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Capítulo III – Dilemas do imigrante italiano no Espírito Santo



1. Uma falsa história “oficial” — 2. A mata virgem ou o mito da floresta tropical — 3. As febres malignas e o atraso da medicina — 4.Centralização do Governo Imperial e sua desorganização.

1. Uma falsa história oficial

A história oficial é sempre contada sob a ótica do vencedor e dos órgãos do poder. Nem poderia se de outra maneira, uma vez que os vencidos e os mortos não têm voz. Mas a história dita “oficial” é um sofisma sob o qual o homem, agrupado em sociedade, esconde o dilema dos que mandam e dos que são mandados, ela é sempre a história dos chefes, dos reis, dos presidentes e dos seus feitos, com o beneplácito do escritor “oficial” que a redige. Em geral não se dá voz às minorias e aos derrotados. Se numa sociedade todos os membros desempenham uma função, todos, logicamente, são importantes. A história deve ser contada sob todos os ângulos possíveis.

A imigração italiana para o Espírito Santo, num primeiro momento, foi um acontecimento irrelevante, mas logo tomou tanto vulto que, ignorar qualquer um dos seus aspectos, é ignorar o destino coletivo do Estado. A presença do imigrante no Espírito Santo mudou a sua trajetória e a sua história nos últimos cem anos.

Diz-se isto, de início, para se acentuar o fato de que, quando se estuda a imigração italiana no Brasil, menciona-se São Paulo, Rio Grande do Sul e outros estados, em virtude da sua grandeza territorial e liderança política, ignorando-se o fato de ser este pequeno estado o berço da imigração italiana no Brasil. Em segundo lugar, nenhum outro estado teve seu território tão densamente ocupado por colonos de origem italiana como o Espírito Santo.

A expedição de Pedro Tabachi aqui chegada em fevereiro de 1874, embora fosse um empreendimento particular, inicia o processo imigratório italiano em grande escala no Brasil. Bastava isto para justificar este 2° Simpósio Nacional — A Presença Italiana no Brasil, que ora, aqui, se realiza. Já não se leva em conta o seu tamanho geográfico e sim a sua importância estratégica de corredor de exportação da região Sudeste em via de se tornar metrópole.

Italianos sempre os houve no Brasil desde a sua descoberta, mas não desta forma de sucessivas levas de pobres expatriados, hesitando entre o dilema do sobreviver ou do morrer de fome. As massas populares abandonam a pátria quando não têm esperança e não descortinam um futuro próximo promissor. Quem deixa a pátria onde nasceu por causa da pobreza, da fome, das guerras e da miséria coletiva é porque foge do inferno, e procura encontrar o paraíso ou o eldorado noutro lugar. Não é preciso apelar para os relatos míticos e transcendentes da religião que colocam um inferno e um paraíso no além. Os italianos viviam uma realidade histórica crucial em que o inferno era a Itália, o paraíso era a América, e este sonho tinha que ser realizado ainda durante a vida terrena.

Pedro Tabachi chegou ao Espírito Santo por volta de 1850 e se tornou logo um próspero fazendeiro na região de Santa Cruz, às margens do rio Piraqueaçu. Seu projeto idealista de trazer dezenas de famílias de compatriotas trentinos para a sua fazenda não se sustentou por um mês. Foi um fracasso completo. O que se passava pela cabeça do Sr. Tabachi, não se sabe. Sabe-se que não era mal intencionado mas apenas um presunçoso que queria fazer ver aos compatriotas que também eles poderiam se tornar importantes fazendeiros no Brasil. Tabachi morreu de desgosto quatro meses após a chegada da expedição, em junho de 1874. Como era de se esperar, a história silenciou de tal forma este insucesso de contrato de parceria que até parece um fracasso do próprio governo. Somente cento e quatorze anos depois é que se publicou na íntegra o contrato de parceria que Tabachi fez com seus conterrâneos trentinos, mas continua inédito em bibliografia de língua portuguesa.[ 1 ]

Se uma elementar lei de psicologia recomenda não se dever insistir em fatos desagradáveis da vida, a história faz a mesma coisa. Tabachi, inicialmente vitorioso como fazendeiro, fracassou como empresário no seu intento colonizador bem como demonstrou, mais uma vez, a inviabilidade dos sistemas contratuais de parceria. Se ele tivesse conhecimento dos que havia acontecido com Thomas Davatz e o seu grupo na fazenda Ibicaba do Senador Vergueiro, em São Paulo, certamente pensaria duas vezes. Tabachi era também uma peça do sistema imperial e oligárquico da época. Thomas Davatz com perspicácia de águia disse: “Desta vez estou perdido!” O mais triste é quando se chega a descobrir isso, quando percebemos que uma nova escravidão nos submergiu e que dessa escravidão é mais difícil escapar-se do que à tradicional, que de há longa data jungiu os negros africanos.[ 2 ]

Apenas aqui chegados, os imigrantes percebiam que haviam sido enganados, que o inferno estava aqui e não na sua terra natal.

Dentro da ótica da história “oficial”, o relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial do Espírito Santo pelo seu vice-presidente, o coronel Manoel Ribeiro Coitinho Mascarenhas, dedica apenas 30 linhas à expedição de Pedro Tabachi, e pronto! Foi tudo o que tinha a dizer sobre a “tranqüilidade e segurança pública”. Dizia nele:

Julgo, entretanto, conveniente relatar-vos com fidelidade os fatos, há meses, ocorridos em Santa Cruz, por ocasião do estabelecimento de emigrantes na colônia particular Nova Trento, instituída por Pedro Tabachi. Para não cansar, porém, a vossa atenção, limito-me a repetir-vos o que disse o digno Presidente desta província, Dr. Luiz Eugênio Horta Barbosa, ao passar-me a sua administração. “A 14 de março próximo passado algum colonos, em número não pequeno, manifestaram animosidade contra o empresário Pedro Tabachi, e externaram queixas contra o modo, porque era executado o contrato, que haviam celebrado na Europa, alegando como principal recriminação a má qualidade das terras distribuídas em lotes, e distância, a que ficavam do ponto, em que com suas famílias haviam sido hospedados. Pouco a pouco as queixas e recriminações tomaram incremento; exacerbaram-se as paixões de forma tal, que a propriedade e a vida de Pedro Tabachi, sua família e empregados, foram postas em risco. Logo que pelas autoridades locais foram trazidos ao meu conhecimento estes fatos, tomei, de acordo com o Dr. Chefe de Polícia, todas as providências legais, que as circunstâncias exigiam, a fim de que ali não perigassem a segurança e tranqüilidade pública. Fiz marchar para o termo de Santa Cruz, às ordens do respectivo Delegado de Polícia, um destacamento de 15 praças de infantaria de linha sob o comando do Alferes honorário do exército Antônio Joaquim da Silva. À presença desta força e à atitude enérgica das autoridade, que conseguiram apreender avultado número de armas, de que dispunham os colonos insubordinados, provavelmente se deve atribuir a manutenção da ordem e a não perpetração de graves crimes. Dos inquéritos, a que procederam tanto o Dr. Chefe de Polícia da província, como o Juiz Municipal de Santa Cruz, evidencia-se, que são em sua máxima parte destituídas de fundamento as queixas e recriminações dos colonos, aos quais o empresário Tabachi proporciona excelente tratamento.” Hoje, porém, acha-se nessa localidade restabelecida a ordem pública, tendo Pedro Tabachi rescindido o contrato com os insubordinados, que em número não pequeno, emigraram para a Colônia de Santa Leopoldina, aonde não têm manifestado nenhum movimento hostil. Tornando assim a Colônia de Nova Trento ao seu estado normal, foi de Santa Cruz retirado aquele destacamento, que fiz seguir para Santa Leopoldina, aonde se tem conservado para prevenir qualquer eventualidade.

