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As chamas do padre-poeta

No começo do século XIX o Espírito Santo ainda era verde. A mata espessa descia da capitania de Minas Gerais até o litoral capixaba. No sertão grosso, cuja travessia fora proibida no século anterior para proteção do ouro extraído dos rios mineiros, bugres hostis, que matavam animais a dentadas, deslizavam como sombras, misturados às árvores.

Sem ímpeto desbravador, a minguada população do Espírito Santo vivia com os pés na praia e a cabeça na brisa do mar, evitando o sertão. No vale do rio Doce esplendia a floresta ancestral e magnífica. Deus e o Diabo habitavam a terra luxuriosa tolerando-se na rivalidade complacente do compadrio.

O padre Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, filho dos trópicos, filho do Espírito Santo, sabia disto e acendia uma vela a Deus e outra ao Diabo. Entre ambas as chamas exerceu seu sacerdócio à brasileira, provando com gosto “as exuberâncias pagãs” da terra, dando asas ao seu “espírito irrequieto até o arrebatamento”. Palavras de Afonso Cláudio.

Filho natural do padre Manoel Pinto Ribeiro, o que significa ter nascido com o pecado original em duplicata, Marcelino foi feito sacerdote pela vontade do pai, que lhe deu nome, exemplo e futuro garantido. Além da certeza da boa instrução, a carreira sacerdotal constituía, na colônia ignara, trampolim para a ascensão social e política.

A decisão pragmática do pai iria selar o destino do filho ainda que, dentro da batina, Marcelino fosse carne e nervos. O padre-poeta chamou-o “pai impiedoso” em versos dirigidos a uma de suas musas.

Falamos do pai e do seu pátrio poder. Falemos agora da mãe, com a devida licença.

Da mãe que o pariu — e o pariu certamente mestiço, em 1788 — pouco ou nada se sabe. Com a devida licença, repito, e a se dar crédito à crença popular, a mãe deve ter virado mula sem cabeça depois de legar ao filho o temperamento fogoso que o fez femeeiro.

Esse temperamento Marcino — nome poético do padre — vazou corajosamente para sua poesia amorosa. E bota coragem nisso em tempos primevos e num ambiente social limitado e rústico.

Veja-se a vila de Nossa Senhora da Vitória, edificada em ilha, onde temos o padre Marcelino Duarte, em 1817.

A vila, em pose de cartão-postal, mostra-se risonha e franca, vistosa em sua brancura de cal, bem assentada nos limites possíveis entre encostas verdejantes e as águas mansas do mar. Nela amontoam-se casas de janelas envidraçadas, fortes, igrejas e trapiches.

Suas ruas, no entanto, são estreitas, sem praças nem passeios públicos, e nela não existem hospedarias. A chegada de um estranho açula a curiosidade geral; se chegam dois, arma-se um reboliço que só perde para o grande ajuntamento popular que provoca o aparecimento de burros, animais raros na ilha.

O alimento trivial da terra é o feijão com peixe e farinha de mandioca. O boi, abatido duas vezes na semana, é consumido moderadamente, ficando o couro esticado no varal para curtir ao sol, em meio ao moscaréu ruidoso. Ao curtume, a céu aberto, chama-se, por isso, Pelames.

Nas roças da vila planta-se e colhe-se regulando-se o serviço das lavouras pelo almanaque das luas. Empregam-se as enxadas e os ancinhos e, se faltam ambos, mãos à terra. Picadas de cobras se curam com mezinhas, sumo de limão e pólvora. É tiro certo.

Os fortes da vila são tantos, para o tamanho dela — São João, São Diogo, São Maurício, Carmo — que só de vê-los correm arrepios de medo na espinha, apesar de terem a pólvora úmida e os canhões silenciosos.

