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Bebop

Oscar Gama Filho

A fôrma é o homem informe. O homem é a forma informe. E, se o mundo real não permite que vivamos o gozo idílico de um amor inviável nos tempos da inteligência emocional, Reinaldo Santos Neves o eternizou, consumando-o e sublimando-o pela eternidade neste seu livro de poemas.

Certo, há gritos em cada verso, mas quem passa não os percebe. O trovador os escondeu em tom de humor contínuo, irônico, dândi, sóbrio, elegante e reservado, escarnecendo dos próprios sentimentos em um lento e belíssimo trabalho de destruição do que construiu.

Nada mais compreensível: Sísifo é seu modelo. Rei criminoso de Corinto, Sísifo foi condenado a empurrar, no inferno, uma pedra montanha acima que, ao chegar ao topo, tornava a cair imediatamente. Parece absurdo, porém a tarefa de rolar a rocha, paradoxalmente, conferiu sentido à sua vida. O vate, em processo semelhante, na impossibilidade de possuir Jose, a musa desejada, optou por realizar interminavelmente um sonetário, a que transferiu o prazer extraído da tortura de escrever: “E eu quero? É Sísifo o meu modelo, merda: / amo o poema assim como ele ama a pedra” (soneto 38). Tudo bem: ele já nos avisara que “a função maior do homem no mundo, a meu ver, é transformar-se em literatura” (cf. orelha do romance-confesso Sueli, em que narrou, com coragem e brilhantismo, a sua história de paixão por essa primeira musa, arma empregada para desafiar o falso moralismo capixaba, abdicando de seu reinado e posses e exilando-se, Rei Lear, próximo ao cemitério de Manguinhos).

A propósito, um caso: brincávamos, eu e Reinaldo, na Editoria da Fundação Ceciliano Abel de Almeida, durante as décadas de 70 e 80, comentando, admirados, que o famoso contista capixaba Luiz Fernando Tatagiba havia deixado de ser humano para se tornar um personagem do realismo mágico tatagibiano. Contudo, porque as palavras têm um alquímico poder de abre-te sésamo!, colhendo o que plantamos, pude ver – com estes olhos que vos falam – o contágio estético de Reinaldo, que também deixou de viver para se transfigurar na fonte de inspiração de seus livros. Isto se evidenciou em Sueli, onde assumiu a semi-identidade de Reynaldo para falar de um amor real que, na verdade, só foi correspondido pela sua própria mente. Jogos mentais. Eu mesmo, em Sueli, participei da trama e, pelo telefone, sugeri a sublimação da sua paixão e a sua conversão em literatura. Nasceu, então, Sueli: “Eu sei, eu sei, dizia Oscar. E me veio com uma teoria psicanalisando o comportamento de Sueli em relação a mim. e aí, pela primeira vez, eu me fiz ver que Sueli, of all people, tinha um quê de personagem de romance.” (Vitória, Fundação Ceciliano Abel de Almeida / UFES, 1989, p. 149).

Daí a sua vida se fazer a-maior-função-do-homem-no-mundo-é-transformar-se-em-literatura parece natural para quem possui um invulgar olhar estético contínuo que atravessa, até no dia-a-dia extra e antiliterário, todos os pequenos detalhes do cotidiano, metamorfoseando-os em arte, a exemplo das latas de Coca-Cola, da pizza e dos objetos de consumo: pop-art misturada à erudição do jazz e a inúmeros intertextos e alusões a autores clássicos.

Quando, em 1978, criei a primeira oficina literária local – chamada, oficialmente, de Editora Cooperativa de Escritores Capixabas, com a participação de Miguel Marvilla e de Marcos Tavares, bem como de Gilson Soares e de Benilson Pereira, entre outros -, bradei, em grito-slogan de guerra: “Literatura exige compromisso. Ou se escreve, ou se vive. Se a opção é escrever, tem-se que pautar a vida em função da literatura.” (cf. Monteiro, Lígia. A luta dos novos poetas capixabas e o bloqueio editorial. A Gazeta, Vitória, 3/9/1978, Caderno 2, p. 4).

