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Bravos companheiros e fantasmas ou conversa lamentavelmente escatológica

Digital entrou na delegacia, viu Pedro, o escrivão, com o livro Bravos Companheiros e Fantasmas, de José Carlos Oliveira, e largou a imbecilidade:

“Não vai me dizer que você acredita em fantasmas!”

Fazendo-se de desentendido, Pedro aceitou o desafio: “Explique, por favor, o profundo significado da sua observação.”

O delegado abriu sob o bigodão carbonário um sorriso cavalar (entenda-se: próprio de Digital), apontou o livro na mão do escrivão e massacrou, superdelegadamente: “Olha a prova do crime!”

Estampando nos olhos uma piedade literária que Digital nunca seria capaz de apreender, Pedro admitiu: “É verdade, eu acredito em fantasmas!”

O sorriso cavalar transformou-se num relincho estrepitoso, enquanto o delegado anunciava aos quatro cantos da delegacia: “Ei, putada! Nosso escrivão acredita em fantasmas!”

Com uma calma digna de quem estava se preparando para um embate de judô, Pedro rebateu:

“Apesar de você não acreditar em fantasmas, se lhe aparecesse um pela frente, o que é que você faria?”

Digital não titubeou na resposta: “Eu o enfrentava no pei…”

“… peito?” interveio Pedro cortando pela metade a palavra que o delegado ia cuspir.

“Peito nada! Você sabe o que eu ia dizer!” contrapôs Digital, disparando um novo relincho que mais parecia descarga de carro turbinado – ou qualquer outro tipo de escapamento que se possa imaginar.

“Eu pensei que você fosse dizer que recebia o fantasma a bala, como Floriano Peixoto disse para os ingleses que ameaçaram o Rio de Janeiro,” comentou Pedro.

“Qui bala nada! Vê se eu ia gastar munição com um fantasma idiota… Mas quem foi Floriano Peidoto?”

Pedro deu um risinho tão ferino quanto a gargalhada que antes lhe dedicara o delegado, e professorou: “Peixoto… Floriano Peixoto, o segundo presidente do Brasil. Era chamado de marechal de ferro. Você nunca ouviu falar nele?”

“Se ouvi, esqueci e não me arrependo,” respondeu Digital. “Mas se foi macho como eu, estou começando a gostar do cara. E os ingleses atacaram o Rio?”

“Recuaram diante da macheza do marechal,” disse Pedro, “como qualquer fantasma recuaria do seu… como direi… explosivo e indecoroso.”

“E ia ser explosivo mesmo para fantasma nenhum ficar na minha frente!”

“Ou para não ficar nas suas costas?” provocou Pedro.

“Costas, lado, frente… onde o fantasma aparecesse… Eu o receberia com os certeiros disparos das minhas tripas.”

“Então isso quer dizer que você também acredita em fantasma…” encaixou o escrivão.

“Por quê?!”

“Porque se você admite espantar um fantasma com os disparos de suas ventosas indigestas é porque admite encontrá-lo pela frente… ou pelo lado… ou pelas costas…”

“Não banque o engraçadinho comigo! Foi só um paradoxo que eu fiz.”

“Paradoxo?!”

“É… Uma comparação! Não deu para entender?”

“Agora deu, com o seu esclarecimento. Eu esqueci que você é doutor em vernáculo…” gozou Pedro.

“VERNÁCULO?!” espantou-se Digital.

“A língua mater …” completou Pedro.

“Esta eu nunca estudei!” disse o delegado.

“Pois eu pensei que você fosse um poliglota…” refinou Pedro a gozação.

“Um, o quê?”

“Poliglota! Pessoa que fala várias línguas.”

“Para mim basta falar bem o português, como o paradoxo que eu falei e você não entendeu…” exibiu-se Digital.

“É que o seu paradoxo só fez aumentar as minhas dúvidas com outro paradoxo.”

“Por quê?”

“Porque se eu acredito em fantasmas, como acredito; se estou com um livro sobre fantasmas, como você está vendo; se estamos conversando animadamente sobre fantasmas, é porque eles devem existir, você não acha?”

