Sempre quis escrever sobre Araguaia mas ou não tive disposição ou me faltou coragem. Porque não é fácil falar das coisas que se amam. Araguaia é um mundo inteiro que trago guardado no coração, com um significado difícil, muito difícil, de ser explicado com nitidez. Araguaia é sobretudo meu pai, esse homem medieval que foi um universo de valores sitiado por um mundo demasiadamente distinto de onde eles provieram, e que se destaca no horizonte de minha memória como a prova mais eloquente de que o homem é um ser viável.
De vez em quando, como ontem, por exemplo, ao assistir a Romeu e Julieta de Zefirelli, sou surpreendido pela presença de Araguaia de maneira a mais insólita. A Verona da Renascença me devolve, nas cores das paredes de uma capela, a presença nítida das festas de Natal ou de São Miguel na igreja de Araguaia, onde as andorinhas davam rasantes sobre meu rosto espantado de menino cismador diante das misteriosas paredes que teriam ouvido as vozes dos primeiros habitantes do lugar, de meus avós, que agora estão enterrados naquele pequeno cemitério de Santo Antônio, situado numa colina verde coberta de bambus.
Tenho medo de falar de Araguaia pela certeza de não poder dizer nem uma fração mísera do que deveria ser dito. Mas agora prossigo.
Para ali foram aqueles italianos do Vêneto que desembarcaram no porto de Anchieta, foram subindo o rio, de canoa, até Alfredo Chaves e depois prosseguiram a pé até uma pequena chapada inóspita onde construíram o povoado. A febre amarela os aguardava e quase mata a todos. Mas eles ficaram ali ou de teimosos ou porque não havia alternativa. Meu pai, às vezes, me falava de Pietro, meu bisavô, considerado o literato porque sabia escrever e se encarregava de mandar cartas, para a Itália, dos outros companheiros que curtiam aquela dor que deve ser imensa, a dor do transplante cultural. Imagino como devem Ter sido os primeiros tempos. Isolados lá em cima por cinqüenta quilômetros de matas e pela hostilidade habitual dos naturais de todos os lugares do mundo que se sentem ameaçados por grupos que vêm de fora. Meu pai me falou das angústias de Pietro, sempre dominado pela idéia de voltar para sua pátria, embora a Itália que ele deixara não lhe proporcionasse nenhuma facilidade para o retorno.
Lembro-me de uma viagem ao lado de meu pai, pela estrada poeirenta e esburacada que liga a BR-262 a Araguaia, na altura do km 50 para quem vai de Vitória. Chegamos perto da capela de Santo Antônio e ao lado daquela mata que continua sendo para mim a forma mais profunda do mistério. Os ninhos de japu pendurados nas árvores mais altas deixando cair novelos de uma vegetação fina assemelhada à relva. O que existirá dentro daquela mata? É o que me perguntava quando tinha uns sete ou oito anos, no regresso da ladainha que era rezada à noite pelos colonos, entre os quais toda a família de meu pai. O que existirá? Pergunto ainda hoje, sem temer o sorriso irônico esboçado pelo meu próprio raciocínio de adulto. Lembro-me do pio da coruja que vinha da mata e nos acompanhava pela estradinha, quase uma picada, e que liga a capela à propriedade de meu avô, meu falecido avô, simpático e brincalhão apesar daqueles severos e imensos bigodes que lhe caíam da boca.
Essas ladainhas noturnas permanecem na minha lembrança como um fogo mágico. Duas versões: noite escura e noite de luar. Quando o céu era negro e lá em cima brilhavam as mais belas estrelas jamais vistas, me deixava levar docemente pelo hálito fresco da noite em direção à casa de meu avô. Ia pela mão de um dos meus tios ou então trepado em sua cacunda (ah, esse carinho extremado que os italianos têm por suas crianças). Eles e eu íamos pela estradinha na borda da mata, alegres e falando alto. Bichos medievais navegando pela floresta tropical. Nas noites de lua, a sombra das árvores pelo chão e a possibilidade de nos olharmos nos olhos enquanto a coruja, velha amiga, nos acompanhava com seu pio.
A atmosfera transparente daquelas baixadas que ficam logo ali, no caminho para Matilde.
O homem está rachando lenha perto de sua casa. Um cachorro late e o eco volta das matas por perto, como uma onda primitiva e rude dos primeiros tempos da imigração. O tempo parado, o homem rachando lenha perto de sua casa simples, com aquelas vigas de madeira escura formando um quadrilátero, que é a casa onde ele vai encontrar o filho e a mulher.