Talvez tenhamos produzido, na época, um movimento fanático estético-religioso, à Fausto, em que trocamos a humanidade, emprestamos a vida e perdemos dinheiro – em geral, pagamos pela publicação de nossas obras – pela visão permanente da beleza quintessencial da arte, nossa deusa. Esta era a pedra-de-toque do Grupo Letra, fundado em 1981 e formado pelos inesquecíveis sete cavaleiros do graal: Renato Pacheco, Reinaldo Santos Neves, O. G. F., Miguel Marvilla, Marcos Tavares, Luiz Busatto e José Augusto Carvalho (a ordem arturiana certa a que pertencemos estrutura-se pelo inverso, redonda e sem cabeceira). Esta era a pedra-de-toque: converter nossas existências em um acontecimento literário interior capaz de fornecer bons diálogos, cenários, figurinos e músicas a roteiros originais que iluminassem o repetitivo e tedioso livro do cotidiano, já que o sentido da vida é a emoção. Qualquer uma. Mas emoção-mor é a estética, com seu poder de dourar a pílula a ponto de criar uma supra-realidade maior, mais interessante e mais compensadora do que a mesmice real. Por ela, vale a pena morrer. Ou viver.

Isso, são sonetos ingleses, sofridos, como terapia ou suplício, entre os anos de 1988 e de 1991 – diz ele, na nossa pena, tão zombeteiro a ponto de rir de si mesmo e de seu próprio texto.

Sua engenharia genética conseguiu reunir o Poema Graciano e Sueli – macho e fêmea os fez – em um só livro, filho feliz de dois impulsos em direção ao vácuo em que estaria o Outro. Pois a redação de Sueli – retomando os acontecimentos inaugurados em 1982 – termina em 1988, ano em que se iniciam estes poemas.

As estrofes deste livro bebop – que moram em casas de espetáculo enfumaçadas de noir pelo ritmo do jazz – nasceram, portanto, de um lento exercício espiritual jesuítico de sublimação do mundo da carne para, a partir de migalhas sensoriais, criar o mundo ideal com que a alma se satisfaz apesar do corpo.

Se, no Poema Graciano (Revista Letra, Vitória, Grupo Letra/Fundação Ceciliano Abel de Almeida, ano II, 1982, p. 72-87), Santos Neves preferiu o ritmo binário dos computadores para marcar sua traição, neste novo texto decidiu eterno-retornar à tradição clássica que bem descrever a parte oposta e complementar de seu espírito pós-moderno. E, dotado da genialidade que sempre o acompanhou, atingiu, outra vez, a intemporalidade do belo.

Rei que abandonou o poder de seu reino, o poeta não hesitou em trair, supostamente, a si mesmo e ao leitor por duas vezes, abdicando, aparentemente, da rima nos dísticos finais – técnica característica do soneto inglês – e do uso de decassílabos visíveis.

De fato, os decassílabos surgem como uma auto-imposição no soneto 3 (“Nem sei se pra meus pobres decassílabos / lugar há em teu ouvido, em tua boca”) e no soneto 12 (“e coibido a me expressar em decassílabos, / é aí que me liberto, que me solto, / que me entrego abertamente ao exercício”), algemas que existem apenas para que ele rompa com seus elos silábicos, impondo um ritmo de bebop que cria decassílabos mentais amétricos. Embarcando nos princípios de um músico de jazz, Santos Neves aceita a prisão do soneto para se libertar e jamais desafina ou atravessa em seu improviso, pois retorna, invariavelmente, ao decassílabo, soando tal um ser primordial único: o amor. e de que adianta ser púnico?

O Poema Graciano é épico, barroco e contra a norma, constituindo-se em um momento de transgressão estético-moral. Uma tradição aos costumes e valores herdados que, existencialmente, o antigo cavalheiro-e-bom-rapaz teria de cometer para se resgatar seu: “eu sou meu”, proclamou Reinaldo em Reino dos Medas (Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1971). Este comportamento tem sua continuidade no romance-documentário Sueli. No entanto, estes poemas executam uma lírica, enxuta e irônica reverência à tradição, paradoxal em um tempo que a nega via globalização informática. O vate amadureceu, voltou ao caminho do meio zen e abriu mão de seus sonhos de dar ao mundo uma nova ordem mais justa, porém revolucionária – com as suas inevitáveis mortes. Encontramos, agora, uma sarcástica homenagem à alma, à maturidade que aceita as imperfeições e as impossibilidades da amada. E que não demonstra paciência ou esperança de realizar seu amor: “Não penses que te quero de verdade, / por amada ou por amante ou pura- / mente concubina, só porque o digo / e assevero em dialeto de soneto. / O que faria eu de ti? Não tens qualquer / talento além do corpo, e o teu corpo / duvido que ofereça o que alardeiam / […] / Te quero é no poema, é no papel; / melhor do que num quarto de motel” (soneto 28). Na verdade, nem sequer leva a sério o amor – seu totem, gato (soneto 27) escaldado, tem medo de água fria.

