A Estrada de Ferro Vitória-Diamantina, como se chamou, por primeiro, a ligação ferroviária de Vitória a Minas, marca minha tomada de consciência da vida.
Madruguei sob o clima ferroviário, quando todas as esperanças do Estado do Espírito Santo se polarizavam na construção das duas ferrovias: a Sul do Estado, depois Leopoldina, e a Vitória a Minas, que desvendaria o mistério das margens tenebrosas do rio Doce.
Meu pai foi de começo recrutado para o empreendimento inacreditável. Lembro-me ainda da noite da dormida num barraco de Porto Velho. Soube depois ter sido em março de 1903. Devo ser a última testemunha dessa formidável façanha que veio a definir o destino da terra heroica de Vasco Fernandes Coutinho. O acontecimento, com a legenda que o celebrizou, imprimiu-se-me na alma e vem à tona de quando em vez, não sei se com alegria ou tristeza.
Para mim, a vida se assemelha a um arquipélago. Cada dia de existência constitui uma de suas ilhas e, à noite, elas se iluminam pelo farol protetor da costa, que as clareia periódica e sucessivamente. Focalizar e concatenar ordenadamente essas ilhas é rever de golpe nossa vida pretérita. Que Deus ilumine meu arquipélago com a luz da verdade.
Os Derenzi foram localizados próximo a Cariacica. Desse tempo, passados setenta anos, ficou-me a paisagem. Acampamos à margem do Bubu. Nossa barraca era coberta de zinco, embarreada, sem reboco, com três cômodos de chão batido e a infalível puxada para a cozinha e o forno, que os italianos não dispensavam. Moitas de ingazeiros e dois pés de jequiritis ensombravam o córrego preguiçoso na fase final de seu curso, no mangal do Porto de Cariacica.
A vegetação para jusante era rasteira, sobre o chão úmido, onde a passarada, pela manhã, se deliciava bicando goiabas e araçás, justamente aqueles que eu esperava que amadurecessem. Do lado de cima nascia a pastagem, a perder-se junto à fazenda do “coronel” José Rodrigues, lá no sopé do Muchuá, onde o horizonte toca a serra e nascem as chuvas do nordeste. Em nossa frente, numa colina suave, o cafezal defendia o sobrado de Joaquim Bermudes. Era uma fazendola em decadência e seu proprietário guardava a velha prosopopeia dos tempos da escravidão. Umas arrobas de café capitania, uns tantos sacos de açúcar de tacho, e alguns alqueires de farinha somavam a safra do “capitão” Bermudes, cujos filhos eram chamados de sinhozinhos e sinhás.
Eu passava o dia trepando num ingazeiro cujos ramos atravessavam o córrego. Sacudia-o todo, resfolegando como se fora uma locomotiva. Na minha fantasia a semelhança era perfeita. De vez em vez, numa curva imaginária, o trem desencarrilava e eu caía heroicamente nas águas do Bubu. Não tardava o socorro. Minha mãe acudia no momento exato em que me debatia nas águas fundas de três palmos. Um puxão de orelhas, umas palmadas, roupa enxuta, um caneco de café bem quente e a clássica advertência: “Você um dia apanha febre…” Depois da surra mamãe me adulava e meu irmão Amadeo, um homenzinho para mim, me convidava a brincar com carretéis transformados em carros de boi. Mas eu só queria voltar para o ingazeiro, para me desculpar à tripulação e aos passageiros do trem.
Meu primeiro amigo foi Belmiro, um caboclinho claro, filho de escravos, de oito ou dez anos, campeiro de cavalos e vacas. Com ele aprendi a armar alçapão e pegar canário, lá pelos lados do Porto, nas terras de Virgílio Schwab. Como eram bonitos aqueles canários amarelinhos com as cabeças cor de brasa… E os coleiros, os curiós, as rolinhas, em bandos, beliscando aqui e acolá…
Toda semana um trabalhador adoecia de maleita. Alguns morriam com poucos dias de febre intermitente. Eram, na maioria, patrícios de meus pais. Os brasileiros resistiam mais e os caboclos diziam com sentimento: “Gringo não arresiste à maleita. Mais vale ser nego do que branco.”