Esta façanha pioneira de Pedro Tabachi foi posta em evidência só recentemente.[ 3 ] Tudo foi abafado pela história dita “oficial” e segundo ela tudo foi resolvido a contento, a ordem foi restabelecida e a segurança pública, mantida. São cretinices históricas deste tipo, sustentadas pelos governos então vigentes através de suas versões que demonstram como a história da imigração italiana no Espírito Santo faz parte de um processo histórico que não é nem mais nem menos que a história milenar dos opressores e dos oprimidos, dos exploradores e dos explorados. Cinco breves comentários ao relatório do coronel Coitinho Mascarenhas evidenciam, no particular, o que se afirma no geral: 1. Falar do insucesso da expedição Tabachi, na Assembléia, era “cansar” a atenção dos deputados provinciais; 2. O avultado número de armas apreendidas entre os colonos de Nova Trento consistia em 56 espingardas, 13 pistolas, duas terçadas e duas espadas. As espingardas correspondiam a uma por família — eram 56 as famílias vindas no Sofia — porque, como era sabido, nenhum brasileiro ou estrangeiro se aventurava pela floresta tropical sem esta arma indispensável à sobrevivência. O próprio Tabachi os deve ter aconselhado a se aparelharem destas espingardas de caçar; 3. Se as queixas e recriminações dos colonos aos quais Tabachi dispensava excelente tratamento fossem destituídas de fundamento, como explicá-las então? O ponto de discórdia gerador do conflito centralizou-se no artigo 4° do contrato. Os trentinos estavam promiscuamente amontoados num barracão e deviam andar até 6 horas a pé sob sol e chuva para o local de trabalho. Basta ver o texto do inquérito policial; 4. Ao se dizer que foi restabelecida a ordem pública, os governantes queriam exatamente dizer que fossem para o inferno os colonos mortos de febre, de fome, as viúvas com 11 filhos a mendigarem em Santa Cruz e depois em Santa Leopoldina!; 5. O “estado normal” da colônia Nova Trento significava a rescisão do contrato de Pedro Tabachi com os colonos, a retirada meio desordenada dos mesmos e a morte do próprio Tabachi.

Hoje se sabe, através das cartas enviadas pelos trentinos aos parentes da Itália e publicadas em jornais locais, que a versão deles a respeito da rescisão contratual é bem diferente.[ 4 ] A confrontação das versões oficial e não oficial fornece preciosas lições de história e, sobretudo, é uma premonição do que virá a ocorrer nos anos subsequentes.

Não é somente Thomas Davatz, na fazenda Ibicaba, do senador Vergueiro, em São Paulo, quem fala de escravidão do imigrante estrangeiro. Vinte anos após aquele episódio, a 15 de maio de 1878, o próprio Diretor da Colônia de Santa Leopoldina, no Espírito Santo, Aristides Armínio Guaraná diz a mesma coisa. Ele envia um longo ofício ao Presidente da Província, Manoel da Silva Mafra, argumentando contra a malversação do dinheiro público e dos efeitos negativos advindos do seu emprego. Chama a atenção para o seguinte fato que concorria para o mal resultado da colonização italiana no Espírito Santo:

Embarcam-se espontaneamente na Itália, pagando suas passagens, indivíduos que pretendem reunir-se a sua famílias em diferentes pontos do Brasil. A agência naquele país recebendo-os em seus navios, toma-lhes os passaportes nos quais, sem ciência dos interessados, lança o seguinte dístico: Bom para Vitória. Ignorando completamente o caminho que devem seguir para chegar aos seus destinos, com facilidade deixam-se mudar os colonos de um para outro navio, e deste modo são transportados até o ponto de desembarque de qualquer colônia desta província. Ali chegados, não encontrando aqueles em busca de quem vieram, muito naturalmente querem a todo transe retirar-se. Não permite isto a Inspetoria Geral de Terras e Colonização, e nem por outro lado faz reunir os membros dispersos de qualquer família.. Não é difícil concluir-se, que depois de tal contrariedade sucede-se imediatamente o desgosto, e que indivíduos que vinham animado da melhor boa vontade possível, transformam-se em verdadeiros parasitas do Estado, não podendo criar amor a um país que lhes rouba as suas mais doces afeições, como sejam as da família. Reconhecerá V. Ex.a. Comigo, que sem poder retirar-se nem chamar para si os seus, está o colono colocado em um cativeiro disfarçado [grifo do autor] com o nome de Colonização, e que só a força física podê-lo-á fazer permanecer em tal lugar.

Milhares de documentos confirmam a condição escravagista da imigração italiana para o Brasil. O artigo 40 do regulamento de 19 de janeiro de 1867 proibia claramente a presença de escravos na colônia. Proibia-se a presença de uns, mas instalavam outros. Os governantes brasileiros e seus próceres mudavam os peões no tabuleiro, mas não mudavam as regras do jogo nem a maneira de pensar, uma vez que seus interesses econômicos e pecuniários tinham que ser preservados, custasse o que custasse. Conforme assinala Júlio Posenato, a classe dominante da sociedade brasileira se apoiava no tríptico de sustentação formado pelo latifundiário, pela monocultura e pelo trabalho escravo. Uma coisa para a qual nunca é suficiente chamar-se a atenção e pôr-se em evidência é que, a concessão de uma propriedade agrícola ao imigrante o obrigava a se fixar nela, a praticar a agricultura de auto-sustentação e da produção do escravo negro. A fase republicana mantinha o vício da legislação do Império. O imigrante de via ser fixado não nos centros urbanos mas nas suas proximidades onde houvesse facilidade de escoamento dos produtos agrícolas. O fracasso posterior da pequena propriedade, que era a colônia do imigrante italiano, passada a primeira euforia, é um caso típico na história da agricultura do Espírito Santo.

Na Breve notícia descritiva sobre a província do Espírito Santo, de 1878, fica evidente a substituição do escravo pelo imigrante ao discorrer sobre agricultura, comércio e indústria:

O desaparecimento gradual e constante que se vai operando na população escrava, e a falta de braços livres que substituam os dos cativos, são por certo a causa principal do pouco desenvolvimento da lavoura, que se acha ali circunscrita aos vales dos grandes rios, e às terras adjacentes à parte navegável daqueles cursos d’águas.

Há uma subtileza na Breve notícia ao mencionar o fato de que o cultivo da cana de açúcar tendia a desaparecer. O abandono acontecia não por causa da esterilidade dos terrenos mas por falta de braços nos pontos onde a cultura melhor se desenvolvia, como Linhares, Nova Almeida, Santa Cruz e Benevente. Este objetivo governamental de 1878 é perseguido tenazmente de modo que, em 1895, funcionava em Santa Cruz uma grande usina de açúcar, propriedade do Dr. Guaraná que, num segundo tempo se transferiu para Jabaquara, em Benevente, e depois, definitivamente, para Campos, até os dias de hoje.

Diante deste estado de coisas, isto é, diante das condições perduráveis de cativeiro disfarçado, não cabia aos imigrantes outra solução que não fosse a revolta. No sul do Estado, no centro, nos núcleos recém-fundados, a história registra uma série de sublevações que se seguem à revolta de Nova Trento contra Pedro Tabachi.

Aristides Armínio Guaraná fazia a ponderação há pouco referida do cativeiro disfarçado, referindo-se à segunda leva de 475 imigrantes vindos no navio Izabella para fundar Ibiraçu, quando 43 famílias e, aproximadamente umas 120 pessoas, foram parar em Santa Cruz por engano. Os enganados começaram a apertar o Dr. Guaraná com passaportes e recibos, afirmando terem pago suas passagens e ser outro o seu destino, e que não iriam trabalhar na construção de estradas como os demais. Escrevendo ao Inspetor Geral da Colonização dizia o Dr. Guaraná:

Como consequência de tal procedimento a nenhum salário têm direito tais colonos, mas precisando de subsistência me atormentam noite e dia para que eu lhes dê abonos de mantimento. Tenho recusado peremptoriamente, mas em força nenhuma em Santa Cruz, principia a insubordinação a lavrar entre eles, tendo produzido já seus maus efeitos, porquanto, já fui ameaçado por um com uma foice. Não é a agressão pessoal que faz pedir providências a V. S.a . O único móvel que me leva a isto é o receio que tenho de que Santa Cruz, que tão bons elementos possui para se uma colônia modelo, venha a sofrer por causa de poucos transviados. Neste momento não quero perder a oportunidade de Dizer a V. S.a que é unânime a queixa contra a agência Caetano Pinto em Itália; afirmando todos os colonos que a imigração daquele país para o Brasil é espontânea, mas que a dita agência aproveita o veemente desejo que todos manifestam de emigrar e fá-los pagar preços exorbitantes por suas passagens. Tal reclamação é provada com recibos e outros documentos.