A burilada forma destes poemas bebe, assim, na tradição pura, ancorada em sonetos decassílabos para zarpar no estilo de Charlie Parker e Charlie Mingus, enxutos, descritivos como um romance medieval, dois versos se abraçando no final sempre feliz dos sonetos em rimas que realizam o amor impossível fora do espaço literário em que vive o poeta. Por outra: consoam os amantes apenas nos dísticos terminais – e se alguns versos parecem brancos é porque, imitando tal qual Jose, as rimas estão presentes na ausência. Sabe bem o poeta que o amor é para se buscar que existe: / assim que o achamos, começamos a perdê-lo para o coração ficar triste / e de novo termos sentido de procurar o amor impossível.

Somos contraditórios ou somos robôs. A forma lírica do soneto esconde, no fundo, um romance – no duplo sentido de gênero literário épico e de relação amorosa – em versos, descritivo, dotado de ação, de personagens complexos bem delineados e de diálogos que cativam pelo talento com que foram tecidos, pelo inverso de jogos-de-palavra, pela estilística da repetição mais-que-drummondiana e pela musicalidade.

A última, musicalidade que se quer música, representando parte da aspiração à pedra filosofal da obra, pode ser encontrada tanto no farto uso do paralelismo – recurso medieval e bíblico que sempre o encantou – quanto em rimas internas, coliterações e aliterações (“eu diga enfim a que eu vim, e então verás / o que é paixão veraz, voraz paixão, / feroz, feroz e vã. Ouviu? Eu disse / vã, pois tanto afã que me ulcera é em teu / nome que me ulcera, ninfa em torpor” (soneto 37), e assonâncias (“sempre / separe”, assonâncias rimáticas do soneto 12) do ritmo bebop imposto e ouvido só por iniciados – e por iniciados que não sejam surdos.

Um arcabouço de todo sólido, recheado de alusões e de intertextos, típicos da obra reinaldiana, liga estes poemas a elos de uma atmosfera simultaneamente erudita e noir, unindo a sutileza e a elegância do jazz ao insuspeito poder de sedução pop-consumista da Coca-Cola em um mesmo movimento de transcendentalização.

Como bom romance, tem início, meio e fim, descrições, ação, trama, suspenses, climas. E o clímax da narrativa é também sexual, pondo um ponto final ao que – infelizmente para a literatura em que se transformou a sua vida – deixou de ser platônico e artístico, com sua carga de angústia e de fantasia criadoras, para se tornar carnal e real, completando-o e, assim, destruindo o vazio romântico idealizado: “Pronto, está feito o que tínhamos, Jose, / de fazer, só pra saber que não tínhamos, / Jose, de fazer. Mas pronto. Ainda / Jose és, musa não mais. Em teu corpo / cada coisa está em seu lugar, só / as qualidades literárias do teu / corpo já não endoidam o poeta / vagabundo que te comeu em verso / e agora só te quer pra te botar / uma pedra em cima. Que mais que falta? / Ah, sim, jogar, em seu devido lugar, / jogar lá no lixo as latas de Coca. / E é só. Desculpa qualquer coisa. E não temas: / dou minha palavra: fim dos poemas.” (soneto 48). Achado e consumado o amor, nosso vate o perde enquanto elemento estético-metafísico e se recusa a lhe dar continuidade, convertido como está em matéria, em compromisso rotineiro, repetitivo, banal e tedioso sacramentado pelas instituições. De que vale ascender aos céus, se o anjo do adeus vive em nós? Desiste, então, de recuperá-lo para poder voltar a procurá-lo – inutilmente, agora sabe – junto a todas e a ti, leitor hipócrita, meu semelhante, meu irmão!

[Introdução ao livro Muito soneto por nada, de Reinaldo Santos Neves, 1998. Texto reproduzido com autorização do autor.]

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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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