A primeira festa a que assisti foi no Porto de Cariacica. Era dia de Reis. Muita gente. Havia dois grupos fardados: um verde, outro azul, todos com alamares dourados, punhos e galões vermelhos. Espadas. Muitas mulheres, algumas com crianças no colo. Saias de chita de cores vivas, camisas de cassa branca, engomadas, decotes de ombros e de peito, fazendo ver as rendas de bilro. Cabelos em tranças amarradas com fitas.
Sambavam, cantavam, batiam palmas, as toadas eram africanas. Os militares, príncipes e reis, movimentavam-se com ritmo, tangendo a junta de bois que puxava o mastro: um toro roliço de cinco a seis metros de altura que seria fincado junto ao cruzeiro, o estandarte de São Benedito. Depois do mastro bento e fincado, começava o batuque. Nessa altura a cachaça já fazia efeito. Bandejas de cocadas, pés de moleque, bolos de arroz à disposição dos festeiros. À sombra das jaqueiras, moças, rapazes e crianças cantavam toadas ingênuas:
Chô, chô, chô
moreninha bela frô
ó prenda singular
moreninha, chô, chô.
Caranguejo não é peixe
caranguejo peixe é
caranguejo só é peixe
na enchente da maré
Eles nos chamaram para entrar na roda. Nós não entramos, não sabíamos cantar nem nos expressar na língua deles. A festa durou o dia inteiro e se prolongou por toda a noite e nós conhecemos a festa dos Reis e a puxada de mastro. Uma tradição esquecida em Cariacica, do tempo em que se comia com a mão e as tanajuras eram quitutes requintados.
Com a revolução toponímica das cidades é provável que ninguém mais saiba onde era o povoado de Conde d’Eu. Uma colônia de italianos implantada em plena mata, em 1875, onde o impaludismo dizimou milhares de imigrantes. Com a República, passou a se chamar Pau Gigante,[ 1 ] pela abundância de árvores e essências nobres de altura incomum. Foi a existência de um jequitibá, com cerca de cinqüenta metros de altura, que exigia doze homens de braços estendidos para abraçá-lo no sopé, que celebrizou o lugar. Era mata milenar, que distinguia a região banhada pelo rio Piraquê.
E a estrada Vitória a Minas fez revivê-la do marasmo que as febres lhe tinham imposto. O IBGE pretendeu suprimir a duplicidade dos nomes dos municípios. O mais antigo, historicamente, ficou com o nome tradicional e os homônimos recorreram ao tupi-guarani para substituir-lhes os apelidos geográficos. Ibiraçu significa pau da casca grossa. É preciso muita abstração para se admitir o acerto da troca dos nomes.
Antes de habitarmos em Conde d’Eu, que o colono pronunciava “Condedeu”, moramos poucos meses em Ibiapava e Queimado, lugares fortemente castigados pelas febres palustres. Demoramos um pouco mais em Fundão, plena mata alta, na cabeceira da ponte velha, construída pelo “Seu” Derenzi, juntamente com a antiga esplanada e a estação. Quanta lembrança da passarada, dos palmípedes à sombra do rio, e das cobras.
Conde d’Eu foi para nós um sorriso, aberto em plena mata. Uma clareira habitada por centenas de italianos que ali se localizaram desde 1875, quando se iniciou, para o Espirito Santo, a colonização latina dos peninsulares do norte. Um arraial com capela sob a invocação de São Marcos, cemitério no morro fronteiro, padaria, vendas, botequins e casas de colonos que lavravam suas terras, confinando com o patrimônio da colônia. Os garimpeiros, como eram chamados os trabalhadores em terraplenagem, aos domingos afluíam para lá.
Nós íamos a Conde d’Eu só ao entardecer dos domingos, porque naqueles tempos trabalhava-se de sol a sol e aos domingos se largava ao meio-dia para ganhar a jornada. A caminhada se fazia acompanhando o córrego encoberto de Iírios do brejo, de perfume penetrante. Na volta, à noite, era um coaxar de sapos, ritmado de pios de corujas e nuvens de pirilampos com seus faroletes pisca-pisca. No Conde nós íamos à reza, na capela, puxada pela velha Pasquina, viúva muito querida que, além de padeira, mantinha um botequim onde se faziam ótimas refeições de agnolini, frango, polenta e salada.
“Seu” Derenzi jogava bocha com os Sarcinelli, os Modenesi e os Negri, valendo a ceia.
