Hotel das Cataratas, 1934-1943. |
Eu estava com quarenta anos de idade, com três filhos e minha carreira profissional atrapalhada por uma série de infortúnios políticos e financeiros. A minha cidade de Vitória, para a qual eu trabalhara com entusiasmo e planejara, a longo prazo, realizar projetos compatíveis com sua tendência sócio-econômica, se tornara hostil ao meu modo de ver.
Eu vivia num clima de absoluto pessimismo. Aconselhado por amigos, transferi-me para Belo Horizonte, que ensaiava seus primeiros passos para ingressar na classe das futuras metrópoles. Havia eu sido convidado a dirigir a construção, em perspectiva, do Hospital Felício Rocho, almejado em testamento pelo filantropo italiano, então falecido, de respeitável fortuna, proprietário de uma rede de hotéis populares.
O testamenteiro foi o advogado Américo Gasparini, capixaba, que nas Alterosas procurava oxigênio para sua saúde comprometida. Ao se iniciar o processo jurídico de arrolamento de bens e constituição da Fundação, em cumprimento aos desejos do testador, sem o ônus ainda para a entidade nascente, fui convocado como técnico projetista e executor. Elaborei os estudos preliminares e o anteprojeto do grande hospital, inspirando-me em moderníssimo protótipo monobloco em construção em Bruxelas.
Quando a Prefeitura ia expedir a licença para o preparo do terreno e instalação do serviço, surge inesperado embargo à obra, requerido por pretensa herdeira, alegando filiação ilegítima do solteirão Felício Rocho. Era modesta existência da Rosinha, filha de antiga arrumadeira, já falecida, de um dos hotéis do de cujus. Pretendia cinqüenta contos de réis. Gasparini era vaidosamente convencido de seu saber jurídico. Já consolidara sua fama de advogado e de sua fortuna já muito se falava. Negou-se a indenizar a pobre Rosinha, enveredou pela investigação da paternidade incerta e, depois de quinze anos de lutas forenses, teve ganho de causa. Como candidato a construir o hospital fiquei-me a labutar, com relativo êxito, no meu incipiente escritório, numa sala do Edifício Capixaba, à rua Rio de Janeiro, cedido pelo seu proprietário, o próprio Américo Gasparini, saudoso cunhado de minha mulher.
Certa noite, assistindo a um show na Rádio Inconfidência, fui apresentado ao engenheiro Luiz Gonzaga de Souza Lima. Estreava ele sua fulminante vocação de homem de empresa, dirigindo duas companhias: a Sociedade de Instalações Técnicas — SIT — e a Dolabella & Companhia, explorando a engenharia civil. Conversamos. Ele, expondo planos e idéias. Eu, lembrando meu passado profissional, já maduro de dezoito anos, e minhas esperanças renovadas com o clima auspicioso da cidade. Souza Lima simpatizou com meu currículo oral. Convidou-me a visitá-lo em seu escritório. Lá chegando, deparei com um belo projeto — de ponte em arco sobre o rio Suaçuí — estendido sobre a parede principal da sala. Prendeu-me a atenção e, em rápido relance, disse:
— Bonita obra para quatrocentos e cinqüenta contos…
Souza Lima, surpreso, respondeu:
— Empreitei por quatrocentos e vinte e estou enrascado com a cravação das estacas…
— Por quê?
— Quando cravo mais uma estaca, uma delas reflui e bambeia…
— É porque o projeto tem estacas demais…
Souza Lima olhou-me com certo interesse, explorou meus conhecimentos sobre fundações e convidou-me a acompanhá-lo na inspeção da obra. Era perto de Governador Valadares, na estrada para Teófilo Otoni. Eu sempre gostei de zonas pioneiras. Aceitei o convite e dois dias depois viajamos. Dez quilômetros para o norte da cidade começava a mata, a mata minha conhecida da bacia do rio Doce. Não obstante o calor, os solavancos da estrada precária, a paisagem me refrescava a alma por sua beleza selvagem. De quando em quanto, uma aberta de madeireiros, um barranco esburacado de faiscador de águas marinhas ou malacacheta.