A situação de escravidão disfarçada a que eram destinados os imigrantes começava a ser praticada pelas companhias de navegação e depois se solidificava pela legislação vigente, como confessa o agente consular em Vitória, Rizzardo Rizzetto ao comentar o sistema de parceria.

É preciso lembrar que os colonos foram chamados para substituir os escravos e eles são freqüentemente tratados como escravos; não que o fazendeiro falte com o respeito à sua pessoa, mas porque os considera como instrumentos de trabalho e nada mais, e especula sobre eles o quanto pode.[ 5 ]

O capítulo das seguidas revoltas e badernas promovidas pelos imigrantes no início do seu estabelecimento no Espírito Santo ainda não está bem documentado, exatamente porque há interesse em não trazer à luz o podre dos fatos. Em “Os primeiros anos (conflito nas colônias agrícolas espírito-santenses. 1847-1882)” o professor Renato Pacheco faz apenas a indicação de um caminho a ser trilhado no estudo da aculturação dos novos elementos integrantes da sociedade brasileira, sobretudo porque a imigração italiana continuou intensa e crescente até o ano de 1895. Esta aculturação, diz o professor Renato, não se fez sem choques. Não era propriamente aculturação mas escravização.

Antes de comentar alguns destes choques, deve-se observar que, cem anos depois, quando se comemoram os centenários da fundação dos núcleos coloniais, a situação tem mudado pouco. O preço da vida e do trabalho pago pelos avós e bisavós não está servindo para resgatar os descendentes de uma situação de vida capitalista selvagem e vergonhosa. Netos e bisnetos de imigrantes vivem uma vida numa sociedade onde lei e justiça são práticas amortecidas, o país dá impressão de ir à deriva. Mas se sabe de onde vêm estas forças brutais e desumanas.

Os sintomas de descontentamento e as revoltas dos imigrantes se manifestam tão logo chegam ou nem bem chegam ao território de destino. Aos 16 de junho de 1875 saltaram em Benevente 565 tiroleses que foram levados ao núcleo colonial São José do Tirol, no 2º território da Colônia do Rio Novo. Logo se retiraram dois terços deles, cerca de 443, com base em um inquérito policial que dizem existir no arquivo da vila de Itapemirim. No final de 1877, os restantes tiroleses que viviam do trabalho de abrir estradas não quiseram se dirigir a São Joaquim. Desobedecendo às ordens do ajudante do diretor, empunharam uma bandeira vermelha e foram melhorar um trecho de estrada próximo do seu núcleo. No dia do pagamento promoveram um tumulto. O diretor mandou prender cinco deles, os mais exaltados, ameaçando-os com o artigo 37 do regulamento de 19 de janeiro de 1867 que tratava da expulsão da colônia. Além disso, as mulheres vieram `casa do diretor reclamar e dirigir-lhe algumas injúrias, mas o diretor deixou-os presos mais quatro dias para não intimidar-se diante de tais atos. Depois, acalmados os ânimos, soltou-os.

No início deste mesmo ano de 1877, em janeiro, na colônia de Santa Leopoldina, perto de mil imigrantes italianos seguiram, revoltados, para Vitória. Aí o vice-presidente do Estado passou um telegrama urgente ao Ministro da Agricultura nos seguintes termos:

Na colônia de Santa Leopoldina os colonos estão revoltados e não é possível contê-los, apesar das providências tomadas. A pretexto de terem vindo para Santa Catarina não querem ficar, sem seguir para seus prazos e armado ameaçam a diretoria. Não tendo força para contê-los, faço vir para esta capita alguns cabeças do motim enquanto aguardo decisão de V.Ex.

A 24 de janeiro, o Bacharel Coelho Cintra relatava aos coronel Manoel Ferreira de Paiva, vice-presidente da Província do Espírito Santo:

Tendo chegado a esta Capital [Vitória] hoje pelas 10 horas da manhã no transporte nacional Purus para aqui vindo à minha disposição, por ordem de S. Exa. o Sr. Ministro da Agricultura, fiz desembarcar parte da força que havia a seu bordo e com ela tendo feito segui-lo tenente Thompson incumbido de intimar aos colonos que se achavam nesta capital em atitude ameaçadora que embarcassem imediatamente, o que sendo executado deu em resultado a imediata obediência de todos os colonos os quais foram em seguida embarcados no referido transporte, de onde parte passou para o Madeira.[ 6 ]

Os referidos transportes nacionais eram dois navios de guerra e a guarnição era composta de mais de 120 praças. Apenas uns 20 foram enviados para Santa Leopoldina. Os imigrantes amotinados são os que foram fundar Caxias do Sul. Este episódio merece uma pesquisa mais acurada pelos desdobramentos que teve.

Nesse meio tempo, como estivesse para chegar uma leva de imigrantes, provavelmente no vapor Itália, umas 1.176 pessoas, o Inspetor Especial dá ordens para que eles sejam desembarcados em Benevente e não em Vitória com destino a Santa Leopoldina, a fim de não entrarem em contato com os revoltosos. Mas no dia 4 de fevereiro quem esta revoltada é a leva desembarcada em Benevente e foram precisos 15 praças da força militar para acalmar os turbulentos e restabelecer a ordem pública. Dá para imaginar-se o governo querendo segurar água com a peneira. Em outubro deste mesmo ano estoura, de novo, em Santa Teresa, a revolta dos lombardos da qual resultou a morte de um imigrante. Trata-se da Revolta de Nova Lombardia, um pequeno capítulo da história de Santa Teresa, e assunto já publicado.

As revoltas eram tentativas para a resolução dos dilemas e impasses criados com a nova ordem das coisas, mas resolvia apenas a permanência no país, procurando minorar o desconforto e o sofrimento. Para a maioria não havia retorno à pátria, nem esperança. Conforme disse Charles Ribeyrolles no seu livro Brasil pitoresco, os imigrantes eram náufragos sem esperança. Tudo concorria, desde as leis até a vastidão do território brasileiro, para que a saída de quem se aventurasse por estas terras e florestas se tornasse impossível. O sistema imigratório funcionava como um jequi, uma cesta ou funil de pegar peixe, no qual se entra ao sabor da corrente mas não se consegue retornar e fugir. O artigo 73 da legislação de 1892, da fase republicana e bem mais liberal, apresenta nove atraentes favores a que o imigrante tinha direito. Mas logo no artigo 76 dizia que só tinham direito a eles os que declarassem expressamente na sua chegada que queriam se estabelecer no Estado e se obrigavam a não se retirar do mesmo dentro de três anos. Este dilema de pegar ou largar se tornava um jogo de sorte que já havia, em parte, sido lançado no abando no da própria pátria. O que levava os imigrantes a se revoltar? Os maiores obstáculos e riscos que o imigrante encontrava em sua aculturação ao chegar ao Brasil podem ser resumidos em três itens: a mata virgem ou floresta tropical, as doenças e febres malignas com o difícil atendimento à saúde e a centralização do governo imperial com sua desorganização. É sobre isto que se vai falar.