Nosso rancho era sobre um pequeno espigão rochoso, na propriedade de um pobre imigrante viúvo que teimava em curar seu impaludismo bebendo cachaça. A propriedade, em decadência, era cuidada por sua filha Rosina, de treze anos, e duas irmãs menores que catavam café nas poucas moitas restantes. A fortuna da família residia na posse de uma vaca, obrigada a fazer meia panela de leite, para acompanhar a polenta.
As turmas da construção da estrada se estendiam ao longo do traçado em acampamentos de dez a quinze operários. Os barracos eram verdadeiros cafuas de pau a pique, forrados por dentro com folhas de coqueiro e cobertos de sapê. As camas de varas suspensas sobre quatro forquilhas não tinham, além da esteira de tábuas, outra cobertura, nem travesseiros. Só os estrangeiros usavam colchões de palha de milho, lençóis, colchas e travesseiros. A turma de “Seu” Derenzi era a que melhor se apresentava. Todos italianos, alguns casados, com seus barracos embarreados, fincados à beira do córrego, com paredes divisórias separando os quartos do comedor. Sim, não era sala de almoço. Mesa fixa no chão, assentos corridos de varas ou um simples pau lavrado. Na parede uma imagem de santo e uma lamparina a querosene. As toalhas e panos de cozinha eram de sacos de farinha de trigo ou açúcar.
Nós tínhamos melhor indumentária. Lençóis de linho, colchas de croché, cobertores de lã, toalhas de rosto, além de trens de cozinha, de cobre ou estanho. Minha mãe trouxera tudo da Itália. Além desses trens de viver, vestidos de lã e seda, blusas de musselinas, colares de coral. Aliás, todas as famílias estrangeiras, por muito pobres que fossem, tinham seus petrechos de cama e mesa. Uma estampa da família real justaposta à folhinha era ornato obrigatório.
O que amedrontava todo mundo eram as cobras. Nos tocos de árvores, nas moitas de bromélias, nas lapas de pedreiras, eram fatais as cobras venenosas. As jararacas se movimentavam mais e muitas subiam pelas paredes dos ranchos, à caça dos passarinhos que faziam ninhos nas cumeeiras.
Os caboclos diziam que as jararacas de rabo branco, as mais venenosas, se deslocavam à noite para os ranchos habitados por mulheres que amamentavam suas crianças. Diziam que a cobra distraía a criança com o rabo e chupava os seios da mulher. A mãe não acordava porque a cobra encantava as lactantes. Acontece que a região era propensa ao amarelão, que atacava, de preferência, as mulheres e crianças. Ora, com a alimentação pobre em vitaminas as mulheres eram todas acometidas de febre, principalmente as lactantes, e as negras e curandeiras diagnosticavam categóricas: “A jararaca tá mamando ela.”
E as pessoas com certa instrução perdiam tempo em desfazer essa balela. Mas as pobres italianas chucras viviam apavoradas, quando juntamente com os filhos de peito empalideciam e perdiam peso.
Meu pai se fazia querido. Era preferido pelos engenheiros residentes por seu capricho no serviço, por ter uma turma boa e por ser mamãe excelente cozinheira. Os engenheiros, os fiscais, os médicos, em suma, o pessoal da administração, não fazia cerimônia em se convidar para comer os talharins e frangos que Dona Marieta preparava.
Eu quisera que minhas palavras tivessem o frescor da juventude e a riqueza vocabular que o amor sugere quando nasce, para traduzir todo o dramatismo em que se viveu, naqueles anos terríveis, que foram os passados na construção da Diamantina, nos anos de 1903 a 1908, de que minha família participou. Foi melancolicamente empolgante. As condições de trabalho, a heterogeneidade da massa humana, o meio físico complexo e incoerente, formavam a trama do cotidiano.