A ponte dista quarenta quilômetros de Governador Valadares, que hoje é cidade próspera. Era impossível prever instalação de serviço mais precária e imprevidência maior. Desde a competência técnica ao comando da obra, o primarismo era absoluto. Não havia nem instituição. O encarregado era bisonho e ignorante do mister que comandava. Mas havia dois ótimos operários: o armador e o carpinteiro de formas, um, russo branco, outro, polonês. E ainda um apontador zeloso. Os três, Pedro Russo, Nicolau Polaco e Augusto Araújo, eu iria, meses depois, aproveitá-los na construção do Parque Nacional de Foz do Iguaçu. A ponte era parte integrante da empreitada de uns tantos quilômetros da estrada de rodagem Valadares-Teófilo Otoni, hoje integrada à Rio-Bahia. O projeto era simpático: dois pórticos de doze metros de entrada e saída da ponte, e um central, de 48 metros, sustentado por pilares construídos sobre estacas de peroba. Bate-estaca manual, pedra britada à mão, pedra puxada a carretão de burros, obra desarrumada. Esse foi o quadro com que me deparei.
O próprio Souza Lima ignorava tamanho descalabro em sua empreitada. Almoçamos boa frangada frita com palmito, abundantíssimo naquela margem do rio que bordeja riquíssima floresta de essências nobres e caça. Entrei em ação. Retirei duas estacas cravadas sem a menor dificuldade, repassei as restantes que deram nega. Ordenei o canteiro, distribuí funções e planejei a seqüência dos trabalhos. Indo a Governador Valadares encontrei um velho conhecido, mecânico engenhoso e de grande porte e força física: João Tosi, o famoso João Grande, bom elemento da colônia de emigrantes italianos e que, por sua inventiva, me foi de grande ajuda. No ferro velho compramos um motor Ford, um britador, umas polias, eixos de transmissão, um dínamo, fios, lâmpadas, o diabo, para o nosso diabólico engenho. Poucos dias depois mecanizamos o bate-estacas, montamos o britador, iluminamos o canteiro e estabelecemos horário de dez horas de serviço. Até o belho balseiro, com fama de dar sumiço a viajantes solitários, mercadores de pedras coradas, ganhou luz e conforto para a sua velha balsa. Foi uma semana estafante. Três meses depois voltei a dirigir a concretagem dos arcos e assistir à festiva inauguração que movimentou os políticos de Teófilo Otoni, Tambacuri e Governador Valadares. Dolabella ganhou prestígio entre os empreiteiros e na Secretaria de Obras. Só se esqueceu de perguntar por meus honorários. Mas me propôs para a Sociedade Mineira de Engenheiros, apresentando-me aos papas do clube com muita simpatia.
Sim, não me gratificou, mas contratou-me como consultor das duas firmas que dirigia, com o salário de um conto e duzentos mensais. Era uma ajuda que eu diria potencial, principalmente porque um dos diretores da SIT, o engenheiro Moacir Gomes de Andrade, catedrático de Eletrotécnica das escolas de Belo Horizonte e de Ouro Preto, foi para mim uma relação valiosa.
A Secretaria de Agricultura, pela Divisão de Águas e Energia, pôs em concorrência a usina de Gafanhoto. Seria a primeira oportunidade para a SIT, hoje empresa de grande projeção. Deram-me para elaborar a parte de engenharia civil. Verifiquei que o projeto da adução era inexequível: um túnel adutor com mais de mil metros, em rocha, com a seção de um por dois metros. Impossível de ser escavado, com gabarito tão reduzido. Porém o edital permitia variantes ao projeto oficial. Mandei levantar a topografia do vertedouro da cachoeira, projetei um canal adutor em calha de concreto na rocha, menos a bruta da ombreira, perfeitamente construtível, o que representava considerável economia. Moacir Andrade e Souza Lima aplaudiram minha concepção e, para valorizar ainda mais a nossa proposta, pediram-me para redigir um memorial ilustrativo do projeto. Foi uma feliz oportunidade para mim. Eu havia sido fiscal do Governo do Estado do Espírito Santo junto às Empresas Elétricas Brasileiras, grupo americano que enfeixava concessão do fornecimento de energia, por cinqüenta anos, às principais cidades fora da esfera da Light. Entre elas, várias no Estado do Rio e no interior de São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Vitória, Salvador, Recife e Paraíba. O contrato previa expressamente o privilégio da produção e venda de energia nos limites territoriais; e, se houvesse interesse dos governos para montar fontes de energia, as usinas geradoras seriam exploradas por intermédio da Empresas Elétricas Brasileiras, ao preço de venda do quilowatt determinado no contrato. Uma escravidão industrial legitimada pela incapacidade nacional de incrementar o parque energético.