2. A mata virgem ou o mito da floresta tropical

Uma das coisas que mais impressionava o imigrante italiano recém-chegado era a floresta tropical, um pano de fundo, verde, primeiro cenário que se descortinava ao longe quando o navio se aproximava da costa. A descrição que dela fazia o Conselheiro João Cardoso de Meneses e Souza é bem o sintoma de um eldorado que, por sua, resultava de uma carência humana que elabora nos meandros do inconsciente o espaço da utopia. Assim aparece a floresta, pomposamente, no seu livro Teses sobre a colonização no Brasil:

…o quadro sedutor das regiões do novo mundo, donde o sol, semelhante a lampadário enorme e eviterno suspenso de incomensurável dossel de azul derrama em torrentes de calor, que faz abrolhar luxuriante e cheia de assombrosa pujança a colossal vegetação dos trópicos, e a luz que inunda de jubilosa vida a natureza; onde rios caudalosos, que disputam o cetro ao oceano, fertilizam e fecundam um solo abençoado, que se expande em espontâneas campinas e searas e m opulentas jazidas de metais e pedras preciosas; onde as magnificências da criação, todos os prodígios da natureza parece que se reuniram para fazerem do mundo uma esplêndida miniatura do paraíso, que sirva de teatro e felicidade do homem, o estrangeiro contempla em êxtase esta arrebatadora miragem.[ 7 ]

A natureza no continente europeu, espaço do emigrante, é uma natureza domada e conhecida e não uma natureza selvagem e virgem. Este contraste impressionava, de fato, a todos.

O Pe. Luigi Marzano é um exemplo incontestável do que se vem afirmando, sobretudo quando se lê o capítulo III da III parte do seu livro Colonos e missionários italianos nas florestas do Brasil. A visão do Pe. Marzano é uma visão de poeta que se encanta, às vezes, puramente como a de uma criança. A atração da floresta virgem e o seu “prodigioso encanto” é o primeiro ponto por ele ressaltado. A uma floresta vegetal o autor faz corresponder uma floresta de adjetivos. Não se cansa de se referir à “magnifica floresta” e acrescenta: “Para quem nunca pôs os pés em tais florestas, torna-se impossível fazer-se uma ideia do grandioso conjunto e severo espetáculo que elas oferecem à vista do visitante“.[ 8 ] A descrição do Pe. Luigi Marzano é, sem o saber, a versão do mito da floresta e, este mito é exatamente o monstro belo e horrendo que precisa ser vencido e domado. Pode-se dizer que a floresta virgem brasileira ocupa no panorama da imigração o papel de um verdadeiro personagem. A floresta é animizada em todos os aspectos. “O estranho zunir do pássaro mosca ou beija-flor, ouvido de perto, parece o rugir de uma fera no fundo do bosque e o viajante quase instintivamente leva a mão ao gatilho da arma” dizia o Pe. Marzano. Nunca é bastante ressaltar o aspecto de inimigo, de adversário, de perigo que representa a floresta. Daí o ter-se criado na mente dos colonos ocupantes de lotes na floresta a vontade de dizimá-la. A eliminação da floresta sempre foi vista como uma vitória e uma conquista humana, um sinal de progresso e de prosperidade. Hoje, esta perspectiva está invertida, no Espírito Santo, mas não na Amazônia onde ela perdura. Não havendo mais floresta, é preciso reflorestar. O solo espírito-santense tende a se tornar um grande deserto, sobretudo a partir da plantação sistemática de eucaliptos, conforme profecia do cientista Augusto Ruschi.

Por ter o Pe. Marzano e o companheiro perseguido um bando de macacos e terem morto um macaquinho, perderam a orientação e o caminho. Salvaram-se pelo cantar de um galo, “Estávamos tão embarrados e rasgados que parecíamos dois bandidos. Já eram duas horas de noite quando reentramos em casa com mil impressões da floresta virgem.[ 9 ]

Já o brasileiro Antônio Francisco de Athayde, fundador dos núcleos “Acióli Vasconcelos” e “Antônio Prado”, enquanto encarregado da medição de lotes coloniais, apresenta uma descrição completa de cada lote, não deixando de enumerar as madeiras de lei nele constantes. Dizia por exemplo: “Tem águas excelentes. Possui uma coleção de madeiras de lei, tais como Guarabu-mirim, Sucupira, Itapinhoã, Peroba, Vinhático, Sapucaia, Inhuíba-do-rego, Jacarandá-tã e outras”. Desta forma evidencia-se um conhecedor minucioso do meio explorado. É um técnico e não um sonhador, falando da floresta como um engenheiro, visão bem diversa daquela dos imigrantes estrangeiros.

Diferente e outra é a visão de Carlos Nagar, vice-cônsul italiano em Vitória, para quem a floresta virgem tinha uma função meramente econômica, ao dizer:

As imensas florestas que cobrem este território, são ricas de madeira de construção, entre as quais o Vinhático, o Pau-d’Arco, o Jacarandá, O Maçaranduba, o Sapucaia, canela, etc. e de plantas medicinais, como a Copaíba, o Quebra-pedra, a Ipecacuanha, a Andiroba etc.. Mas estas riquezas não são desfrutadas por falta de vias de comunicação, de braços e de capital; e no entanto, a madeira para construção e as aptas aos trabalhos do marceneiro, são adquiridas nos Estados Unidos e, de segunda mão, pela praça do Rio de Janeiro.[ 10 ]

Os homens de governo parece que só enxergam lucros e bens exploráveis do ponto de vista comercial. O meio ambiente é encarado como uma matriz original da qual é preciso extrair tudo o que é possível, à exaustão. Quando a floresta devia dar espaço para o plantio com objetivos agrícolas, então era impiedosamente destruída à base do machado e de um vigoroso serviço braçal. “Depois de ter começado o corte da floresta, os colonos devem esperar a estação favorável para colocar fogo nos troncos cortados, constituídos em grande parte por árvores seculares, conseguindo assim, pouco a pouco, terreno sobre a floresta“.[ 11 ] As hecatombes das queimadas foram diversas vezes descritas por romancistas brasileiros. Graça Aranha foi um deles, no seu famoso livro Canaã.

O índio tem uma relação com a floresta diferente da do homem branco e do invasor. Ele está integrado ao ambiente. Vive sem prejuízo do equilíbrio ecológico, exatamente por lhe faltar a visão econômico-capitalista do homem branco. O índio está na floresta como em seu habitat a ali desenvolve seu sistema sem prejuízo próprio e alheio. O homem europeu recebe este esquema sempre de forma utópica. Jean Jacques Rousseau polarizou na sua obra o dilema cultura/natureza, privilegiando no segundo elemento uma coisa que ele não sabia bem definir o que era. A identificação com a natureza era uma aspiração tão forte que se cristalizou no método pedagógico desenvolvido no Emílio. E a Revolução Francesa que teve como lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” deve muito a Rousseau. Afonso Arinos de Melo Franco, historiando as idéias de uma utopia indígena que desaguaram na Revolução Francesa, no seu livro O índio brasileiro e a Revolução Francesa, aponta para aquele lema como sendo uma grande mentira. Idéias políticas e práticas sociais são coisas bem distintas.

Pois bem, os imigrantes chegavam não somente enganados pela própria aspiração de se redimirem da miséria, mas também por uma propaganda que falseava o seu futuro habitat. Eles não vinham para o Brasil para viverem como índios integrados à natureza, à floresta, dependentes da caça e da pesca. Eles vinham com o objetivo específico de praticar uma agricultura de subsistência, uma agricultura produtiva que visasse a fazer frente a outros mercados. Vinham, mas sempre pensando em retornar uma dia à pátria. O sistema capitalista implanta um esquema de produção, de exploração de bens e de riqueza sempre a curto prazo, mecanizado, impossível de ser assimilado rapidamente pela natureza. Ao derrubar a primeira quadra na floresta, o imigrante não estava sequer pensando em negociar os enormes troncos de madeira de lei aos quais botava fogo como um estorvo do qual devia se livrar. Ele queria apenas seu espaço para morar à maneira européia, pensando na vila ou cidade que sonhava ver funcionando semelhante à da pátria abandonada.