Pelo juízo que posso fazer, a construção da estrada enfrentou só fatores negativos: clima insalubre, mata quase contínua, mão-de-obra rara, recrutada nos Estados distantes. A não ser os nascentes núcleos coloniais de imigrantes italianos, tais como Ibiraçu, Acióli, Cavalinhos, Baunilha, Colatina e Vila Mascarenhas, de poucas dezenas de moradores, no território espírito-santense e no território mineiro, servindo de divisa Natividade de Manhuaçu, hoje Aimorés, a região só tinha um pequeno negociante, por sinal muito prestante: o Bittencourt. E a mata continuava hostil e inóspita até Figueira do Rio Doce. Mas era singularmente bela não fossem as feras e os índios. Porém a população dos pássaros canoros e multicores e os caminhantes de curtos vôos, espaventados ao menor ruído, enriqueciam o ambiente. Familiarizei-me com araras, papagaios, periquitos, maitacas, tucanos, pica-paus, rabilongas, guaxes, que sei eu, santo Deus, que não me lembro mais. E os mutuns, os inhambus, as sericoras, piaçocas, os frangos d’água! No capoeirão, a beira dos rios, as saracuras, os martins-pescadores, os terríveis bem-te-vis e rolas intrometidos e as sabiás tristonhas, sempre a chorar. Esta fauna foi meu encantamento e a floresta virgem a catedral de minha devoção.
Minha mãe me ensinou a amar a Deus e a rezar para que ele nos protegesse e eu louvei a mata, e, para afugentar o medo, quando tinha que percorrê-la para levar café ao papai, ia rezando para não encontrar nem as feras nem o Saci Pererê, que Nhá Inácia, a preta mina, me dizia habitar as florestas ermas.
Os operários se estendiam em verdadeiras nações ao longo da construção. Os italianos, os portugueses e os espanhóis dedicavam-se às obras de arte ou às pedreiras, poucos à terraplenagem. A escavação de terra ficava por conta dos mineiros, baianos, sergipanos, alagoanos e pernambucanos. Todos ou quase todos negros, brutos, gente do sertão, perigosos, sem lei e sem alma. As brigas por cachaçadas, disputas de mulheres ou rivalidades regionais acabavam em tiros de garrucha ou ponta de faca. Os pernambucanos com as peixeiras, os alagoanos e sergipanos com facões, os mineiros e baianos com garruchas ou punhais. Porém a arma mais mortal era a maleita. Esta não tinha pretexto para atacar, nem preferência de raça. A morte por doença despertava solidariedade e por brigas, horror e medo. Não havia autoridade. Os crimes ficavam impunes. O assassino de hoje respondia à chamada do “ponto” amanhã. O rio Doce foi cemitério fantasma. Muitas vitimas eram jogadas à corrente das águas, amarradas em toros flutuantes, com vela acesa espetada na boca, protegida do vento. Trágicas balsas. Todas as noites de domingo, depois do batuque, deslizavam, macabramente, nas águas barrentas do rio.
Os estrangeiros viviam em grupos isolados, atemorizados e, diga-se de passagem, respeitados.
Lembro-me de certos fatos e de alguns nomes. Nosso rancho foi sempre confortável e aprazível. Meu pai era caprichoso e minha mãe exigente. Moradia com cozinha, forno e cocheira, água, quando não próxima, canalizada com calhas de palmito ou embaúba, horta de temperos e galinheiro. Dona Marieta, com o pão de casa, as macarronadas e os frangos assados dava fama ao “Seu” Derenzi como hospedeiro obrigatório do pessoal graduado da fiscalização. Emílio Schnoor, Fernando Esquerdo, Emílio Cunha, Duque Estrada, Pedro Bosísio, Pedro Versiani, Ceciliano Abel de Almeida, Sá Carvalho, engenheiros que foram da Estrada, programavam suas viagens de modo a calharem as refeições no nosso acampamento, sempre anunciadas com antecedência. Foram acontecimentos agradáveis naquele purgatório de sofrimento e de susto.
As febres eram terríveis. Volta e meia nos levavam um amigo, um companheiro. “Zi” Giovanni, coitado, com mulher e filhos pequenos na Itália, pedindo para que não o deixassem morrer, queria ver sua esposa e os “bambini” pela última vez. Domênico, jovem de dezoito anos, emigrado sozinho, sempre chorando a “mamma” distante. Escapou da maleita mas a tísica não o poupou, apesar da centena de fígados de andorinha ingeridos em jejum, que uma curandeira lhe receitara. Dona Marieta acudia a todos, até que a desgraça nos entrou pelo barraco a dentro.