Eu não me lembro, naturalmente, da redação do memorial. Porém, em síntese, assim traduzi meu pensamento:
Belo Horizonte é uma cidade de funcionários públicos. Sua única atividade é a de recuperar tuberculosos, graças ao seu clima privilegiado. Com o preço de quatrocentos réis para o quilowatt cobrado pela concessionária, nenhuma indústria, em que a energia elétrica seja parcela ponderável de seu investimento, poderá estabelecer-se, quando o quilowatt gerado custa apenas oitenta réis (era o preço previsto em nossa proposta).
Para que essa cidade possa se desenvolver, precisa de energia a preço compatível. A solução única e pacífica do problema é reduzir a superfície do município, asfixiado pelo contrato da Empresa, em benefício dos municípios circunvizinhos, e o Estado vender energia a preço justo. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística prevê a revisão territorial dos municípios, de cinco em cinco anos, sem prejuízo constitucional.
A SIT ganhou a concorrência e Israel Pinheiro, secretário de Agricultura, quis conhecer o redator do memorial, cujas iniciais LSD antecipavam as da datilógrafa, no canto esquerdo da página final, assinado por Luiz Gonzaga de Souza Lima. Não me pagaram honorários extras ajustados mas me encheram de confetes promissores.
Belo Horizonte modificou seus limites político-administrativos, reduzindo o seu território.
Quando, tempos depois, quis para meu arquivo uma cópia do famoso memorial, ninguém me soube dizer do seu paradeiro.
Sim! Eu fui o Construtor do Parque Nacional de Foz do Iguaçu. Foi uma aventura casual que esposei, quando meus anseios de engenheiro pareciam ter-se esvanecido.
Numa tarde quente do fim do mês de agosto, Luiz Souza Lima me procurou com um rolo de plantas e um Diário Oficial, que publicava o edital de concorrência para a construção do Parque Nacional de Foz do Iguaçu. As obras previstas eram: aeroporto, edifício sede, Hotel das Cataratas, usina hidrelétrica de quinhentos quilowatts e estrada de rodagem Foz-Cataratas, interligando o conjunto a se edificar. Concorrência marcada para daí a noventa dias, na modalidade elenco de preços unitários. Obras subordinadas ao Ministério da Agricultura, Divisão de Parques e Reflorestamento.
Eu estava profundamente traumatizado pela morte, em desastre aéreo, no Rio de Janeiro, do casal Lucila e Alberto de Oliveira Santos, meus cunhados e grandes amigos, ocorrida no dia 13 de agosto, ao pousar o hidroavião da linha Miami-Rio-Buenos Aires.
— Trago serviço importante para o Dolabella, — começou Souza Lima, — desta vez é para valer mesmo. Quinze contos se perdermos a concorrência e trinta, caso venhamos a ganhar, no que estamos empenhados. É obra de grande projeção nacional.
Estudamos minuciosamente o projeto, tomamos consciência das dificuldades e concluímos ser indispensável o conhecimento demorado das condições locais da obra. Como a viagem devia ser de avião, eu a afastei in limine, devido ao recente impacto que me abalara. Souza Lima foi e uma semana depois voltava com informações precisas, incluindo uns horríveis croquis (Souza Lima concebia magnificamente bem, mas era péssimo desenhista).
