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Capítulo I – Por uma identidade ítalo-capixaba

1. Razões da emigração italiana — 2. Os insucessos da colonização alemã. — 3. O depoimento de Enrico Ferri. — 4. Núcleo Muniz Freire: centenário de um fracasso — 5. Breves notícias da província. — 6. Primeiro problema: a escravatura — 7. Segundo problema: a vocação agrícola do Brasil. — 8. O pioneirismo do Espírito Santo. — 9. Cidadania e identidade. — 10. Bibliografia

Por que, hoje, se fala tanto, no Espírito Santo, sobre a questão da identidade ítalo-capixaba? Por que os descendentes dos imigrantes italianos buscam suas raízes e almejam a dupla cidadania?

Carlos Rodrigues Brandão em seu livro Identidade e Etnia diz muito bem que enquanto a noção de pessoa aparece como problema interno a uma cultura e aponta para o consenso, a noção de identidade tende a emergir como um problema de relações entre culturas e aponta para o conflito (p. 144).

O Espírito Santo vive o momento do apagar das luzes dos centenários da imigração, inclusive do centenário da proibição da emigração italiana para este Estado em 20 de julho de 1895, com alegação de graves motivos. A maioria dos municípios e vilas já comemoraram seus centenários. Muitas famílias continuam a preservar os encontros anuais de seus descendentes que atingem milhares de membros. Vão desaparecendo os últimos imigrantes italianos autênticos, os “nonnos” e as “nonnas”, suas conversas em dialeto, suas casas, suas propriedades, suas fotografias, suas cartas e seus documentos. Toda uma cultura importada por força de um acontecimento histórico — a imigração — teima em ficar ou tende a desaparecer.

Às portas do terceiro milênio as novas gerações vivem um momento de decisão. Vasculhar o próprio patrimônio histórico e cultural é tarefa gratificante para alguns e, ao mesmo tempo, dolorosa para outros. Trata-se de refletir que não se vive em vão no atual mundo tão conturbado de valores. O que, realmente, deve ser guardado e o que deve ser jogado fora? Está em questão aquele quadro velho pendurado na parede. Está em questão um princípio de vida da família como quando o velho camponês disse que “filho meu não muda lei que meu pai deixou”. A fotografia dos avós, na parede da sala, parece restaurar, em cada um de seus descendentes, a segurança perdida, a luta pela sobrevivência no campo e na cidade. É bonito ver parte da juventude capixaba se voltando para a história, documentos, lugares e línguas de seus antepassados.

Uma identidade existe ou se constrói na relação e conflito entre culturas. Os descendentes dos imigrantes italianos são brasileiros, falam português e se comportam como consumistas norte-americanos. A cultura italiana deixou traços e marcas muito fortes no comportamento social destes brasileiros e capixabas. Quem são estas novas pessoas com suas palavras, seus ritos, alianças, conflitos, memórias, objetos produzidos e trocados?

Para se responder a esta questão é preciso retornar no tempo e no espaço. Sem passado não há história. Sem história não há identidade por absoluta falta de traços da presença humana e de suas relações pessoais. E tudo começou com 20 anos apenas de aventura colonizadora na Província do Espírito Santo (1875 – 1895) no século passado.

1. Razões da emigração italiana

Nos últimos cinqüenta anos do século dezenove o Brasil foi um depósito de milhões de deserdados europeus de todas as nacionalidades, assim como o foram outras nações da América. Quem eram estes humilhados e abandonados? O que sobrou, historicamente, deste período, deste êxodo humano de proporções bíblicas?

Aqui, não se quer discutir propriamente as razões da emigração italiana mas as da imigração para o Brasil. Deve-se fazer um corte temporal e situar-se entre os anos de 1875 a 95 no pequeno estado brasileiro do Espírito Santo. Tal perspectiva deve ficar bem clara, como um divisor de águas, no continente geral do mesmo assunto. Talvez seja interessante aos italianos de hoje reconhecer traços de sua identidade numa Itália fora da Europa e pensar se vale à pena conhecê-la, manter com ela linhas de conduta e de contato.

Por parte da Itália, todos bem sabem, uma palavra resume as razões da emigração: a miséria. O primeiro e mais importante documento de identidade dos emigrados, o passaporte, quer em nome de sua majestade Vítor Emanuel II, quer em nome de Umberto I, testemunha esta condição. No lugar do selo, os passaportes trazem, com frequência, os seguintes dizeres: “Senza marca per comprovata miserabilità”. Ou “esente da bollo per comprovata povertà”. Noutros aparece simplesmente a palavra “gratis”. O passaporte de Luigi Zuccolotto, natural de Lentiai  Belluno, expedido em dezembro de 1888, traz selo e carimbo, mas uma carta, 25 anos depois, em 6 de outubro de 1913, assinada por Basilio Piccolotto, diz ao filho de Luigi: “Chiedete a vostro padre del viaggio che fece a Genova, il quale non se decideva di più montare in treno a Milano se non le davo io i biglietti ferroviari, perchè le mancava il denaro di prenderli (…) allora potevo, mentre oggi ho bisogno io”. Miséria de uma Itália que não existe mais, mas miséria declarada nos documentos pelos respectivos administradores, miséria nos corpos doentes, mal alimentados, cansados, forrados apenas de esperança.

2. Os insucessos da colonização alemã

O Brasil já havia iniciado, embora timidamente, o processo de aceitar imigrantes suíços em Nova Friburgo-RJ (1819), alemães em São Leopoldo – RS (1824) e em dezenas de outros lugares. O Espírito Santo teve duas colônias alemãs, a de Santa Isabel em 1847 e a maior, de Santa Leopoldina, em 1856. Os laços de parentesco com a família imperial austríaca, no entanto, não justificava a má condução e os repetidos fracassos dos inumeráveis empreendimentos colonizadores. Tome-se, por exemplo, o que aconteceu na fazenda Ibicaba, do senador Vergueiro, em São Paulo e a revolta dos colonos suíços liderados por Thomas Davatz.

Os acontecimentos se sucediam tão comprometedores que, em 1871, o império alemão unificado proibia a emigração dos seus co-nacionais para o Brasil. Promovia em toda a Europa uma enorme campanha de difamação contra o Brasil cuja situação o Brasil não conseguia reverter.