Creio que foi no verão de 1905 que Amadeo, o primogênito de treze anos, amanheceu com febre e tremedeira. Depois de ter suado muito, a febre passou. Era o impaludismo. No dia seguinte pela manhã o pai veio acordá-lo: dormíamos na mesma tarimba. Amadeo escorregou da cama com a cabeça apoiada sobre os braços, de bruços, e quando tocou com os pés no chão caiu de costas. Meu pai acudiu. Levantou o menino. Estava morto! Impossível recordar a dor, o desespero de minha mãe. Foi a mais bela elegia que ouvi até hoje: um poema recitado com soluços, coerente, dolorido, pausado, quase cantado: a mãe a despedir-se de seu primogênito, o fruto do primeiro amor, alvo da felicidade conjugal. Por trinta anos Dona Marieta, ao despertar, chorava e rezava por seu filho morto.
Como era bela minha mãe a rezar com as lágrimas a escorrer pelo rosto.
Foram doentias as baixadas do Boapaba, as matas do Guaraná, o córrego Itapirá, Taquaraçu, Pasto Brasil, Aimorés, e, desta cidade até a hoje Governador Valadares, não havia para onde fugir. O povo dizia que cada dormente da via férrea representava, alternadamente, um operário morto por febre e outro por tiro ou facada. Naturalmente havia exagero nessa afirmativa, mas define a fama que a construção criou. Os operários eram recrutados às centenas de Ilhéus a Recife, e chegavam por via marítima, em navios de pequeno porte, como se fossem irracionais.
] Os índios começaram a aparecer nas margens do rio Doce pela altura da Mailasqui e Itapina. Causavam medo, porém foram praticamente inofensivos.
Um episódio sangrento ficou-me na lembrança. O Dr. Emílio Cunha iria correr a construção em companhia de Sá Carvalho, empreiteiro geral. Tinha vindo o portador prevenir os tarefeiros, administradores e residentes. A comitiva veio de trem até a ponta dos trilhos, poucos quilômetros antes de Resplendor, hoje Conselheiro Pena. O almoço seria no nosso acampamento. Desde cedo os recepcionistas começaram, em cavalhadas, a descer para o encontro. “Seu” Derenzi, ocupado em preparativos, não estava podendo comparecer. Dona Marieta, condimentando leitoas, frangos, estendendo a massa para o talharim, exigia que o marido preparasse os temperos, os aperitivos e pusesse a mesa improvisada sobre cavaletes, debaixo do alpendre de sapê. Já haviam passado todos os amigos, já haviam “matado o bicho”: Serafim Alexandre, Hercule Gori, Antônio Spirito, Urbano Salgueiro. Papai resistiu. Não podia deixar Dona Marieta só com duas ou três mulheres chucras.
Eis que, num belo macho queimado, todo de roupa nova, botas de pelica preta, lustradas, carabina a tiracolo, aparece o Pedro Paulo, fagueiro e cheio de cortesia para com o casal amigo. Tomou vermute traçado com cachaça, espiou os assados e intimou o “Seu” Derenzi a acompanhá-lo. Pedro Paulo, espírito-santense de Muqui, tinha a melhor tropa de carroças. Deveria ser fazendeiro rico em sua terra.
Não houve como meu pai se desvencilhar de Pedro Paulo. Montou no Guarani e tocou; trotaram uns dois quilômetros e, como meu pai ia muito contrafeito, por causa dos afazeres no acampamento, Pedro Paulo, compreensivo, dispensou-o. Desculpando-se, “Ah! obrigado, Marieta vai gostar”, “Seu” Derenzi voltou a galope. Mal caminhara alguns metros, ouviu um tiroteio danado. Seria uma salva aos visitantes? A dúvida dissipou-se em poucos minutos. Pedro Paulo fora tocaiado. Não escapou nem sua montaria.
Quando me lembro da assistência médica, evoco nomes ainda familiares aos ouvidos capixabas. A empreiteira geral, Sá Carvalho & Cia., descontava um dia de serviço por mês de cada operário para custear a assistência médica e farmacêutica. Cabia a cada facultativo percorrer mensalmente sua seção, independentemente da chamada, acompanhado do boticário e por um guarda-costas. As seções regulavam vinte quilômetros. As enfermidades comuns eram impaludismo, amarelão, tifo, chagas, febre puerperal, tuberculose e ferimentos provenientes de brigas. Aos acamados o médico tomava-lhes o pulso, aplicava-lhes o termômetro e receitava-lhes as panacéias que o farmacêutico trazia em seus alforjes: quinino, café berrão, óleo de rícino, sal-amargo, maná e sena, vinho reconstituinte, com muita usura por ser caro, iodo, pílulas para o fígado e infusão de Santa Maria para verminose. Os não acamados esperavam ao longo dos caminhos, abriam a boca, punham a língua de fora e o doutor, a cavalo, receitava: língua suja, óleo de rícino ou sal-amargo, na proporção da sujeira. Estes purgativos eram repugnantes.