É preciso ficar bem claro que, para o imigrante italiano no Espírito Santo, sobretudo na colônia de Santa Leopoldina, em toda a região do vale do rio Doce — Ibiraçu e Santa Teresa são os casos mais específicos — a floresta era um obstáculo, o primeiro grande obstáculo que precisava ser vencido. Havia qualquer coisa de lúdico e aprazível na tarefa de derrubar enormes árvores, de construir uma casa, de realizar queimadas. A coisa ficava mais séria quando, feitas as primeiras plantações e iniciadas as primeiras criações domésticas, era preciso prevenir-se contra todos os tipos de ataque que vinham da floresta. Ela não era um monstro? Por terra, o principal inimigo esteve encarnado no enorme felídeo chamado onça. Ele encabeça a lista dos predadores que a mata virgem abriga. Não há região, núcleo colonial ou família que não tenha uma história de onça para contar. Ela sempre levava um cachorro do porão da casa, um porco do chiqueiro, uma novilha do curral, até um cavalo do pasto, como conta o Pe. Luigi Marzano no seu livro. À noite, a onça era imbatível. Seus urros e miados foram sempre o terror não só das crianças mas também dos adultos.

A criação doméstica também não se livrava dos gatos do mato, das raposas, dos gambás e de tantos outros predadores. O ataque vinha dos bandos de macacos que comiam as plantações, dos papagaios, periquitos e toda sorte de psitacídeos que não perdoavam as roças de milho. De dia e de noite, no ar e na terra, sempre havia a freqüência do perigo. Só os cafezais pareciam imunes ao ataque da floresta.

Que dizer das nossas serpentes? Sua variedade e quantidade, farta os livros especializados. Hermínio Busatto, filho de imigrantes, pioneiro e derrubador de floresta ao norte do rio Doce na região de Novo Brasil, ainda em 1941, morreu pela simples picada de uma jararaca preguiçosa, aos 36 anos de idade. Colatina ficava muito longe, a floresta se interpunha como um obstáculo ao tráfego, de modo que, ir àquele centro, na época, era uma façanha. A medicina há cinqüenta anos atrás era uma atividade incipiente e não existia soro com facilidade. Que dizer dos recursos da medicina no século passado?

A epidemia de febre amarela que grassou no vale do Piraqueaçu foi provocada pela presença dos mosquitos. Os imigrantes que morreram em grande proporção não imaginavam que a fatalidade da doença lhes adviria exatamente das primeiras derrubadas da floresta primitiva. Era a primeira vingança do monstro contra o europeu invasor, pois a floresta, enquanto existiu no Espírito Santo, foi um mito.

3. As febres malignas e o atraso da medicina

Na adaptação do homem ao meio, no seu encontro com um ambiente natural, está em jogo a sua saúde. Um organismo adaptado ao clima europeu que tem um tempo bem marcado pela distinção das quatro estações, de repente se vê diante de um clima tropical bastante diferente, com apenas duas estações, a da estiagem e a das águas. Do Dr. Guaraná, Diretor da Colônia de Santa Leopoldina, pondera a má ocasião do embarque pelas companhias de navegação e acrescenta:

É necessário que a diferença de clima a que se vão sujeitar os imigrantes não seja muito sensível. Facilmente se obteria tal resultado, fazendo-se embarcar no princípio da primavera, que na Itália é a 21 de março, para aqui chegando em abril, encontrarem a estação agradável, e que o rigor do sol não se faz tanto sentir. Deste modo, creio que o tributo pago à aclimação não seria tão extenso e não produziria o desânimo que produz. Em assunto de tal ordem como é o da colonização, onde é preciso o homem ter toda a sua energia e força para lutar e vencer as dificuldades que a natureza em seu selvagem vigor apresenta, as moléstias continuadas e as mortes sucessivas são coisa mais que muito fortes de desânimo e mau êxito. Se isto é verdade, fica também demonstrado haver necessidade de regularizar inteligentemente as épocas das expedições.

O Dr. Guaraná, estando em contato direto com os imigrantes e com os problemas concretos que todos tinham de enfrentar, falava de cadeira. Não se tratava apenas de vencer a natureza selvagem, mas também de pensar na saúde física e mental dos imigrantes, na fragilidade humana que começava a ser minada com a ruptura e abandono da terra natal e numa travessia longa, cansativa e desconfortável. O tributo pago à aclimação não consistia apenas na contração de moléstias, mas também na mortandade em grande escala.

As expedições de imigrantes vinham, em geral, acompanhadas de médico. A questão relevante, porém, consistia na precariedade dos recursos da própria medicina e do seu estado. Com Pedro Tabachi veio médico italiano Pio Limana. Com a primeira turma fundadora de Ibiraçu não se tem notícia de médico acompanhante, mas uma vez aqui chegados lhe foi designado o Dr. Domingos Gomes Barroso. Ele ficou apenas 52 dias em Santa Cruz e depois passou o cargo ao seu substituto. Aos 26 de outubro de 1877 ele apresentou um relatório com uma estatística patológica dos imigrantes medicados, um balanço das drogas e medicamentos e demais objetos em seu poder, com uma carta ao Presidente da Província do Espírito Santo:

Conforme V, Ex.a. Verá da mesma estatística, as moléstias mais predominantes foram as do aparelho digestivo, devido às mudanças de alimentação e clima em concorrência com a viagem de mar. Ultimamente principiaram a aparecer alguns casos de febres de diferentes caracteres, na minha opinião endêmicas, os quais na maior parte cederão facilmente ao tratamento apropriado.

Durante o tempo em que deu assistência ao núcleo, de aproximadamente dois meses, 266 imigrantes foram medicados. Houve 51 casos de febres de diversos tipos, 43 atendimentos diarreia, 28 por colite, 24 por cólica, 22 por embaraço gástrico. Seguiam-se outros casos de menor incidência como disenteria, erisipela, angina, oftalmia, indigestão, reumatismo, dentição, abcessos, bronquite, aftas, sarnas, gastrite, congestão cerebral, verminose, dartros (nome genérico de dermatoses), aborto, escorbuto, úlcera, anemia, escrófula, lesão cardíaca, marasmo, splenite aguda, hemorragia pós-parto, parto laborioso e prematuro, contusão e alguns outros. Tal estatística de 266 atendimentos representa 35,8% sobre o total de imigrantes presentes no núcleo. O estado sanitário geral ofereceu uma variedade de doenças que, por um lado requeria um verdadeiro hospital para o atendimento, por outro, demonstrou que a população italiana — mesmo sabendo-se em parte que as doenças eram provocadas pela travessia oceânica — era pobre e doente, pois, pobreza e doença andam sempre de braços dados.

A penas derrubadas as primeira árvores a fim de abrir espaço para a construção da primeira casa e para fazer as primeiras plantações, começo a verificar-se uma epidemia de febres que atingiu proporções assustadoras. Os mosquitos transmissores da febre amarela baixavam da copa das árvores para o solo e atacavam as pessoas. O mosquito que tem o nome científico de Stegomyia fasciata, gosta de lugares quentes e prolifera com temperaturas acima de 26º. O mosquito infectado, picando uma pessoa proveniente de um lugar onde não exista a febre amarela, a torna mais sensível e a faz correr um risco maior. Chernoviz define a febre amarela como uma doença infecciosa, específica, existindo quer no estado endêmico, quer no estado epidêmico e caracterizada essencialmente por icterícia, hemorragias das mucosas (vômito negro), albuminúria e febre, tudo isto durando 2 a 7 dias. O processo se inicia com uma incubação que dura de dois a seis dias depois da picada. O primeiro período, vermelho ou inflamatório, manifesta-se logo a seguir como se fosse um surgimento brusco, com calafrios e elevação da temperatura. Vêm as dores lombares, rosto congestionado com olhos brilhantes e a pupila dilatada, tez amarela; vem intensa dor de cabeça, vômitos alimentares e depois biliosos. Ainda se apontam a prisão de ventre, erupções da pele, mudanças no odor geral e na coloração da urina. Ao terceiro ou quarto dia cessam as dores e a febre, dando a impressão ao doente de estar curado de todo. É um período de remissão enganoso, continua explicando Chernoviz, que dura poucas horas. O segundo período manifesta-se com a icterícia, hemorragias de todos os tipos e sobretudo em vômito negro assemelhando-se à borra do café, daí este outro nome pelo qual esta febre é conhecida. Na forma normal a doença dura nove a dez dias mas nas formas fulminantes a morte sobrevém dentro de dois a quatro dias.