O alemão Handelmann, em sua História do Brasil de 1859, dedica especial atenção ao difícil problema da colonização. Tratava-se da questão mais vital da sociedade brasileira. Conhecendo in loco as dificuldades de seus compatriotas entre os anos de 56 e 57, Handelmann dirige esta estocada ao Brasil: “os primeiros esforços do governo imperial conseguiu seduzir milhares de emigrantes e enriqueceu de mais exemplos a história da miséria humana” (p. V). Ele foi um historiador honesto que via os dois lados do problema e sua complexidade. Havia miséria em quem expulsava sua população e havia miséria em quem a recebia. Sabedor da difamação do Brasil na Europa ele não desistiu dos interesses da emigração alemã e dizia que o Brasil precisava de uma radical mudança de administração no sistema imigratório. Em lugar do sistema de plantação em fazenda, deve-se, pouco a pouco, adotar o da pequena lavoura; em vez do fazendeiro, o lavrador; em vez do trabalho escravo, o do braço livre (p. 983). São Leopoldo no RS foi a única tentativa colonizadora que deu certo para os alemães.

Diz um ditado que “quem despreza compra”. É histórico o desprezo dos europeus para com o continente sul-americano a que chamam de subdesenvolvido. Handelmann apresenta uma solução de dividir o Brasil em três zonas conforme as raças tendo como exemplo os Estados Unidos. Lá, os brancos no norte, os negros no sul e uma zona mista intermediária. Só que no Brasil a posição era invertida. A Alemanha e os alemães sempre sonharam com uma grande colônia sua no cone sul da América, compreendendo, além de parte do Brasil, o Uruguai, Paraguai e Argentina.

Quando a Alemanha proibiu, de uma vez, a emigração para o Brasil, começaram a aparecer tratados e obras de conselheiros do Império Brasileiro tentando mostrar a realidade dos fatos. Uma circular endereçada aos cônsules do Brasil na Europa, de 20 de novembro de 1871, recomendava que os imigrantes a virem para o Império deviam ser indivíduos habituados a trabalhos rurais e se excluir os habitantes de cidades manufatureiras que não iriam se adaptar facilmente à agricultura (Carvalho, p. 256). É sabido que havia interesses e interessados em despejar no Brasil gente de toda espécie e mesmo criminosos e desocupados. A província do Espírito Santo recebeu, no início dos anos setenta, uma leva de polacos que criaram os maiores problemas na colônia de Santa Leopoldina. Tanto é verdade que o diretor da colônia escreveu ao Presidente da Província:

A ociosidade, o descaramento, a ratonice, o gênio desordeiro são os caracteres distintivos do Polaco. Por conveniência e moralidade do serviço fui forçado a não deixar sequer um Polaco nas turmas em que trabalhavam os alemães (pomeranos) pois o seu contato era por demais sensível ao serviço. Essa gente foi como uma praga lançada sobre esta colônia: a passagem de um grupo deles é sempre perfeitamente traçada pela destruição e roubo ou furto de algum objeto. Tudo lhes serve; alguém pode ficar tranquilo diante desses talvez, fregueses das casas de correção de Possen? Alguém julga-se tranqüilo diante desses verdadeiros bandidos?

A história da miséria humana de que fala Handelmann vinha enriquecida de lá, da Europa, e já havia começado com a descoberta do Brasil, quando o português Pedro Álvares Cabral abandonou dois degredados portugueses entre os índios nativos do Brasil afim de lhes ensinar os costumes da civilização européia e a religião cristã (Carta de Pero Vaz de Caminha).

Um Augusto de Carvalho editou na cidade do Porto, em 1876, uma obra de 500 páginas, tentando mostrar que o Brasil era injustiçado no grave problema de receber imigrantes europeus. Com O Brasil colonização e emigração não se dirigia somente a Portugal mas a toda a Europa, fazendo apologia do Brasil com longos parágrafos ufanistas.

3. O depoimento de Enrico Ferri

Sobre estes seres humanos abandonados disse Enrico Ferri na Câmara Italiana em sessão do dia 22 de junho de 1909: Deu-se comigo o caso que, indo à América, descobri a Itália. Sentimos que devemos amar a nossa pátria, nunca contra a pátria dos outros povos. É certíssimo que os italianos na América, embora completamente abandonados e esquecidos durante meio século pelos governos italianos — que um atrás do outro se têm sucedido, herdando quase como palavra de ordem, um do outro, a máxima indiferença para com os destinos deles (p. 12).

Passados cento e vinte anos de uma aventura colonizadora, retoma-se uma subtil verificação do senhor Enrico Ferri de que os italianos na América não queriam se naturalizar argentinos ou brasileiros. E por que? Porque não querem que se os considerem como renegados (p. 32). Em 1909 eles não queriam agente de emigração mas um adido consular. A exigência de um representante consular continha, em si, a ideia de cidadania e o vínculo de identidade com a pátria mãe. Emigração significava abandono. O que parecia um jogo de palavras era, no entanto, um problema fundamental para os imigrantes. Identidade não é coisa que se arranca de um povo tirando-o de um lugar e colocando-o num outro. Também não foi uma viagem de trinta ou quarenta e cinco dias de navio que apagou a sua especificidade, a sua diferença. Identidade é o reconhecimento social da diferença e ela aparece no conflito das culturas.

Não é o momento de teorizar a questão da identidade. É preciso historiar o sangue nas veias, alguns fatos, o tempo da ocupação do lugar chamado Espírito Santo, no Brasil, para que se possa avaliar a importância e dimensão deste acontecimento. O tempo desta aventura durou somente vinte anos, ressaltando-se que, no dia vinte de julho passado, completaram-se cem anos da proibição, por parte do governo italiano, da imigração para aquela então província. O que motivou tal proibição foi a instalação de imigrantes, na sua maioria lombardos, no núcleo Muniz Freire às margens do caudaloso Rio Doce. O representante consular caracterizou a iniciativa como um desastre. Foi o último.

4. Núcleo Muniz Freire: centenário de um fracasso

“No dia 15 do corrente mês chegaram a Vitória 14 famílias de colonos italianos, constituídas por 30 pessoas ao todo, entre as quais três senhoras gravemente doentes, (que mandei tratar gratuitamente no hospital) e as outras sofredoras febris pelas privações e fadigas sofridas.