As igrejas da vila são tantas, para a modéstia dela — São Tiago, Misericórdia, São Gonçalo, São Francisco, Santa Luzia, Matriz, Carmo, Nossa Senhora da Conceição, Rosário — que só de contemplá-las purifica-se a alma em enlevos de fé. Na verdade, guarnecida para a guerra a vila de Nossa Senhora da Vitória vive em paz celestial.

Gravura de 1805 faz referência particular ao seu porto declarando-o “belo e abrigado dos ventos; o seu comércio exportativo consiste em açúcar, aguardente, algodão em rama e manufaturado, madeira, arroz, milho, feijão”. Era a produção da terra onde o café ainda não dera a graça de suas ramas.

Os gêneros e mercadorias desse comércio exportativo saíam por muitos trapiches e cais — das Colunas, dos Padres, do Azambuja, do Batalha, do Santíssimo, das Lanchas, Cais Grande — onde o arroto das águas, batendo no tabuado, embalava as sestas dos negros-estivas.

Já chama a atenção a escadaria entre palmeiras, diante do palácio do governo, antigo colégio dos jesuítas. No extremo oposto da vila, a ladeira de Pernambuco dava acesso ao “lugar chamado Capixaba”. Ali, fonte famosa jorrava as águas da mataria próxima. Marcelino, em versos de 1850, mencionou-a evocativo juntamente com a fonte da Lapa, gabando-lhes a pureza das águas, “o santo licor das duas fontes / que a natureza formou e inda conserva”.

Mas, e o povo, por que não aparece o povo nesse cartão-postal risonho e franco?

Não aparece porque é ralo mesmo.

Saint-Hilaire, que visitou Vitória em 1818, cita apenas 4.245 habitantes. Teria contado nos dedos ou deduzido o número pelos fogos (ou seja, casas) da vila?

No dedo, porém, podiam-se apontar os dois juízes ordinários e o de órfãos; este ou aquele mestre de ler e de contar para o gasto das letras e dos números, b-a, ba, 1 + 1; o cirurgião, o rábula e o boticário ou ainda o ferreiro-dentista que um dia dava na ferradura, outro na dentadura. Quem ousasse o desafio apontasse por fim o déspota governador, Francisco Alberto Rubim, capitão de mar-e-guerra, ancorado na terra desde 1812.

Vista está a vila de Nossa Senhora da Vitória quando dela partiu o padre Marcelino Duarte em 1817. Concedo que, nessa descrição, salpiquei-lhe suaves ironias. Nada, entretanto, que distorcesse o modelo real.

Marcelino Pinto Ribeiro Duarte amou de amor sempiterno essa vila a que chamou poeticamente de “ninho carinhoso”, doce ninho de amadas, de mulheres especiais com nomes arcádicos — Francinas, Análias, Marílias — possivelmente descobertas com olho de padre-mestre através das tramas obscuras dos confessionários.

Com elas deleitou-se, devido a elas purgou penas. Os amores a Anália custaram-lhe um ano de desterro em Itacibá. Foi determinação de Rubim que, guardião dos bons costumes e da ordem pública, não admitia as derrapadas amorosas de Marcino. Este jamais perdoou ao tirano, cujas arbitrariedades — e foram tantas — foi denunciar à corte. Agia em causa própria, mas não mentia.

A ida é o tema do longo poema Derrota de uma viagem ao Rio de Janeiro em 1817. Se o padre teve ou não força para remover da capitania o todo-poderoso governador, não está muito claro. Afinal, Rubim era bem cotado na administração portuguesa desfrutando do respeito e da proteção nepótica do tio, o intendente Paulo Fernandes Viana. Além disso, pontificara como administrador notável ao rasgar, sertão adentro, a estrada que pôs o litoral do Espírito Santo em ligação direta com Vila Rica.

Seja como for, o capitão de mar-e-guerra acabou removido para o Ceará, em 1819. Marcelino Duarte pôde então voltar ao ninho carinhoso, recomeçando a amar e poetar com mais desembaraço entre uma vela a Deus e outra ao Diabo.

[Transcrito da Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui

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