A baixada está úmida da chuva caída pela manhã e agora à tarde a chaminé manda uma fumaça branca para o ar (talvez sua mulher esteja assando pão) e essa fumaça é a única coisa que se destaca no ar puro e lavado. O córrego cresceu com a chuva e vai descendo com força. O barulho da água roçando o capim das margens é a única sensação de movimento que se tem aqui neste campo entre as montanhas que se perdem na distância (lá longe é o azul da saudade) das coisas que não podem ser ditas porque se o fossem explodiriam em nossas faces com as violentas cores da maldade: a injustiça de parar o tempo e, ao mesmo tempo, de fazer movê-lo na direção do desastre, da dissolução de valores intocados que vão se perder inexoravelmente nas cidades. O homem ignora tudo isso. Passa a mão na testa para limpar o suor que lhe escorre abundante do rosto e entra em sua casa para, provavelmente, tomar café.
A placidez daquela baixada insiste em permanecer na memória. Por falta de bons acessos (a única estrada é de terra batida e muito precária) a região desse caminho para Matilde restou intocada e me parece que ficou do mesmo jeito da época da imigração, no final do século XIX.
As siricórias com suas pernas muito finas e desengonçadas correm pelo banhado, às margens do regato, e agora, ao cair da tarde, os primeiros sapos começam a afinar suas vozes para o grande concerto noturno.
Araguaia é também uma videira carregada de uvas, plantada no pátio interno de uma casa que fica logo na entrada da vila. Do cimento rachado por onde sai o tronco da videira mina uma água clara que vem do morro contíguo.
Araguaia é uma casa onde há uma pintura do Convento da Penha na varanda e onde está sentado um sempiterno velhinho dormindo um sono imemorial.
Araguaia tem sotaque carregado de italiano. Tem uma rua só e uma estação da Leopoldina Railway. Muito embora o nome de agora seja Rede Ferroviária Federal, não se pode gostar muito disso. Somente a Leopoldina de sua infância teria possibilidade de colocar em serviço uma locomotiva de nome Ramona. Essa tal locomotiva me parecia a própria imagem do poder e da força, espalhando brasas e fumaças por onde fosse passando e especialmente ao longo da linha que passa defronte das casas de pessoas que assistem a seu desfile debruçadas nos peitoris das janelas ou sentadas nos varandões floridos das casas daqueles brasileiros que falam o R simples como se fosse dobrado. Em Araguaia, pelas manhãs, há uma neblina que pousa nos morros que ficam atrás das casas e também nas hortas cobertas de alfaces, repolhos e tomates que alimentam o povo da vila. Grossos repolhos molhados de sereno, bojudos repolhos repimpando na terra fofa do esterco e aguardando o cutelo que os corta pelos talos, bem embaixo.
A água para o almoço vem de uns filtros de barro marcados com a figura de um cachorro e geralmente ficam numa copa ladrilhada onde entram pela janela rosas plantadas nos canteiros defronte. Amoreiras plantadas rente às cercas de arame farpado, pela manhãzinha, gotejam de sereno enquanto escovamos os dentes com pasta Kolynos para tomar café com broa de milho. Ou, se o Acácio fez o pão, com pão de trigo. Mas o Acácio é um padeiro muito preguiçoso que fica olhando o trem passar e gosta de ficar contando histórias sentado na porta da padaria. Por isso, dorme e acorda tarde. Nunca se viu um padeiro que acorde tarde, mas o Acácio é assim. A vila fica esperando o pão e às vezes ele não vem porque o Acácio está dormindo, e então é preciso apanhar a broa de milho na despensa e comê-la, senão todo mundo se atrasa e a criança não vai ao colégio e nem o Fiorino, o agente, pode agenciar o misto que passa na estação às sete horas.
Uma tira estreita de terra, entre a estrada de ferro e o rio Fundo: esta é a rodovia municipal que liga a BR-262 à vila de Araguaia. O sol já desceu nessa bela tarde de sexta-feira e aqui estamos num automóvel que vai garimpando as pedras e cascalhos desta rodovia que os poderes públicos conservam há cinqüenta anos exatamente da mesma forma como foi construída. Vamos entrando pelas curvas numerosas e subitamente nos vemos enredados numa região que fica do outro lado do espelho. As casas flutuam em nuvens de folhagens verdíssimas, as casas esparsas rodopiam pela colina que margeia a estrada e se confundem com as águas do ribeirão beijadas pelos bambuzais.
[Transcrito de Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.]
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)