Elas provinham do núcleo colonial Muniz Freire situado no Rio Doce, que foi criado no final do ano passado (1894) com aproximadamente 450 colonos italianos recrutados por conta deste Estado através da companhia de navegação “La Veloce” em várias províncias e especialmente na comune de Sannazzaro de’Burgondi, que contribuiu com 44 famílias.

Os sobreviventes me contam que a sua colônia (que lhes foi destinada depois que passaram dois meses num barracão esperando que fosse feita a medição dos lotes) estava num lugar tão próximo do rio e tão baixo que, com as primeiras chuvas, as águas a inundaram e invadiram as barracas, mesmo construídas sobre palafitas com a altura de um metro do chão.

De repente se desenvolveram as febres e outras doenças e a mortalidade foi tão grande que se calcula que pelo menos um quinto dos colonos morreu.

Nesta terrível situação faltavam socorros. Nenhum agente do governo visitou a colônia. O médico não ia até os doentes e somente distribuía os remédios permanecendo no barracão: naturalmente quando o doente não podia ir até o doutor, ninguém sabia pedir a este último os remédios necessários.

Era grande a dificuldade de procurar os mantimentos, porque, com a inundação, era preciso ir de canoa ao barracão de depósito: além disso, os preços dos gêneros de primeira necessidade eram absolutamente exagerados.

Os colonos resolveram pedir, como era de direito, para serem transferidos para outra colônia situada em melhor condição. Não satisfizeram a este pedido; ao invés, disseram que os colonos estavam desvinculados de qualquer contrato, mandaram o médico ir embora; e deixaram vazio o depósito de mantimentos: assim que, nos últimos dez dias os colonos sofreram fome e se sustentaram com um pouco de farinha e feijão estragados misturados com alguma erva colhida.

Começou então o êxodo dos pobres italianos: com seus poucos trastes se dirigiram às colônias de Alto Bérgamo, Santa Cruz, Pau Gigante, Conde d’Eu, procurando os meios de viagem, vendendo, pouco a pouco, a preço vil, os seus pertences.

O grupo de quatorze famílias aqui chegado preferiu vir procurar trabalho nesta cidade e eu já me dispus a procurar para todos um abrigo gratuito; e espero que os homens apenas recuperados da saúde sejam contratados como operários na construção do quartel de polícia.

Somente duas famílias ficaram em Muniz Freire, porque não conseguiram absolutamente arranjar meios para a viagem. Não deixei de recomendá-las ao Senhor Presidente do Estado que declarou que lhes oferecerá transporte para o lugar a que quiserem ir.

Por brevidade deixo de repetir os depoimentos que obtive dos retirantes no que diz respeito à desorganização dos serviços públicos na colônia, onde faltava completamente aquele serviço do estado civil, às durezas de alguns feitos empreiteiros dos produtos alimentícios e dos instrumentos de trabalho, aos abusos que se verificam pelo fato de que os trabalhos executados pelos colonos por conta do Governo são pagos com bônus que não podem ser resgatados senão perderem 50% do valor.

Possa o triste fim da colônia Muniz Freire, que custou tantas vidas de nossos conacionais, conduzir-nos a um severo e previdente sistema de colonização, por meio do qual seja sempre barrado o caminho de renovação de tão dolorosos desastres.”

Com estas palavras, o cônsul italiano em Vitória, Dall’Aste Brandolini fazia o seu relatório mostrando o abandono em que se encontravam os imigrantes, desta vez, pelo governo brasileiro. O governador do já então estado republicano reagiu respondendo às nove razões apresentadas pelo cônsul visitante Carlos Nagar: Devo reconhecer que há fundamento nas três primeiras acusações, mas todas as outras não resistem à mais ligeira análise (Torres Filho, p. 362). Acusações a mais ou acusações a menos, o fato era que “a vaca tinha ido para o brejo” segundo um ditado popular brasileiro. Em bom português dizia o decreto do rei italiano:

O Real Ministério do Interior, informado de que no estado do Espírito Santo, quer pela maneira como está regulamentado o serviço de imigração, quer pelas condições econômicas, climatológicas e higiênicas da região, aqueles que para lá emigram vão de encontro a danos e prejuízos certos e gravíssimos, decreta: Fica proibido até nova ordem aos agentes e subagentes fazer operações de emigração pelo porto de Vitória e, em geral, pelo estado do Espírito Santo. (Rizzeto, p. 23)

Consumado o ato, a imigração não estancou de repente. Ainda chegaram alguns navios derramando emigrantes pelos portos do Espírito Santo como se comprova nos livros da Hospedaria de Imigrantes.

5. Breves notícias da província

O Brasil era composto de vinte províncias e a do Espírito Santo era das menores. Só perdia em tamanho para Sergipe. A “Breve notícia descritiva sobre a Província do Espírito Santo ” mandada imprimir em 1878 como propaganda para atrair emigrantes estrangeiros dizia que sua superfície total era calculada em 39 mil Km2 e sua população era de 96.475 habitantes, com a média de 2 habitantes por quilômetro quadrado. Vinte anos depois Élisée Reclus afirma na sua Géographie universelle, de 1895, que o agora estado republicano do Espírito Santo mede 44.839 Km2 e tem uma população provável de 200 mil habitantes. Alfredo Cusano apresenta outra versão destes dados: “Ho detto piccolo, ma avrei dovuto dire piccolíssimo, perchè misura appena 44.839 chilometri quadrati di superficie e, se non fosse lo staterello di Sergipe che ne ha 39.090, sarebbe il più piccolo del Brasile” (p. 317). E manifesta sua admiração que um estado tão modesto em comparação com o Paraná cinco vezes maior tivesse 50 mil italianos enquanto o outro contava apenas 25 mil. Não há dúvida que o Espírito Santo apresenta a maior concentração de descendência italiana no Brasil, entre 60 e 70%. Hoje deve-se acreditar que o Espírito Santo tenha 45.597 Km2 e uma população de 2.665.042 habitantes segundo o IBGE. Em superfície é pouco menor que o Vêneto e a Lombardia juntos. Em relação ao Brasil ocupa 1/186 avos do território nacional.