“Acho porra nenhuma. E já vi que você está querendo me sacanear…”

“Quer dizer que você não acha?…” insistiu o escrivão.

“Claro que não. Como eu costumo dizer, seu mal, Pedrinho, é ser metido a besta só porque é escritor e escrivão de polícia. Que aliás são duas grandes merdas…”

Sem se perturbar com a grosseria do delegado, Pedro retrucou:

“A sua conversa está tomando um rumo cada vez mais escatológico…”

“Esca… o quê?”

“Es-ca-to-ló-gi-co!” soletrou Pedro em tom sardônico.

“Que bosta é esta?”

“Em sua boca a resposta! Escatológico vem de escatologia, que se refere a excremento e seus derivados.”

“E quais são esses derivados?”

“Estrume, esterco, a merda que você citou há pouco… A propósito, sabia que merda é uma palavra clássica, vinda do latim? Sabe o que é latim?”

Digital tufou o peito e mordeu a isca:

“É a língua que se fala em Roma! Você pensa que eu sou burro? Sei até que existe um mar de merda, só não me lembro onde fica, porque nunca fui muito bom de geografia…”

Com o olhar desolado, Pedro disse: “É porque este mar muda muito de lugar…”

“E titica também vem do latim?” indagou Digital, dirigindo sua escatologia em novas direções.

“Sei lá de onde vem,” retrucou Pedro.

“Ah, ah, ah… titica vem da galinha… Peguei você, seu sabichão!”

“Nem sempre titica vem da galinha, delegado. Às vezes vem de bichos dos quais a gente menos espera…” disse Pedro, fixando o delegado no fundo do olho.

“Pra mim, titica vem de galinha e foda-se quem pensar o contrário.”

“Volto a dizer que você está tremendamente escatológico… Nem sei por que estou alimentando esta conversa lamentável…”

Digital fez um silêncio meditabundo antes de recuperar a língua:

“Se estou escatológico, você também está, porque a conversa é entre nós dois, concordas?”

Apanhado, em princípio, pela lógica imprevista do delegado, Pedro reforçou a ironia:

“Sua conclusão foi tão surpreendentemente brilhante que estou quase cometendo a heresia de lhe emprestar o livro de Carlinhos Oliveira para você ler… Mas teria de ser em xerox para o original não ficar esculhambado em suas mãos…”

“Esse aí sobre fantasmas?” – e havia um agressivo desdém na pergunta de Digital.

“Sobre fantasmas e sobre bravos companheiros… Seria uma boa oportunidade para você tentar entender, se for possível, o sentido que Zé Carlos deu à palavra fantasma.”

“Você sabe que não gosto de livros. Prefiro ouvir um CD de Valdique Soriano… Mesmo porque não iria perder tempo com um cara que eu nunca ouvi falar, como este zé-não-sei-o-quê que você falou.”

“É um dos maiores cronistas do Brasil, nascido no Espírito Santo…”

“Pois estou cagando e andando para ele e para todos os escritores que você conhece. Quero mais que eles…”

“Já sei o que você vai dizer, Digital…” atalhou Pedro.

“Sabe, não é? Pois é o que eu ia dizer mesmo… Seu mal, Pedro, é que…”

“Também sei o que você vai repetir…”

“Então não preciso falar mais nada…” – e lá se foi o delegado para o seu gabinete, com a camisa de seda amarela grudada no peito suado e cabeludo,  encerrando a conversa com o escrivão.

Pedro pousou o olhar no livro de José Carlos com jeito de quem pedia desculpas ao cronista e ficou matutando, apenas por matutar: como explicar a Digital a mensagem do autor no prefácio da obra: É Nietzsche quem nos fala desses “bravos companheiros e fantasmas” – fantasmas chamados desde tempos pretéritos; companheiros adivinhados nos tempos vindouros – com quem dialogamos, cujas máscaras usamos, que nos estimulam e confortam, na total ausência de amigos de carne e osso, de entes queridos, de simples interlocutores.

Nunca seria possível, concluiu, sugando um Carlton que acabara de acender com um dos muitos isqueiros de sua coleção, desta vez o marrom-esverdeado, nojentamente escatológico.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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