Ibiraçu foi o palco da maior epidemia de febre amarela já presenciada no Espírito Santo, no primeiro momento da imigração. Ficaram também conhecidos os núcleos Santa Leocádia, em São Mateus e o núcleo Muniz Freire, no vale do rio Doce, com tal gravidade que provocaram a suspensão da imigração para o Estado no ano de 1895. Estes dois últimos núcleos aliás estão desaparecidos do mapa.

No final de outubro de 1877 chegou a terceira leva de imigrantes que fundou Ibiraçu, no navio Clementina e foi ela que sofreu o maior golpe de febre epidêmica que tivera início naquele mês. Eram 113 famílias e aproximadamente 476 pessoas. Morreram mais de 111 pessoas de febre amarela cujo auge ocorreu no mês de março de 1878. No final do ano já haviam morrido uns duzentos imigrantes. Enterravam-se os mortos por toda a parte, de modo que a impressão de quem chegava após o ocorrido era das mais tétricas. Dez anos mais tarde, num relatório de um engenheiro chefe da Comissão de Terras e Colonização da ex-colônia de Santa Leopoldina, lia-se: “Os enterramentos, muitas vezes, são feitos onde entendem os parentes e amigos do falecido, havendo até quem, no pasto do próprio lote, haja enterrado já duas esposas!“.[ 12 ] O que terá ocorrido com os cemitérios entre o porto de Sant’Ana e o barracão do Conde D’Eu, uma vez que não se vê mais nenhum? A região é, na verdade, um grande campo santo cujas sepulturas desapareceram mas não o nome dos mortos cuja data de falecimento está assentada no livro da colônia. Do navio Colúmbia morreram 30, do Izabella morreram 100 e do Clementina, 111 pessoas.

Em março de 1878 vieram do Ceará, fugindo de uma das piores secas registradas durante o Império, 134 cearenses que foram destinados a Ibiraçu. O objetivo deste gesto humanitário era a miscigenação. Eram famílias que tinham a função de, em contato com os estrangeiros, ensinar-lhes a “malícia” da vida nos trópicos. O fundador de Ibiraçu, Presidente da Província Afonso Peixoto de Abreu Lima, passou o cargo de sua curta gestão a Alfeu Adelfo Monjardim de A. e Almeida dizendo no seu relatório:

O verdadeiro sistema de colonização é o misto, isto é, o nacional aprendendo do colono laborioso e inteligente tudo quanto lhe for aproveitável da cultura européia; o colono europeu aprendendo também por sua vez do nacional a não deixar-se tomar de surpresa e receio ante a majestade de nossas matas virgens e seculares, compreendendo o modo de proceder às derrubadas, queimas e plantio. Este auxílio mútuo, a par do cruzamento das raças, há de produzir grandes benefícios.

Em 11 de setembro de 1878, por sua vez, dizia o Dr. Guaraná em relatório a Abreu Lima:

Em meados do corrente ano chegaram a este núcleo 134 cearenses. Encontrando em seu auge a epidemias reinante, essa gente debilitada pelas privações que havia passado, e trazendo em si germens de enfermidades adquiridas em outras partes, foi em parte vítima do flagelo epidêmico.

Também os cearenses não foram poupados da epidemia se é que não foram os portadores. Morreram 41 pessoas dos 209 aqui chegados. Dez mortos eram chefes de família. Quatorze famílias se retiraram do núcleo. Somando-se a eles mais 10 mortos de um quarto pequeno grupo de uma segunda viagem do navio Izabella, chega-se a um total de 292 mortos, o que equivalia a 25% da população do núcleo. Dante Alighieri devia estar satisfeito de ver que o inferno da sua Comédia não era fantasia, nem privilégio dos italianos recém-chegados. Houve casos de morrer toda a família. Com a morte do chefe de família a viúva ou voltava para a Itália ou casava-se com um viúvo, nas mesmas condições. Quando morria o casal, os órfãos eram distribuídos entre as outras famílias que os quisessem adotar. Muitas vezes os parentes da Itália requeriam, através do representante consular, o repatriamento dos menores.

Naqueles tempos e naquelas condições, pode-se imaginar como seriam as enfermarias, uma vez que só existiam barracões onde os imigrantes viviam empilhados. A farmácia do médico era coisa irrisória. No balanço das drogas da ambulância a cargo do médico Domingos Gomes Barroso constavam 87 medicamentos: sulfato de magnésia, de soda e de quinina; perclorureto de ferro; subnitrato de bismuto; extrato gomoso de opis; extrato mole de quina; extrato de genciana; cato em pó; óleo de rícino; óleo de amêndoa; cremor de tártaro solúvel; ácido sulfúrico e hidroclórico; nitrato de prata fundido e cristalizado; banha preparada; basilicão; certo simples; glicerina; quina contusa; amônia líquida; acetato de amônia; Fahnestok; santonina pura; água de flor de laranjeira; flor de sabugueiro e de tília; tintura de acônito, de beladona, de digitalis, de castóreo, de almíscar, de camomila, de ipecacuanha, de tolu, de scilla, de arnica, de assafética; raiz de ipecacuanha; macela galega; água de louro cereja; éter sulfúrico; Opropeldoc; óleo de cajeput; essência de terebintina; Wermis mineral; tártaro emético; vericatoris Abbespeyres; esparadrapo; pílulas Le Roy, de Allan, de Bristol e de Dehant; láudano de Sydenhã; raiz de alteia; semente de linhaça; cevada; xarope de Vanquelim; acetato de chumbo; sulfato de zinco; losna; extrato de alcaçuz; fenol; ácido fênico; ruibarbo em pó; calomelanos; goma guta em pó; diaquilão; flor de enxofre; mercúrio doce; ergotina; mostarda inglesa; centeio espigado; goma arábica em pó; cânfora; elixir paregórico; mel rosado; bálsamo tranqüilo; bicarbonato de soda; magnésia francesa; nitro puro; bálsamo católico; fios de linho curtos e longos; açúcar refinado; linhaça em pó. Havia ainda uma variedade de uns quinze objetos e instrumento cirúrgicos e era tudo.

Toda a população do núcleo, pois, dependia desta farmácia e os recursos medicinais estavam compilados no conhecido Formulário de Chernoviz. O atraso da medicina se constituía numa fatalidade histórica.

As epidemias de varíola nos navios faziam grandes estragos. Imigrantes italianos do Espírito Santo e do Rio Grande do Sul atestavam que, no caso de surtos de varíola nos navios, não se duvidava em jogar ao mar. “Os contaminados quando estavam quase no fim da vida, para abreviar-lhes os sofrimentos e para poupar maiores incômodos a seus familiares e prevenir os passageiros da contaminação, eram embrulhados em lençóis e jogados vivos ao mar.[ 13 ] A quarentena na hospedaria dos imigrantes, em cada porto, era obrigatória para prevenir as epidemias, mas acontecia que, com frequência, as levas de imigrantes eram desviadas para Benevente quando grassava uma epidemia de varíola e infestava Vitória. Os fundadores de Santa Teresa diziam que não encontraram ninguém pela frente quando foram retirados da cidade e se dirigiram por caminhos solitários no núcleo Timbuí e sediados no meio da floresta circunjacente. É claro, o diretor da colônia recebeu ordem terminante para os fazer pernoitar na fazenda “Nova Coimbra” no penúltimo dia de viagem. Tal medida visava a impedir o contato dos recém-chegados com os colonos infetados do Porto do Cachoeira, não lhes permitindo atravessar o rio. Para isso ficou calculado que os tiroleses deviam chegar a “Nova Coimbra” pela noitinha, às cinco horas da tarde.