O que aconteceu nesta estreita faixa situada no sudeste brasileiro? Ela servia de barreira natural protetora das minas gerais de ouro e de minério. No início de 1700 um jesuíta italiano sob pseudônimo de André João Antonil escreveu um livro a que deu o nome de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Este anônimo toscano era Giovanni Antonio Andreoni que, tendo publicado o livro em 1711, viu-o imediatamente recolhido por ordem de Dom João V de Portugal e proibido de circular porque, como se diz no Brasil, estava “entregando o ouro aos bandidos”. O livro ensinava como fazer açúcar de cana, plantar e beneficiar o tabaco, tirar ouro das minas e descobrir as de prata, cuidar de grandes fazendas de gado e utilizar a indústria do couro.

Era justo que os estrangeiros jamais devessem ter notícia disto, assim como hoje querem saber tudo que o Brasil tem no seu vasto território, sobretudo na Amazônia.

O Espírito Santo de 1870 possuía no seu litoral atlântico somente três cidades e dez vilas. O resto era uma barreira de matas virgens com índios e febres malignas para quem a quisesse enfrentar ou transpor. Sua agricultura era de subsistência. Com relação à indústria produzia cal, tijolos, telhas e peixe salgado para consumo interno. Dentro da política geral de imigração para o Brasil, o que a “Breve notícia” dizia da província era que:

O desaparecimento gradual e constante que se vai operando na população escrava e a falta de braços livres que substituam os dos cativos, são por certo a causa principal do pouco desenvolvimento da lavoura, que se acha ali circunscrita aos vales dos grandes rios e às terras adjacentes à parte navegável daqueles cursos d’água.
Tem contribuído igualmente para a marcha lenta da agricultura a extração de madeiras, e de outros produtos naturais, visto a lavoura exigir inteligência, trabalho e constância por parte do homem, enquanto que esses produtos se apresentam de modo espontâneo à extração e oferecem ao mercado um gênero de troca fácil, rendoso e independente de qualquer esforço ou empate de capital (p. 6).

Os dois parágrafos anteriores resumem os dois grandes problemas que a província e o Brasil deviam enfrentar, isto é, o problema da abolição da escravatura com a substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre; e a vocação agrícola do Brasil com a carência de qualidades nesta área, substituída pelo extrativismo dos bens naturais.

Isto calhava perfeitamente para o trentino Pedro Tabachi que se estabeleceu no Espírito Santo por volta de 1850 e prosperou rapidamente em seus negócios. De sua fazenda em Santa Cruz chamada “Morro das Palmas”, onde extraía jacarandá — a mais preciosa das madeiras de lei do Brasil — projetou a introdução de 56 famílias de compatriotas seus. Tencionava fundar uma Nova Trento em contratos de parceria. Foi um desastre e foi o primeiro com austríacos de cultura italiana em 1874 (Grosselli, p. 150). Tabachi era extrativista e sua fazenda não se destinava especificamente à agricultura. Talvez por isso tenha fracassado. No inventário deixado por sua morte em junho de 74 ainda não foram apontados seus 60 bois de canga, todos portadores de lindos e poéticos nomes próprios brasileiros, nem as 32 cangas respectivas que indicam uma atividade extrativista. Também no espólio do falecido, entre os muitos pertences, o escrivão apontou a propriedade de quatro escravos, seus nomes e respectivos valores em mil réis.

6. Primeiro problema: a escravatura

A escravatura não era o problema mais sério que o Espírito Santo devesse enfrentar porque quase não possuía fazendas e tinha uma reduzida população. Santa Catarina, Paraná e Espírito Santo contam igualmente poucos cativos, dizia Tavares Bastos (p. 163). Não devia ter mais de 2% da população total. Enquanto em toda a América já se abolira a escravidão, no Brasil, ela vai continuar, oficialmente, até 13 de maio de 1888. Em 1850 a Inglaterra impôs sanções ao tráfico de escravos da África. Em 1871 é sancionada a lei do ventre livre que declara libertos todos os filhos nascidos de escrava a partir daquela data. Em 1885 aprovam a lei dos sexagenários. Rapidamente já se havia invertido uma situação: os fazendeiros dos estados do norte do Brasil vendiam os escravos para as grandes fazendas de café do RJ e SP. Atingida mortalmente a situação do trabalho escravo, corria perigo a vocação agrícola do país já que a indústria não existia. O que assustava também os donos do poder no Brasil era a vastidão do seu território deserto. Isto ficou patente quando o Paraguai invadiu a região brasileira vizinha e semi-deserta. Bem tardiamente o neto de Dom Pedro II reconheceu o erro de uma abolição progressiva. “O Brasil teria obrado com prudência se logo após a proclamação da independência (1822) houvesse decretado a abolição imediata desse regime como fizeram as repúblicas hispano-americanas (p. 15)” dizia Dom Luiz de Orléans e Bragança quando visitou o Rio de Janeiro em 1913 e não pode saltar do navio por estar ainda em vigor a lei do banimento.

A guerra do Paraguai de 1864 a 1870, mesmo vencida pelo Brasil, mostrou ainda mais as mazelas de sua estrutura social. No prefácio de seu livro dedicado ao imperador dizia o general Couto de Magalhães: “S. A. Real, comandando nosso exército na guerra do Paraguai, viu nos homens de cor, de que compunha a quase totalidade dos praças de pré, um transunto da população operária do Brasil” (p. 23). Em outras palavras, o Brasil venceu a guerra do Paraguai com um exército de negros e escravos aos quais prometia a liberdade. Quem saiu escravo voltou herói. O cumprimento das leis antiescravagistas, a guerra do Paraguai e todos os defeitos de um governo centralizador que pretendia dirigir do Rio de Janeiro as complexas operações de um serviço disseminado por tão vasto país (Bastos, p. 180) criou um certo pânico entre os grandes fazendeiros. Dom Pedro II e seus ministros recorriam aos notáveis do império fazendo consultas e questionamentos que eram respondidos em longos pareceres e mesmo em livros volumosos. Antônio Rodrigues Velloso d’Oliveira respondeu com a “Memória sobre a agricultura no Brasil”. João Cardoso de Menezes e Souza publicou Teses sobre a colonização no Brasil. O general Couto de Magalhães escreveu suas pesquisas linguísticas e experiências de pioneirismo em O selvagem. E assim outros mais que traçam um panorama da época.