Em dois meses de exaustivo trabalho, terminei minha tarefa. Vencido o prazo, aberta a concorrência, a Dolabella foi classificada vencedora com a margem de dois e meio por cento sobre a segunda colocada. Minha satisfação foi grande e senti que, com os trinta contos de réis de honorários, tinha garantia de sobrevivência pacífica de dois anos, até me firmar como técnico em Belo Horizonte.
Mas Souza Lima, ao invés de me pagar, procurou me seduzir com promissoras perspectivas para um pobre engenheiro provinciano.
— Derenzi, não vou lhe pagar o combinado, a não ser que você faça absoluta questão. Vou confiar-lhe a chefia do serviço com o salário de cinco contos, estadia por conta do serviço e cinco por cento sobre os lucros, até o limite de cinco mil contos, e sete e meio sobre os excedentes, em balanços anuais. É serviço para mais de duzentos mil contos! É obra de caráter estratégico para consolidação da fronteira.
Pedi para pensar. O embargo à construção do Hospital Felício Rocho iria eternizar-se. O povo mineiro era profundamente nativista. Havia uma infinidade de pequenas firmas construtoras. A resistência a vencer dependia de tempo e do fator sorte. O salário era tentador. Um ministro de Estado recebia sete contos e quinhentos, um engenheiro de nomeada ganhava, em média, dois contos. Decidi aceitar. Tudo iria depender de minha mulher e de acomodar meus filhos em bons colégios. Ela deu-me liberdade e assumiu a responsabilidade da educação dos filhos. Mudar-se-ia para o Rio de Janeiro, onde eu deveria vir periodicamente, porque também a Dolabella estava transferindo o seu escritório para a Capital, para melhor contato com os ministérios.
Com o coração partido e a alma em torvelinho, no dia 25 de novembro me larguei para São Paulo, por ter planejado ganhar Foz do Iguaçu por via terrestre, contra todas as indicações sugeridas.
A coragem e o amor próprio decidiram meu destino. Deus sabe as provações e os sacrifícios a que me submeti. Todavia triunfei em parte graças à proteção de Nossa Senhora da Penha, a quem invocava nas grandes decisões a tomar. E vivi os melhores dias de minha vida no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Tomei, a partir de então, em diversas oportunidades, consciência da minha capacidade profissional.
Fui “cavalo alugado”, isto é, trabalhei como contratado para dirigir serviços importantes com salário e comissão.
Assim dirigi, na construção do Parque Nacional de Foz do Iguaçu, as seguintes obras: o aeroporto antigo, a sede do parque, o Hotel das Cataratas, a usina hidrelétrica e a estrada de rodagem. Por quatro anos e três meses, de novembro de 1939 a fevereiro de 1944, estive nessa deslumbrante fronteira sudoeste do Brasil.
Quando para lá me dirigi, de Curitiba, por terra, empreendi verdadeira façanha épica. Só havia caminho, e ruim, até Guarapuava. Foi na época das chuvas. Rios cheios, sem pontes, balsas, e vaus. De Guarapuava a Foz, pelo picadão carroçável, segui a linha telegráfica. Fiz o percurso da retirada dos revoltosos de São Paulo, na Revolução Paulista de 1932. Cascavel ainda não existia, era apenas um pequeno campo de pouso alternativo do Correio Aéreo Militar.
Munido de vinte contos de réis, procuração da firma, apresentação para certas casas comerciais e ofício credencial do Ministério da Agricultura, amanheci em São Paulo, hospedando-me no velho Terminus, hotel dos magnatas. Adquiri na Casa Cássio Muniz uma limusine Ford e dois caminhões Chevrolet, obrigando-se o vendedor a entregar os caminhões em Curitiba, cuja estrada de rodagem, em vias de conclusão mas ainda sem revestimento, permitia um tráfego muito precário. O perímetro traçado passava pela Capela da Ribeira e por serras prolongadas. A visibilidade era curta e os atoleiros, infindáveis.
