outro e não apenas porque o absurdo do destino lhes é comum: a morte, que teima em aparecer entre as teias-tijolos de toda recém-criação humana. Com isto, principia-se a escrever a verdadeira História da humanidade, diferente da convencional, que diz respeito apenas às pessoas de sucesso e ao poder político, que admite que os homens são socialmente desiguais pois, se não fossem, uma história da humanidade seria a história de todos que passando pelo mundo — de lixeiros a presidentes — ajudaram a erguê-lo. O Canto-sinótico II deixa clara esta intenção: “Historinhas vão surgindo, à margem do caminho, / são comuns, aconteceram com pessoas simples.”
Este é um poema épico regional: o centro do mundo é o Espírito Santo (o ponto comum a todos os conjuntos) e o centro do Espírito Santo é Fernão Ferreiro (Canto 30), já que é a partir desses dois centros que o poeta lança seu olhar pelos arredores constituídos pelo resto do planeta. O Canto-sinótico II é claro: “Ando por esse Espírito Santo, canto por canto, / embora invente uma fictícia ilha, que nem Jorge, / é esta terra que eu amo, esta terra que é minha.” De fato, muito mais do que mitologias, gírias, lugares, cultura popular e termos regionais do mundo e do Brasil, o autor cita principalmente as coisas capixabas que tão bem conhece: bares, cantigas, rezas, folclore, praias, portos, rios, pássaros, cidades, favelas, artesãos, igrejas, artistas, vultos históricos, diversões, ruas, cemitérios, lendas, etc.
Se há algum hermetismo nos Cantos de Fernão Ferreiro, ele certamente não reside nas imagens usadas, mas sim nas muitas citações que — como Pound — faz. Cada citação é mais ou menos como um pedaço de um mosaico que retrata a visão pachequiana da cultura humana. No poema se con-fundem no mesmo cadinho-mosaico, sem traumas, o passado e o moderno, o clássico e o futurista, o kitsch e o bom-gosto, o mitológico e o real, o cotidiano e o inesperado, o comum e o heróico, o velho e o novo, o místico e o ateu, o socialista e o burguês, o político e o alienado, o genial, Proust e os quadrinhos, a sociedade de consumo e a torre de marfim, o tropicalismo e o classicismo, etc. A submersão no mistério das muitas citações que desconhecemos pode levar-nos, caso, humilde e socraticamente, admitamos o “só-sei-que-nada-sei”, a olhar em volta e a mergulhar nos enigmas que nos rodeiam, pequenas bolas de luz no meio do universo escuro. O prazer do mistério permitirá que cada um invente as causas, histórias e situações que desejar, sendo mais um convite para darmos asas à imaginação do que um freio na leitura. De fato, a explicação que a realidade pode dar não tem muito sentido para a ficção. O único esclarecimento de que se precisa é a intuição de que o leitor está com mais coisas na saída da obra do que na entrada. Sim, essa apreensão subjetiva do poema é toda explicação de que se necessita, pois é ao redor desse sol que gravitam os Cantos de Fernão Ferreiro. Além disso, como muitas das citações são explicadas à frente, deve-se seguir o conselho de Pound: “as citações, todas elas, ou são logo explicadas através de repetição, ou se incorporam de maneira precisa às coisas indicadas. Se o leitor não sabe o que é um elefante, então a palavra é obscura”. Parece-me fundamental citar Mallarmé, para quem “Nomear um objeto […] é suprimir ¾ partes do gozo do poema, que é feito da felicidade de adivinhar pouco a pouco: sugeri-lo, eis o ideal”. Sim, um dos elementos essenciais da equação poética, para irritação dos racionalistas radicais, é a surpresa encantatória oriunda do mistério do novo ou do renovado. A obra de arte mora ao lado do inexplicável: os seus meandros nunca são totalmente decifráveis, não por excesso de perguntas, mas por causa da enorme quantidade de respostas que se podem dar a cada pergunta.
[Apresentação de Cantos de Fernão Ferreiro e outros poemas heterônimos, de Renato Pacheco, Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes, 1985. Reprodução autorizada pelo autor.]
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)