7. Segundo problema: a vocação agrícola do Brasil

Velloso d’Oliveira começa dizendo ao Imperador: “No Brasil tudo se acha por fazer” (p. 94) e vai responder à questão da terra, dos colonos e do sistema de trabalho. “A primeira ideia que se oferece aos colonos de qualquer país, é sem dúvida a divisão de terras”(p. 91). Defende que cem geiras de terras bem cultivadas, com sua casa, forneceriam sem dúvida a uma destas famílias meios bastantes para a mais frugal e cômoda subsistência e ao mesmo tempo as devidas proporções para pagar a renda ao proprietário e os tributos ao Estado. Diz o conselheiro que, estabelecendo 10 mil casais para esta Corte, eles forneceriam aos habitantes da mesma Corte a maior fartura de legumes, hortaliças, batatas e frutas e tudo o mais. Quanto aos colonos, sugere sejam arrebanhados casais das capitanias do RJ, SP e MG. Diz que há também oportuno e conveniente remédio na Europa para este problema. “Os povos da Europa suspiram pelo momento de abandonar os seus antigos lares e de virem engrandecer a América”(p. 113). E dizia mais: “É fácil conceber que a povoação do Brasil receberia sucessivamente mui grande acrescentamento logo que a liberdade de consciência ou a tolerância dos cultos se ofertasse a todos os povos da Europa” (p. 114). Esta era uma das questões pela qual o Brasil era difamado na Europa, sobretudo na Alemanha. O conselheiro defende o trabalho do homem livre cuja origem reside no interesse particular e que dá melhores resultados. “Nunca desfrutaremos estes bens enquanto os nossos trabalhos agrários forem feitos pelas mãos de escravos desgraçados; porque, não tendo eles pátria, família, propriedade, nem mesmo interesses particulares, fazem consistir a sua felicidade na inércia, no ócio e, melhor ainda, no sono, que os torna indiferentes à sua triste condição” (p. 115). Que os fazendeiros de São Paulo queriam tratar os colonos de parceria como escravos não há a menor dúvida. Consulte-se a experiência descrita por Thomas Davatz. Como podia prosperar um país onde os seres humanos não tinham dignidade, isto é, cidadania e identidade? “É de absoluta e indispensável necessidade que Vossa Alteza Real faça os maiores esforços para o aumento da povoação e cultura deste grande país, porque de nada serviria o mundo inteiro, achando-se deserto e inculto. A sábia natureza dotou o Brasil de qualidades relevantes para a independência e prosperidade mais venturosa de uma nação grande, poderosa e rica” (p. 109). A utopia da grande nação e a inveja dos Estados Unidos da América esteve sempre e fortemente presente na cabeça dos governantes do Brasil.

Outro conselheiro do Imperador foi o general Couto de Magalhães. Possuindo o Brasil as duas maiores bacias hidrográficas do planeta o general recebeu o encargo de estabelecer a navegação livre entre as duas, integrando o Brasil e semeando colônias e postos militares às margens dos grandes rios. É o general autor do clássico O selvagem, obra que Dom Pedro II encomendou com o objetivo de ser apresentada na quarta Exposição Universal de Filadélfia de 1876, como de fato o foi pelo próprio Imperador. O general defendia a tese de que “povoar o Brasil não quer dizer somente importar colonos da Europa” (p. 22). Achava que os brasileiros resultantes do cruzamento das três raças, índio, negro e português, eram homens melhor aclimados ao solo e habituados à vida semibárbara dos sertões brasileiros. Foram, inclusive, diz ele, condições essenciais à vitória do Brasil na guerra do Paraguai. O livro O selvagem traz como ementa os seguintes dizeres:

Conseguir que o selvagem entenda o português, o que equivale a incorporá-lo à civilização, e o que é possível com um corpo de intérpretes formados das praças do exército e armada que falem ambas as línguas, e que se disseminariam pelas colônias militares, equivaleria a: 1º Conquistar duas terças partes do nosso território. 2º Adquirir mais de um milhão de braços aclimados e utilíssimos. 3º Assegurar nossas comunicações para as bacias do Prata e do Amazonas. 4º Evitar no futuro grande efusão de sangue humano e talvez despesas colossais, como as que estão fazendo outros países da América.

Sua preocupação com o índio era porque ele dominava todo o centro do Brasil e as regiões mais férteis. Podendo irromper para qualquer lado contra as populações cristãs, (o selvagem) é o embaraço para os progressos do povoamento do interior e é um perigo que crescerá na proporção em que eles forem ficando apertados (p. 25). Quando diz “incorporar o selvagem à civilização” o general traça o destino histórico desta etnia em dois únicos caminhos: o do intérprete e o do derramamento de sangue. Precisava de militares, missionários e intérpretes. O missionário capuchinho Savino da Rimini deixou o relato desta sua experiência com o general Couto de Magalhães no livro Tra i selvaggi dell’Araguaya. Quem estava derramando sangue humano com genocídio indígena eram a Argentina, o Chile e sobretudo Os Estados Unidos. Os norte-americanos caçavam com cães os índios Peles Vermelhas e trucidavam barbaramente os homens de cor como se tratasse de extinguir alcatéias de feras (Souza, p. 36). Veja-se, para tanto, a esquecida importância dos squatters na colonização norte-americana e também as cenas dos filmes de faroeste que povoam a imaginação dos espectadores ocidentais centrando o clímax da ação na matança dos índios.

Se o conselheiro Velloso d’Oliveira dizia que a indústria procede do aumento da povoação e daí o maior giro de moeda circulante e crédito, como conseqüência, haveria mais comércio com a Inglaterra e o Brasil levaria vantagem sobre os Estados Unidos e a Rússia, também o autor das teses sobre colonização vai desenvolver a ideia e a vocação de grandeza do Brasil. Há em todos os conselheiros uma escondida inveja dos Estados Unidos pelo sucesso de suas idéias liberais acompanhadas de notáveis realizações industriais. O livro Teses se abre com um jogo de estatística mostrando porque os Estados Unidos eram já uma grande potência. Primeiro por causa de maciça imigração promovida e o modo como era feita. “Graças ao movimento emigratório, a população dos Estados Unidos que dobra de 26 em 26 anos, formará dentro de 35 anos uma nação de 100 milhões de habitantes”. E o conselheiro Menezes e Souza acertou. Reclus afirma que em 1896 os Estados Unidos tinham 96 milhões de habitantes. Menezes e Souza chama os Estados Unidos e a Rússia de “esses dois colossos” e diz que o domínio universal tem de ser concentrado nas mãos de dois gigantes (p. 39). Daí a ideia de aumentar a população do Brasil por todos os meios. Velloso d’Oliveira sugere ao Imperador a promoção de casamentos e a proibição do celibato como um delito (p. 122). Sugere também proibir-se o celibato dos soldados nas colônias militares, bem como o dos padres. Que os padres, além da instrução religiosa, ministrassem a instrução civil e agrícola. O mesmo dizia dos magistrados. Sugeria a introdução de camelos nas regiões áridas do nordeste brasileiro, questão que foi tema da escola de samba campeã do carnaval do Rio de Janeiro neste ano de 1995.