O médico querido era o Dr. Duquinha, Manoel Silvino Monjardim, muito jovial, que curava os desesperados com seu otimismo salutar. Sabia o nome de todos os doentes. O Dr. João dos Santos Neves, muito humano, dedicado mas pouco comunicativo, primorosamente educado, muito apegado à família que o acompanhava em suas residências provisórias. O professor de língua pátria e mestre em folclore, Guilherme Santos Neves, seu filho, nasceu em Porto Final, próximo ao nosso acampamento, e foi amamentado muitas vezes por mamãe, com certa carantonha de minha irmã Maria, que lhe é contemporânea.
O Dr. De Francesco, italiano de Nápoles, o Dr. “Pampa”, por andar num cavalo pampa, era paciente, mas gostava muito de lancetar. É avô do nosso querido Henrique Pretti, o Licote, ex-deputado federal e ex-vice-governador do Espírito Santo.
Minhas últimas reminiscências desses idos são dois fatos que sempre me voltam à memória.
Em nosso último acampamento, em ponto que não sei localizar, acima da atual cidade de Conselheiro Pena, num domingo à tarde, o índio catequizado, José, companheiro de rancho do maranhense, preto retinto, Luís Gonzaga, depois de ligeira rixa, o canivetou no braço. O sangue jorrou forte e o índio, apavorado, saiu gritando, atirou-se nas águas do rio Doce e fugiu para o lado norte.
Meu pai e eu, atrás, corremos em socorro. Luís Gonzaga, de braços apoiados no umbral da porta do barraco, espirrava sangue em filete fino. Mal nos aproximamos, cambaleou e caiu morto. A ruptura de uma artéria o fulminou.
Conforme o hábito, o velório foi de batuque e cachaça, até o dia seguinte, à hora do enterro. Um fato corriqueiro. Era plena mata e naquelas cercanias não havia nenhum povoado e muito menos capela ou cemitério. Pois acreditem! Durante semanas, ao cair da tarde, eu ouvia o tanger plangente de um sino. Quando, amedrontado, chamava a atenção de meus pais, o sino silenciava e eu era levado em troça. Mas o fenômeno foi se repetindo e dias depois já minha mãe e depois meu pai ouviam o sino tocar. E depois, não sei quantos dias decorridos, a turma toda, depois da janta, ao escurecer, ouvia o badalar longínquo do sino invisível. A duração era de curto tempo, um minuto talvez. A negrada, quase todos mineiros, dizia: “É a alma do falecido que está penando.”
Isto durou não sei quanto, até que, como era de costume, o vigário de Tambacuri, no seu apostolado periódico, apareceu fazendo batizados, casamentos, fincando cruzeiros aqui e acolá e celebrando missas campais. Tomou conhecimento do fenômeno estranho. Rezou uma missa por alma do Luís Gonzaga e o sino nunca mais tocou.
O segundo acontecimento foi a greve geral dos trabalhadores Depois de vinte meses sem pagamento, estourou o motim.
Talvez passada uma semana, veio uma comissão, protegida por um destacamento de polícia, pagou o pessoal e despediu os prováveis chefes articuladores, entre eles meu pai e Joaquim Pinto Miranda, seu compadre.
E assim, perde-se no infinito do passado o meu arquipélago de recordações da Estrada de Ferro Vitória a Minas.
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NOTAS
[DERENZI, Luiz Serafim. Caminhos percorridos — Memórias inacabadas. Reprodução autorizada pela família Avancini Derenzi.]
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© 2002 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Luiz Serafim Derenzi nasceu em Vitória a 20/3/1898 e faleceu no Rio a 29/4/1977. Formado em Engenharia Civil, participou de muitos projetos importantes nessa área em nosso Estado e fora dele. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)