Outras vezes, soldados eram postados nas estradas, impedindo o trânsito das pessoas e avisando-lhes do perigo que corriam de pegar e de transmitir uma epidemia.

As doenças tropicais eram um sério adversário dos imigrantes e muita vida foi perdida inutilmente no dilema da aclimação.

4.Centralização do Governo Imperial e sua desorganização

O terceiro problema a ser enfrentado pelo imigrante era o Governo brasileiro. O governo se constitui de um corpo burocrático que trabalha em função de objetivos constitucionais. O governo imperial enviava periodicamente da cidade do Rio de Janeiro um Presidente para governar a Província do Espírito Santo, mas sem nenhum vínculo com ela. Os Presidentes vinham e saíam numa rotatividade que impedia a realização de qualquer obra importante. O Espírito Santo exportava apenas cal, telhas, tijolos e peixe salgado. Sabe-se que todos instrumento fabricado com ferro tinha que vir do estrangeiro, como enxadas, machados, foices e facões. De 1870 até 1895 o Estado teve 48 Presidentes e Vice-Presidentes, em sua maioria figuras opacas e decorativas que nunca fizeram nada. Era evidente que os reais interesses do povo pobre e atrasado foram sempre postergados em favor dos interesses do Governo Imperial. Em 1870, Aureliano Cândido Tavares Bastos dizia corajosamente no prefácio do seu livro A Província que uma grande questão que agitava o Brasil era a luta da liberdade contra a força, do indivíduo contra o Estado. Ao tratar do capítulo da imigração atribuías o naufrágio de tantas tentativas de imigração `louca pretensão de se dirigir do Rio de Janeiro as complexas operações de um serviço disseminado por tão vasto país. Os fracassos se explicavam pela centralização administrativa. Tudo devia passar pelas mãos do ministro na Corte. Exemplificava:

A menor questão assume logo o caráter de gravidade. As distâncias, a falta de comunicação regulares, aumentam os inconvenientes de pequenos negócios tratados por via de correspondência. É mister construir uma capela ou abrir um caminho? Começa a papelada, repetem-se informações, vão e vêm os documentos, enchem-se as pastas, passam os anos, e os colonos desesperam, e o núcleo, criado sob os melhores auspícios, pára, ou definha, ou dissolve-se. Quantas vezes foi retardado por meses, por anos, o pagamento de contas insignificantes, até de salários de trabalhadores, ou a autorização de despesa urgente!.[ 14 ]

A imigração italiana ficava subordinada, neste contexto, a uma Inspetoria Geral para todo o Brasil, a uma Inspetoria Especial em cada Província, a uma Diretoria para cada Colônia Oficial. A figura do Diretor de Colônia era também rotativa e o sucesso da instalação de um núcleo dependia concretamente de seu tino administrativo. O sucesso da instalação do núcleo Conde D’Eu, atual Ibiraçu, ES, numa região insalubre, propícia a febres, se deve à energia do seu primeiro Diretor, o senhor Aristides Armínio Guaraná. A figura de Guaraná se delineia nos 482 ofícios por ele emitidos durante sua gestão. Demonstrava sempre patriotismo e nobreza de caráter. Isto não impediu que, depois da sua gestão, transcorrida de setembro de 1877 a meados de 1880, o seu sucessor, Luís Cavalcanti de Campos Mello abrisse contra ele um processo administrativo no que dizia respeito à posse e compra de uma grande quantidade de terras. A figura do Dr. Guaraná não foi historicamente estudada e, por este motivo, apresenta aspectos polêmicos. Nos primeiros meses de sua administração, em 1877, demitiu o engenheiro Cristiano Boaventura da Cunha Pinto por julgá-lo incompetente. Ao tentar sediar os colonos nos seus prazos assim se queixa Guaraná ao Presidente da Província, Manoel da Silva Mafra:

Reduzido ultimamente a só ter o engenheiro Afonso Coimbra, este mesmo não trabalha muitas vezes por falta absoluta de trabalhadores que completamente se recusam a acompanhá-lo. Tal recusa é motivada pelo atraso em que constantemente ficam os pagamentos. Jornaleiros, vivendo dos seus trabalhos, realmente não podem esperar dois ou três meses pela paga que lhes é devida. (…) Posso afirmar a V. Ex.a que não tenho conseguido até hoje ter um agrimensor que saiba à risca cumprir com os seus deveres. Há quatro meses que solicito tal favor, e dos poucos que têm vindo, tenho sido bastante feliz por vê-los voltar. Com tais elementos de desorganização como os que acabo de apresentar a V. Ex.a, creio que só com um esforço supremo e quase sobrenatural, poderá quem dirige uma Colônia alcançar, não o limite do bem, mas apenas um progresso relativo.

Dez anos mais tarde, no Conde D’Eu, os imigrantes tiveram o maior problema com a regularização dos seus lotes coloniais cuja questão de limites apresentava disputas e conflitos. O que havia acontecido? O engenheiro Cristiano Boaventura, deslocado à pressas, do vale do rio Doce, veio para Santa Cruz e mediu somente a frente dos lotes, abrindo-lhes os limites na floresta, deixando a medição das linhas em profundidade para depois. E isto ele o confessa em 1877. É que as circunstâncias e a presença de centenas de imigrantes nos barracões urgia aquele tipo de procedimento. Coube ao engenheiro Antônio Francisco de Athayde, em 1887, o trabalho de refazer os mapas do núcleo Conde D’Eu e regularizar as indefinições dos lotes.

Aristides Armínio Guaraná teve também de demitir médicos mais de uma vez. No ano em que se fundou Ibiraçu, teve de se defender das intrigas contra ele insufladas pelo médico do núcleo Timbuí, por ocasião da revolta de Nova Lombardia. Desavenças e intrigas entre governantes e funcionários do Governo refletiam no mau atendimento proporcionado aos imigrantes.

Com referência à legislação para ordenar a imigração, as coisas não andavam diferentemente. O decreto no. 3784, de 19 de janeiro de 1867, que aprova o regulamento para as Colônias do Estado, foi a cartilha da imigração para todo o Brasil. Ele era constantemente alterado por ofícios, portarias, avisos, pareceres, etc. de modo que, se por uma lado tinha força, por outro, era gerador de conflitos insanáveis. A obrigatoriedade de sustentar e dar trabalho aos colonos nos primeiros seis meses após sua chegada, por exemplo, vigorou para os fundadores de Santa Teresa em 1875, mas foi logo cortada, em 1877, para os fundadores de Ibiraçu. Joaquim Adolfo Pinto Pacca, que trabalhou no serviço de imigração por mais de 25 anos, figura notável de administrador, chamava o regulamento de 19 de janeiro de 1867 de “montanha de ruínas”, criticava-o duramente e dizia que era preciso fazer algo melhor em termos de legislação. Mas o decreto republicano de 4 de junho de 1892, com validade para o Espírito Santo, decreto amplo e pormenorizado — continha 99 artigos — não surtiu melhores resultados. O vice-cônsul em Vitória, Rizzardo Rizzetto no seu trabalho de 1901 sobre o Espírito Santo, citava o artigo 73 deste decreto, com nove vantagens oferecidas aos imigrantes, para concluir dizendo que “o Estado não tinha condições de cumprir obrigações assumidas no artigo 73, por causa do mau funcionamento das Comissões distritais.” Vindo do Governo central, a desorganização se ramificava até os seus capilares.