Aos 13 de dezembro de 1873 o ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas encomendava ao conselheiro João Cardoso de Menezes e Souza um “plano para se promover no país a emigração e colonização que, aumentando a sua população válida e laboriosa, dê lugar a que se desenvolva pelo trabalho, maxime o da lavoura, a riqueza pública e particular e os muitos elementos de grandeza e prosperidade, que encerra o território nacional”. Depois de dois anos saiu o volume com mais de 450 páginas. Eram oito os obstáculos que desviavam do Brasil a corrente imigratória com uma reação em cadeia, de prejuízos:

I
A falta da liberdade de consciência; a não existência do casamento civil como instituição, imperfeita educação, a ignorância e a imoralidade do clero; a ambição de mando temporal por parte do Episcopado Brasileiro, traduzindo-se na luta impropriamente chamada – questão religiosa.
II
A insuficiência do ensino e principalmente a ausência de instrução agrícola e profissional.
III
O diminuto número de instituições de crédito, especialmente de bancos destinados a auxiliar a pequena lavoura e indústria.
IV
As restrições e estorvos, que a Legislação e a Pública Administração do Império põem à liberdade de indústria, peando, em vez de desenvolver, a iniciativa individual.
V
Os defeitos da lei de locação de serviços e dos contratos de parceria com estrangeiros; as lacunas e a inexecução da lei de terras públicas e a não existência do imposto territorial sobre os terrenos baldios e sem edificação.
VI
A falta de transportes e de vias de comunicação, que liguem o centro e o interior do Império aos mercados consumidores e exportadores.
VII
A criação de colônias longe desses mercados e em terreno ingrato e não preparado, bem como a falta de providências para a recepção dos emigrantes e colonos nos portos do Império e para seu estabelecimento permanente nas colônias do Estado, ou nos lotes de terras, que compram.
VIII
A incúria em fazer conhecido o Brasil nos Estados, donde procede a emigração, de que necessitamos, e em refutar, por todos os meios de bem entendida publicidade e por penas hábeis e desinteressadas os escritos, por meio dos quais naqueles Estados nos deprimem, exageram nossos erros em relação aos emigrantes e nos levantam odiosos aleives.

(Menezes e Souza, p. 31 e 32)

Depois de tecer longas considerações sobre cada um destes oito obstáculos o conselheiro conclui que, no Brasil, não há plena liberdade religiosa, industrial e civil. Por estes motivos é que os emigrantes preferiam os Estados Unidos e a Argentina. Então, que país pode fornecer melhores emigrantes e quais melhor se adaptariam ao Brasil? A resposta é: o alemão. A Alemanha deve ser o viveiro da imigração para o Brasil (p. 405). E dizia isto porque a colônia de São Leopoldo no RS foi uma das poucas, entre tantas, que prosperou. Tudo o mais eram dificuldades e obscurantismo que a proclamação da República em 1889 procurou sanar, legalmente, com uma nova constituição.

Como os espanhóis, dizia Menezes e Souza, são os genoveses notáveis na arte de ajardinar e os piemonteses excedem os outros seus compatriotas na indústria de construção de casas e estradas. No Brasil, se entregam a pequenas indústrias e, ultimamente, à mascateação, na qual, graças a uma perseverança fora do comum e extrema sobriedade nas despesas, conseguem acumular capitais, e às vezes regular fortuna. Vê-se claramente que não eram estes os trabalhadores de que o Brasil precisava. Segundo uma linguagem atual, não eram operários que se enquadrassem no perfil da grande empresa agrícola brasileira. Os italianos acima mencionados “não são auxiliares para a agricultura” (p. 409).


8. O pioneirismo do Espírito Santo

Entre a proibição europeia alemã e o início da emigração italiana houve um pequeno interregno, suficiente para se fazer notar, com a presença de imigrantes austríacos (tiroleses) de cultura italiana. O Espírito Santo sediou o primeiro grupo pioneiro trazido por Pedro Tabachi em fevereiro de 1874 no navio Sofia, de 386 pessoas. Em maio de 1875 chegam no Rivadavia mais 315 trentinos. O Fenelon de bandeira francesa partido do Havre trouxe, em 27 de dezembro de 1875, 66 famílias com 412 pessoas. Em 24 de fevereiro de 1876 o Mohely chegou com 274 imigrantes. E cessaram os tiroleses trentinos em levas de aglomerado.

Em 26 de outubro de 1876 começam a chegar os verdadeiros italianos da Lombardia, 744 imigrantes; chegou o navio Italia, agora partido de Gênova com 873 imigrantes e não mais partido da França em navios com bandeira daquela nacionalidade. Depois vieram 280 provenientes do Rio de Janeiro no Werneck, 355 no Isabella de Gênova, 328 no Columbia, 221 no Ester. O navio Columbia trouxe 278 vênetos no dia 15 de agosto de 1877, o Isabella mais 473 vênetos, o Clementina 879 italianos das várias regiões do norte. E as remessas não pararam até 1895-96.

Como na prática a teoria é diferente, tais fatos vieram desmentir a afirmação do conselheiro Menezes e Souza ao concluir que os italianos não eram auxiliares para a agricultura. Era exatamente o contrário do que afirmava. Tais imigrantes eram os que melhor se encaixavam no perfil empresarial de um país agrícola.