Saí com meus auxiliares na limusine: João Fernandes, contador, Francisco Barbosa, auxiliar de escritório, Mazuco, mestre de obras, Pedro Nicolaiev, mecânico. Chovia. De Cotias a Capão Bonito o tempo nos favoreceu e paramos para comer. Chamou-me a atenção uma carroça encapotada, tracionada por dois cavalos, conduzindo uma família e ostentando no frontispício uma tabuleta com o letreiro: “Foz do Iguaçu”. Perguntei ao condutor do insólito veículo a razão da tabuleta.
— Porque venho de lá, onde trabalhei pintando as obras e estou voltando para São Roque, onde moro.
— Há quantos dias você está viajando?
O homem respondeu, com sotaque polonês, auxiliado pela memória da mulher:
— Trinta e poucos dias.
— Nós estamos indo para lá. Como é a viagem? Como são as estradas?
— O senhor é do Parque Nacional?
— Sim, por que pergunta?
— Não se fala em outra coisa. O senhor não chega este ano. De Guarapuava para lá, não se passa. Caminhos péssimos e rios cheios sem pontes. Olha, lá não há gente. Quando precisar de pintor, eu vou lhe dar meu cartão, é só mandar me chamar.
— Que obras você pintou?
— O hotel, o grupo escolar, a delegacia e a prefeitura, obras do Estado, construídas pela Construtora Nacional. Mas as obras já acabaram há muito tempo. Eu só fiquei pintando.
Fiquei com cara de tacho encardido. “Em que enrascada eu me meti”, disse para comigo mesmo.
— Você acha que chego em Curitiba hoje?
— Se não atolar muito em Barro Preto, pode ser, com umas dez horas de viagem.
Às duas horas da manhã, depois de pequeno percurso urbano, no cruzamento das ruas Barão do Rio Branco com Quinze de Novembro, os caminhões, que se haviam adiantado com nossa bagagem, nos esperavam e nos indicaram o Grande Hotel, muito próximo. Aboletamo-nos e dormimos o sono dos justos até o meio-dia.
Era o quilômetro zero de minha grande façanha em perspectiva. Estava a 28 de novembro, garoava quando me apresentei ao interventor federal do Paraná, Manoel Ribas, o famoso “Mané Facão”, do anedotário político, amigo pessoal e de alta fidelidade a Getúlio Vargas. Exibi minhas credenciais, mostrei-lhe os projetos. Ele ficou contentíssimo pelo seu prestígio junto ao Governo Central, pois concretizava velha aspiração do povo paranaense em valorizar uma das grandes maravilhas nacionais. Prometeu todo o apoio político e moral e perguntou como e quando eu pretendia alcançar meu objetivo. Falei de meu plano. Ele ponderou-me que a estação não era propícia e lamentou não ter podido melhorar as estradas para o oeste paranaense. Inteirei-o de meu interesse em instalar o serviço antes do fim do ano, para não perder a verba empenhada.
Ribas admirou-se de minha obstinação e mandou chamar o engenheiro Ângelo Lopes, seu secretário, e, durante a espera, como a temperatura caía, bebericamos boas doses de uísque, bebida que ambos estimávamos bastante.
O secretário de Viação foi menos pessimista e me credenciou ao Dr. Flores, chefe do distrito de Conserva, sediado em Ponta Grossa, primeira etapa da minha rota. Com o Flores, baiano expedito, concertei minha viagem. Eu seria auxiliado com um caminhão, conduzido por um mecânico hábil, uma turma de dez homens e pelo seu pagador, Severino Ribas, sobrinho do interventor e ótimo relações públicas para a zona que deveríamos palmilhar. Como bom caçador, habituado às aventuras sertanejas, fui com os outros ao comércio, nos prover dos recursos necessários à viagem. Minha previdência foi a garantia do êxito obtido. Peças sobressalentes para os veículos, correntes antiderrapantes para as rodas, um guincho com trezentos metros de cabo de aço, cordas, roldanas, macaco hidráulico, machados, machadinhas, pregos, picaretas, pás, foices, lanternas a álcool, meia dúzia de barracas de lona, camas de campanha, trem de cozinha, e uma carabina. Na melhor mercearia me sorti de lataria, cafeteiras a álcool, manteiga, linguiça, café, biscoitos, tudo em quantidade para quinze pessoas, para consumo de uma quinzena. Pão de centeio, não muito, porque era de fácil aquisição em casa de colonos europeus, pelo menos até Guarapuava. Disse eu, ao final da provisão:
— Se pegarmos muita chuva, ficarmos na barraca bebericando cachaça, vai ser muito monótono. Não se arranja um tocador de concertina? Ouvi tanta música nesses bares!
