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Armam-se as armas de Nosso Senhor Jesus Cristo

Uma das mais impressionantes rezas populares que conheço, recolhida do veio tão caro à minha saudade, é esta, “para livrar dos ladrões”:

Armam-se as armas
de Nosso Senhor Jesus Cristo,
que é a cruz, os cravos, a lança
e a sua coroa de espinhos.
Assim como Nosso Senhor
fechou a arca de Noé
com as chaves de São Pedro.
fecho a minha casa
e entrego-a a Jesus de Nazaré,
para que me livre
de mortos e vivos,
batizados e sem batizar,
e para que
nem ladrões nem malfeitores
nesta casa possam entrar!
Em nome do Padre, do Filho
e do Espírito Santo. Amém.[ 23 ]

Sua origem é evidentemente portuguesa, como, em geral, todo o rol de orações, ensalmos e responsos que o nosso povo contritamente recita, invocando santos e santas de sua especial e firme devoção.

Nesta oração, o santo que pode guardar a casa, “fechá-la” contra os ladrões, claro que só poderia ser o velho porteiro do céu. Daí a referência expressa às “chaves de São Pedro”.

Mas, não apenas contra os ladrões e malfeitores serve a oração-forte que não vi registrada em nenhum dos populários que conheço. Também contra os “mortos e vivos, os batizados e sem batizar, as bruxas e feiticeiras”, toda uma coorte de seres que possam violar a casa, com fito de espoliar os donos e roubar-lhe os bens, as pessoas ou a tranqüilidade.

Outras orações há, em que se fala também nas “chaves de São Pedro”. Esta, por exemplo, incluída no livro Tradições populares de Entre-Douro-e-Minho, de Joaquim e Fernando Pires de Lima (p. 172):

“Justo juiz de Nazaré,
Filho da Virgem Maria,
Cristo me defenda dos meus inimigos:
Tenham pernas e não me alcancem,
Tenham braços e não me maltratem,
Tenham olhos e não me vejam,
Tenham boca e não me falem!
Com as armas de São Jorge serei armada,
Com as chaves de São Pedro serei fechada,
Com o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo
Serei borrifado,
Com o leite da Virgem Maria
Serei consolado
etc. etc.

Esse responso faz lembrar outro, dirigido a São João, “oração forçosa” que recolhemos na praia de Manguinhos, próximo a Vitória:

João, João, João! O que fazeis, João?
— Lavando o Senhor no rio Jordão!
— Vês, João, aqui vêm teus inimigos.
— Deixá-los vir, Senhor!
Olhos terão, por mim passarão;
pés terão, não me seguirão;
mãos terão, não me pegarão;
pois eu, Senhor,
com as armas de São Jorge estou armado;
com o sangue de Cristo, batizado;
com o leite da Virgem, borrifado;
na barca de Adão, embarcado.
Assim, Senhor,
Meus inimigos não poderão
matar-me nem ofender-me,
nem meu sangue derramar.
Ó fonte, ó fonte de Davide,
livrai-me, meu Jesus de Nazaré.
Tendo Jesus a meu lado,
quem poderá ofender-me?
A cruz do Senhor caia sobre mim.
Quem nela morreu responda por mim,
para que meus inimigos
não se cheguem a mim. Amém.

Vê-se que as duas últimas rezas são variantes próximas. Nelas se deparam o mesmo Jesus de Nazaré, que se vê na primeira oração citada; as armas de São Jorge, o sangue de Cristo, o leite da Virgem Maria e aquela “invisibilidade” ante os inimigos, que terão olhos e não verão, terão pés e não seguirão, terão mãos e não pegarão, terão boca e não falarão…

A ingenuidade da alma popular mostra-se frisante nessas orações forçosas. Ingenuidade e simpleza facilitadas por uma fé tão forte que, por certo, por meio dela, o simples balbucio, o singelo recitar do responso impressionante e poderoso, basta para fazer fugir todos os maus, arrefecer todos os brutos, exterminar e delir toda a maldade no coração dos homens e das feras.

NOTAS

[ 23 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.

[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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