O estabelecimento por aglomeração que deu os melhores resultados nos Estados Unidos da América deu também ótimos resultados no Espírito Santo . Vinham todos em grupo de uma mesma região da Itália e mantinham fortes relações familiares de amizade, vizinhança e mútuo apoio. Às vezes eram vilas inteiras. Isto explica porque um trevisano com mulher e filha de dois anos se arranca sozinho de Cordignano, em 1880, e vem se estabelecer num pequeno pedaço de floresta no Espírito Santo . Dos 275 fundadores do núcleo Santa Cruz (Ibiraçu), 101 eram de Cordignano e os outros, dos arredores. Mais do que pelo processo de aglomeração, o que fez com que os núcleos prosperassem é que os vênetos, e pouco antes os tiroleses, eram ou tinham sido pequenos proprietários agrícolas, eram todos católicos e sem os embaraços que a legislação brasileira criava para os países protestantes. Os vênetos em maioria absoluta no Espírito Santo foram os que melhor realizaram o seu projeto existencial (Bernardi, p. 15). Com os seus valores de continuidade e de comunidade os vênetos souberam, mesmo com todas as adversidades do meio-ambiente, “ajuntar a fome com a vontade de comer” quer no Espírito Santo quer nas províncias do sul do Brasil.

Este grande contingente de imigrantes era constituído de parceiros nas pequenas fazendas do sul e os demais foram estabelecidos em pequenas propriedades a que davam o nome de prazo ou colônia. Quando se fala de imigração italiana, costuma-se tomar como exemplo o estado de São Paulo e se esquece a especificidade de outros lugares. Daí nascem muitos equívocos. Colônia em SP designa um aglomerado de casas próximas umas das outras ou enfileiradas, dentro de uma grande fazenda com a finalidade de abrigar os trabalhadores rurais (Truzzi, p. 61). No Espírito Santo, colônia é uma pequena propriedade delimitada no meio da floresta com um tamanho estipulado em lei de 1867. Havia três classes de lotes rústicos. A que predominou no Espírito Santo foi a de 62.500 braças quadradas ou 302.500 m². Media 275 metros de frente para um rio ou pequeno rio, de modo que todas tivessem aguada, e 1.100 metros de profundidade, limitando-se em geral, com terras montanhosas ou devolutas.

Possuir um pedaço de chão para plantar e tirar dele o próprio sustento era a mais profunda aspiração dos camponeses vênetos. Feita a derrubada no meio da floresta, o colono tinha seis meses para construir sua casa e iniciar as plantações. Só começava a pagar a terra depois de dois anos. Daí o nome de prazo. Nos três primeiros anos os imigrantes não podiam fazer comércio no sentido de criar estabelecimento comercial. Não podiam ir morar nas pequenas vilas ou cidades.

Houve, na década de setenta do século passado, cinco tentativas abortadas de imigração para fazendas pelo sistema de parceria. Não deram certo a de Pedro Tabachi, a do Sr. Milagres, a de Simão Rodrigues Soares, a de Narciso da Costa Pinto e a do coronel Manoel Ribeiro Coutinho Mascarenhas. As fazendas na parte sul do estado acabaram todas sendo divididas em lotes coloniais. O que instigava os camponeses italianos era a enormidade dos espaços vazios.

O projeto colonizador no Espírito Santo assinala a presença de açorianos na colônia de Santo Agostinho, hoje Viana, nas proximidades de Vitória em 1812. Em 1847, alemães da Prússia fundam Santa Isabel. Em 1854 se funda a colônia de Rio Novo. Em 1856 cria-se a colônia de Santa Leopoldina com holandeses, suíços e alemães pomeranos. Dentro desta última colônia vão ser fundados os núcleos de Timbuí (Santa Teresa) em 1875 por austríacos trentinos e, em 1877, o núcleo de Santa Cruz (Ibiraçu) este sim ocupado por italianos Vênetos.

A primeira fase de ocupação do território capixaba por italianos vai de 1874 até 1885. Dez anos após a chegada dos primeiros colonos também os filhos dos imigrantes maiores de dezoito anos tinham o direito de receber um lote de terra nas mesmas condições que os pais. Inicia-se uma retomada. Fundam os núcleos Acióli Vasconcelos 1887, Senador Prado 1887 e Santa Leocádia 1887. Criam-se os núcleos Costa Pereira 1889, Afonso Cláudio 1890, Demétrio Ribeiro 1891, Nova Venécia 1892, Muniz Freire 1894, todos no interior.

Na primeira fase o sistema central viário privilegiava os portos do mar e contava com, pelo menos, treze rios navegáveis. Tão logo começaram os sistemáticos desmatamentos também foram sendo notadas as dificuldades das estradas. Ocupados os espaços mais litorâneos com os núcleos pioneiros, os imigrantes recém chegados na segunda fase, sempre em maior número  tiveram que ir mais para o interior. Com isso passavam pelas localidades dos pioneiros e tomavam coragem pelo que viam. Já não eram mais levas unitárias ou aglomerados de duzentos ou trezentos colonos de uma só vez. Os navios Adria e Birmânia, verdadeiros transatlânticos, traziam 1.425, 1.530 pessoas atraídas do Vêneto, da Lombardia, do Piemonte, da Régio Emilia etc. Chegando ao Espírito Santo eram repartidos pelos os portos de Vitória, Santa Cruz, São Mateus, Guarapari, Benevente, Piúma, Itapemirim.

Na segunda fase de interiorização começam a surgir outros problemas. Já não são suficientes as vias navegáveis mas o tráfego terrestre por caminhos primitivos e com frequência intransitáveis. Para ficar em dois exemplos: Alto Bérgamo 1892, estava situada nas cabeceiras do rio Pau Gigante, isolada por uma sesmaria particular pertencente a um tal Coelho Rodrigues. Quando os imigrantes queriam vir a Demétrio Ribeiro ou Ibiraçu deviam atravessar uma estrada que era um verdadeiro túnel na floresta. Quando chovia levavam três horas a cavalo para chegar à vila de Pau Gigante (Ibiraçu). Arrigo Zettiry descreve magistralmente como se viajava de Santa Leopoldina, porto fluvial, até a Santa Teresa montanhosa. As estradas não mereciam este nome mas o nome brasileiro de picadas onde os viajantes são obrigados a ir um atrás do outro.

Non di rado il viaggiatore che s’intoppa in una tropa che viaggia nella stessa direzione, per molto tempo è costreto a seguirla al suo passo lentissmo, perchè non há modo di oltrepassarla a causa della ristrettezza del sentiero, in tutta la sua larghezza occupato dalle mule che di qua e di là della soma trasportano ingombranti carichi. Appena da lungi si scorge una maggior larghezza del sentiero, che permetta al cavaliere di fiancheggiare le some, è necessário affrettarsi a raggiungere la testa della truppa, prima che la mula che apre la marcia imbocchi il sentiero, che poco di poi torna a diventare angusto, onde non essere condannati a una nuova ora di indugio (p. 31).