— Claro, — respondeu o Severino. — Tenho um amigo, exímio músico, que topa a parada. É um teuto-gaúcho, meio boêmio, que adora aventuras.
Lá apareceu o Nonô Fritz com sua harmônica de 64 baixos. Contratei-o por seiscentos mil réis por mês. Um excelente acordeonista, com o repertório em voga, mais os autores vienenses.
Às cinco horas da manhã, sob espesso nevoeiro e vento impertinente, partimos.
Ponta Grossa está assentada numa elevação brusca, de modo que, ao sair da cidade, os caminhos descem com fortes declives. Naqueles idos de 1939, então, quando as estradas eram não mais que aproveitamentos de velhos caminhos, com o tempo chuvoso, a viagem motorizada era uma dúvida temerária. Meus veículos rodavam com correntes nas quatro rodas. Consegui percorrer dezoito quilômetros em três horas e atingi a barranca do rio Tibagi, regurgitando de águas revoltas e barrentas. Do alto do barranco que eu devia descer para transpor o rio, tive a primeira decepção: a chuva violenta da semana e o vento tempestuoso carregaram a balsa água abaixo, sem que o barqueiro soubesse informar, no seu jargão misto de polonês e paranaense, onde poderia ser encontrada. Não chovia. O sol coava-se através de uma cratera rasgada no céu cinzento, carregado de nuvens prestes a desabar. Percebi, pelo feitio da paisagem de peneplanos entrelaçados e de contornos curvos, que o curso do Tibagi não poderia ter levado a balsa a grande distância. Descemos um meio quilômetro e, num remanso bordado de capoeirão grosso, entremeado de pinheiros seculares, lá estava a barcaça encalhada.
Rebocá-la para o porto de embarque fez-me lembrar os barqueiros do Volga. Filas de homens, de cada uma das margens, puxando cordas presas à proa do flutuante fujão.
Ao cair da tarde, poucos minutos antes de desabar o aguaceiro, havíamos transposto o caudal do Tibagi e restabelecido o tráfego da balsa.
Armamos as barracas, comemos, bebemos, ouvimos valsas e rancheiras e nos deitamos satisfeitos ao ribombar dos trovões, com rasgos de relâmpagos no céu. Eu agradeci a Deus a ajuda recebida e adormeci.
A prudência nos aconselhou a aguardarmos a estiagem e que os caminhos se enxugassem das águas das encostas, que embora fossem suaves estavam fortemente banhadas. Estávamos a dezoito quilômetros de Ponta Grossa, cidade confortável, com acentuada característica germânica, com suas cantinas e churrascarias com portas de vidro a defendê-las das fortes rajadas de vento, onde se tomava chimarrão ou a deliciosa cerveja de lúpulo, indústria famosa que celebrizava a cidade. E nós acampados em barracas de lona, isolados, sob o olhar curioso dos caminhoneiros errantes. Nas dobraduras da paisagem avistavam-se capões de vegetação, com a predominância de pinheiros eretos com sua galhada simétrica e horizontal, sustendo verdadeiros buquês de folhas verdes como se fossem taças de esmeraldas ao céu pedindo néctar. De longe em longe um rancho de colonos a espanejar fumaça espiralada e preguiçosa. A paisagem morna e úmida iluminava-se, pouco a pouco, pelo sol escaldante de fim de outono, cujos raios se refletiam cintilantes nas gotas d’água que pendiam da galhada dos araçás silvestres. Impressionou-me a campanha paranaense. Ainda hoje o meu coração se alegra ao recordá-la.