Nos primeiros anos a lei não permitia que os colonos se dedicassem ao comércio. Tal atividade era praticada pelos nacionais que tinham, juntamente com o Governo, o controle dos gêneros de primeira necessidade. Quando esses gêneros não faltavam, eram comercializados por preço muito altos e extorsivos. Rizzetto em seu livro de 1905 sobre o Espírito Santo dizia que, no interior, não existiam senão duas classes sociais: os fazendeiros e comerciantes de uma parte; os colonos, os meeiros e pequenos proprietários da outra. E conta o caso de uma velha colona que depois de 22 anos de Brasil, com 13 familiares e duas colônias, não conseguiu saldar a dívida contraída na “venda” do lugar, mesmo tendo repassado ao dono da casa comercial todo o café colhido em cada ano. “Abrindo ao acaso uma destas cadernetas em qualquer página, em qualquer ano, mês e dia, tem-se sempre a impressão da espoliação sistemática de que foi vítima aquela família.[ 15 ] A narração do caso da velha senhora arrancaria de quem a ouvisse um grito de imprecação contra a terra brasileira, conclui o senhor Rizzetto. Pensou em recorrer à justiça mas verificou que seria pior para o caso.

O assassinato de Lorenzo Tamanini, descrito no romance Karina, de Virgínia Tamanini, é histórico e exemplifica o preconceito dos nacionais contra os estrangeiros e a falta de justiça reinante no Brasil. Este imigrante, quando mascateava pelas bandas do rio Doce em direção a Baixo Guandu, foi morto e teve o corpo desaparecido. O jornal O Horizonte de 1° de fevereiro de 1884 noticiava: “Pelas diligências a que procedeu o Subdelegado de Polícia do Limoeiro, só obteve encontrar o animal que montava Tamanini, com os arreios estragados e uma camisa e mais alguns outros pequenos vestígios”. Matteo Pomarolli, do núcleo Timbuí, escrevia para a Itália em agosto de 1884, dizendo a respeito do fato: “Aqui não existe nem lei, nem fé.[ 16 ]

Quando em 1890 o Dr. Gabriel Emílio da Costa assumiu a direção da ex-colônia de Santa Leopoldina e que incluía os novos núcleos recém-criados de “Antônio Prado”, “Acióli Vasconcelos” e “Santa Leocádia”, a primeira medida que tomou foi a de mudar a sede da colônia para Linhares, por conveniências pessoais. A isto se opôs o engenheiro Antônio Francisco de Athayde, mostrando a inconveniência das distâncias e os riscos de febre na região paludosa do rio Doce. Athayde conhecia bem a região, medira lotes, fundara aqueles dois primeiros núcleos, vendo a epidemia que presidiu à fundação de “Acióli Vasconcelos”, vendo os alemães destinados àquele lugar fugirem espantados. Sem visão do problema ou por interesse Gabriel Emílio manteve-se irredutível. A polêmica entre ambos resultou na demissão de Athayde do seu cargo mas continuou através do jornal O Comércio do Espírito Santo do número 212 ao 237. Em 1889, Joaquim Adolfo Ponto Pacca também desaconselhara aquela mudança de sede para Linhares, argumentando com a distância e a insalubridade dos terrenos. De nada adiantou, pois o Governo se tornara ambicioso e queria vencer, de uma só vez, a luta contra a floresta bravia e as febres endêmicas. O resultado é de todos conhecido. Pela desorganização governamental das Comissões distritais, o núcleo “Muniz Freire” tornou-se a sepultura de um grupo de imigrantes que para lá se dirigiu e também da imigração italiana para o Espírito Santo no ano de 1895.

Se não era verdade que os índios brasileiros, quando da descoberta do Brasil, não tinham nem Lei, nem Rei, nem Fé, isto, em parte, se verificou com a imigração italiana. Aqui vale o testemunho do imigrante Luigi Varnier, náufrago da esperança, que tendo chegado com a mulher e a filha de dois anos de idade, em 1880, voltou para a Itália em 1908, depois da grande quebra no preço do café de 1906. Apercebeu-se de que jamais ficaria rico no Brasil, porque aqui, como dizia, “não há lei nem justiça”. Se era para morrer pobre, iria morrer na sua pátria. Luigi Varnier, durante 28 anos, sentiu na pele os efeitos do sistema de escravidão econômica que funcionava e funciona no Brasil, com relação ao trabalhador.

Em cem anos de história, o dilema da floresta e das febres parece ter sido superado mas não o dilema principal apontado por Tavares Bastos que é o da luta do indivíduo contra o Estado. A contar com ele andam em risco permanente todos os direitos de cidadania.

Hoje é preciso reflorestar o solo espírito-santense, se não quisermos ser os herdeiros de uma terra gasta e cultivada sem inteligência. O solo em que pisamos continua apenas como pano de fundo e cenário pois não sabemos ainda o que é assumir uma identidade de patriotas, conscientes do significado de território estadual e nacional. Somos arrastados por mecanismos cegos e fatalistas do capital. Não nos damos o direito de viver uma utopia a curto prazo. O Éden, onde está o Éden? Onde está o paraíso e a casa com sonharam nossos antepassados e sonham milhões de brasileiros? Onde a vida feliz com a qual nós também sonhamos?

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NOTAS

[ 1 ] GROSSELLI, Renzo M. Colonie imperiali nella terra del café. Trento, Litografia Effe e Erre, 1987, p.159.
[ 2 ] DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil. São Paulo, Martins, Ed. da Universidade de São Paulo, 1972, p.2.
[ 3 ] BUSATTO, Luiz. A insurreição branca. In UFES. Revista de Cultura, n. 8, ag./set. 1978, p.5-10.
[ 4 ] GROSSELLI, Renzo M. (1987) p. 174.
[ 5 ] RIZZETTO, Rizzardo. L’Immigrazione italiana nello Stato di Espírito Santo. Ottobre 1901, p.23.
[ 6 ] Livro 22 da segunda série da “Governadoria” do Arquivo Público Estadual-E.S.
[ 7 ] MENEZES SOUZA, João Cardoso de. Teses sobre colonização do Brasil. Tipografia Nacional,1875, p.316-7.
[ 8 ] MARZANO, Pe. Luigi. Colonos e missionários italianos nas florestas do Brasil. Florianópolis, Ed. da UFSC/Prefeitura Municipal de Urussanga, l985,p.118.
[ 9 ] Idem, ibidem p. 119.
[ 10 ] NAGAR, Carlo. Lo Stato di Espírito Santo e l’immigrazione italiana. Bolletino del Ministero degli Affari Esteri, 1895, p.11.
[ 11 ] Idem, ibidem, p. 21.
[ 12 ] Livro 47 da 2a. série da “Agricultura” Arquivo Público Estadual-ES.
[ 13 ] BATTISTEL, A I. e COSTA, R. Assim vivem os italianos. vol. 1 , Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes e Editora da Universidade de Caxias, 1982, p.24.
[ 14 ] BASTOS, Aureliano Cândido Tavares. A Província: estudo sobre a descentralização no Brasil. 3. ed., São Paulo, Ed. Nacional, 1975, p.18.
[ 15 ] RIZZETTO, Rizzardo. Colonizzazione italiana nello Stato de Espírito Santo. Bollettino del Ministero degli Affari Esteri, 1905, cap. IV.
[ 16 ] GROSSELLI, Renzo M. Op. Cit. P. 411.

[BUSATTO, Luiz. Estudos sobre imigração italiana no Espírito Santo. Vitória, 2002. Reunião de artigos relacionados com imigração italiana, publicados em diversos periódicos. Reprodução autorizada pelo autor.]

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© 2002 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Luiz Busatto nasceu em Ibiraçu-ES, em 1937. Graduado em Letras, com cursos de especialização em Portugal (Teoria da Literatura e História da Literatura Portuguesa), na Itália (Filosofia), mestrado em Letras pela PUC/RJ e doutorado na mesma área pela UFRJ. Professor da Ufes e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Colatina (1969-1983). É membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e da Academia Espírito-santense de Letras. Foi presidente do Conselho Estadual de Cultura (1993/4) e vice-presidente (1986/7). Tem várias obras publicadas, sendo um estudioso da imigração italiana. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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