Diz Zettiry que para percorrer a distância de 30 quilômetros levou dez horas a cavalo. Tempos heroicos!

O rio Doce, com quase um quilômetro de largura, divide o Espírito Santo ao meio. O projeto histórico de torná-lo útil à navegação jamais foi conseguido. Somente em 1928 foi construída uma ponte na região de Colatina e a partir daí iniciou-se a ocupação tardia de uma vasta região de floresta ao norte do Estado. Ainda nesta época foram localizados índios botocudos na região. Mas foram sobretudo os descendentes de italianos que a ocuparam. Em 1960 o governo brasileiro promoveu uma política de erradição dos cafezais. Colatina foi, em 56, o município maior produtor de café do país. Com a erradição, milhares de pequenas propriedades se tornaram pastagens. Vinte mil famílias capixabas emigraram, por sua vez, para os estados do Paraná, São Paulo e Rondônia. As consequências daqueles 20 anos de colonização fazem a atual história do Espírito Santo.

O pequeno estado não é mais província. Tornou-se o corredor de exportação do centro leste brasileiro sediando um vasto complexo portuário e um polo industrial relevante.


9. Cidadania e identidade

Passados estes 120 anos, verifica-se no Espírito Santo uma tendência sui-generis: uma quantidade considerável, sobretudo de jovens, descendentes daquele camponeses italianos, na universidade, nas empresas e em todos os ramos da atividade pública, requer no vice-consulado honorário ou nas entidades de cultura italiana, que se multiplicam como cogumelos nas pequenas vilas e municípios, a dupla cidadania. Ser ou não ser cidadão é uma questão de auto-estima, é uma questão de identidade. Os jovens do Espírito Santo e do Brasil não têm uma perspectiva sombria a respeito do seu próximo futuro e do terceiro milênio. São mais pragmáticos que idealistas. Como se um fósforo riscado ateasse fogo num palheiro, alastrou-se a febre de procura pela cidadania italiana. Não são poucos. O Espírito Santo deve ter mais de um milhão e meio de cidadãos brasileiros que, virtualmente, pelo ius sanguinis têm direito à dupla cidadania. Calcula-se que o Brasil tenha mais de dez milhões nesta condição. O que não é um problema para o estado e para o país pode tornar-se um sério problema para a Itália.

Mas o problema da dupla cidadania deve ser discutido em nível político e diplomático. São, afinal, direitos e deveres consignados nas respectivas constituições dos dois países.

O fenômeno interessante que está por trás desta procura e demanda é a questão da identidade ítalo-capixaba. Quem nasce no Espírito Santo é espírito-santense. Capixaba é o patronímico dos nascidos na ilha de Vitória que é a capital do estado e que, por extensão, se aplica a todos os nascidos no Espírito Santo.

Há uma procura desenfreada em todas as localidades por saber quando e em que navio chegou o avô ou bisavô. Poucos distinguem o que é ser trentino, vêneto, lombardo, piemontês, siciliano etc. Corre-se ao Arquivo Público do Estado do Espírito Santo recentemente descoberto como patrimônio documental digno do maior apreço. Todas as tentativas são feitas por saber de que comuna provém o antepassado. Há contínuos sobressaltos e desilusão em não se ter mais o velho passaporte, uma carta, um documento sequer que restabeleça o cordão umbilical com a pátria mãe. Se os antepassados não foram náufragos da esperança de fazer do Brasil sua verdadeira pátria, os netos e bisnetos não desistem de procurar suas verdadeiras raízes. Mesmo quando verificam que o nome paterno, de origem, sofreu dez, doze alterações nos registros de cartório e certidões de nascimento, casamento e morte, alterações na grafia, recorrem a advogados para que procedam à retificação. Os nomes numa sociedade que começa inculta e agrária está mais para uma Babel que qualquer outra coisa.

Muito mais que a cidadania há, por trás desta procura incansável, uma das aspirações mais legítimas do ser humano, que transcende a razão e mexe com a emoção, o inconsciente e a vida. Há uma busca tenaz da identidade. Mantêm-se quase que inalterados os múltiplos traços de uma cultura que não morreu: a cultura italiana. O aglomerado de etnias num mesmo local não as apagou como podem pensar. Não as empobreceu. Tais culturas enriquecem as relações humanas.

Passou-se de uma vida rural para uma vida citadina. Mudou-se de uma economia doméstica de consumo próprio para uma economia monetária de grande consumo. Alterou-se a estrutura da numerosa família tradicional para a pequena família encaixotada nos prédios urbanos. Nada disto parece arrefecer a força do passado e a procura da identidade, da irmanação, da solidariedade no trabalho, tão forte nos jovens brasileiros. Entendem que não basta ser cidadão de um país mas cidadãos do mundo. O jovem do Espírito Santo sabe que não é a polenta, o vinho, a canção ou a saudade dos “nonnos” que o fará italiano ou brasileiro. É mais. É um patrimônio de vida e de cultura legado pelos antepassados que não vai perder-se através do tempo, mas vai firmar-se na História.


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[BUSATTO, Luiz. Estudos sobre imigração italiana no Espírito Santo. Vitória, 2002. Reunião de artigos relacionados com imigração italiana, publicados em diversos periódicos. Apresentado no Seminario internazionale DAL PIEMONTE ALLO STATO DI ESPIRITO SANTO, Torino, 22-23 settembre 1995. Fondazione Giovanni Agnelli. Reprodução autorizada pelo autor.]

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© 1992 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Luiz Busatto nasceu em Ibiraçu-ES, em 1937. Graduado em Letras, com cursos de especialização em Portugal (Teoria da Literatura e História da Literatura Portuguesa), na Itália (Filosofia), mestrado em Letras pela PUC/RJ e doutorado na mesma área pela UFRJ. Professor da Ufes e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Colatina (1969-1983). É membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e da Academia Espírito-santense de Letras. Foi presidente do Conselho Estadual de Cultura (1993/4) e vice-presidente (1986/7). Tem várias obras publicadas, sendo um estudioso da imigração italiana. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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