Raiou o dia 1º de dezembro e nos pusemos em marcha, com a precaução de evitar atoleiros e desbarrancados. Atingimos Imbituba, vila de colonos polacos e ucranianos, gente laboriosa e de feição sadia, lugarejo típico de colonização eslava em formação.
Conheci a Hevea brasiliensis — a erva-mate — que com a imbuia e o pinho constituíam a principal riqueza do Paraná. O ciclo do café era apenas incipiente, nos municípios de Cornélio Procópio e Jacarezinho.
Aliviamos a rotação dos motores, suprimindo as correntes das rodas dianteiras, e ganhamos Prudentópolis, onde comemos chucrute com linguiça. Uma delícia. Ao entardecer, estávamos em Guarapuava, então última cidade digna de menção, na marcha para o oeste do Paraná. Dois mil habitantes, um colégio religioso para meninas, boa casa de negócios, um hotel medíocre, casas de pinho e pequeno movimento de carroças transportando produtos da lavoura. Dormimos em colchões e edredons de penas de ganso, produtos do pequeno artesanato das freiras do colégio.
O nosso cicerone nos comunicou que ali terminava a conserva da estrada, que já era precária. Os quatrocentos quilômetros que nos restava percorrer seriam todos em caminhos difíceis, picadões mantidos pelos guarda-fios da linha telegráfica, arrastões de madeira! E iríamos encontrar serras e rios de volume acrescido pelas chuvas inclementes. Tínhamos, praticamente, vencido a metade da viagem. Todas as informações colhidas nos induziam a retroceder ou esperar pela melhoria do tempo, hipótese bastante aleatória.
Um polaco vaqueano da região nos animou a tentar Colonião-Virmond. Não havia banhados: zona de pinhais, com caminhos a meia encosta. Depois de refazermos as forças, pusemo-nos em marcha. O sol raiou luminoso. A evaporação era tão forte que a cortina de neblina que brotava do chão desenhava a estrada que se alongava na nossa frente. Acampamos numa restinga pitoresca, à margem de um córrego de águas cristalinas e frescas. Armamos nossas barracas. Nonô acendeu uma fogueira. Pôs a chaleira a ferver, nos banhamos e, ao som de valsas chorosas, nos deliciamos a beber chimarrão e ouvir histórias de caçadas, dos companheiros de viagem. Encontramos tantas perdizes espavoridas, bandos de patos selvagens e manadas de veados que a conversa só podia versar sobre caçadas. A paisagem que percorremos me encantava. Terra roxa, campos nativos, florestas de pinheiros, aguadas abundantes, potreiros povoados de gado, colonos esparsos em suas pitorescas casas de madeira, resguardadas por pomares. Conheci enormes campos de trigo, cevada, milho, alfafa, serrarias de um fio de serra a devorar pinheiros. Uma bela população: famílias de emigrantes disseminadas em grandes glebas, ucranianos, poloneses, alemães, italianos de fisionomias sadias e alegres. Na maioria emigrados do Rio Grande do Sul, com suas usanças gauchescas, plantam de tudo. Comemos broas de centeio. Encontramos o veículo preferido do colono: um carroção de quatro rodas, com eixo dianteiro móvel, coberto por capota de lona semicilíndrica, tirada por dois, quatro e até seis cavalos. É a velha e romântica diligência da época colonial. Nela o colono se desloca. Viaja, negocia, vai à missa levando toda a família; mulheres enfeitadas, crianças vendendo saúde. Nesses veículos empreendem grandes viagens, levando baús de roupa, e a alimentação indispensável. Foi para mim, capixaba, comparação contrastante da vida rural do sul brasileiro, tão diferente dos hábitos do centro-leste.
A chuva abrandou. As dificuldades porém aumentavam com os obstáculos oferecidos pelos atoleiros e o porte dos rios: Cavernoso, dos Índios e Chopim. Valeram-me a bobina de cabos de aço e o guincho; graças a esses engenhos e à coragem da turma, conseguimos ultrapassar obstáculos que pareciam intransponíveis. Foi uma semana dura. Em Laranjeiras, cidadezinha típica, dormimos em boas camas. No dia seguinte acampamos além do rio dos Índios, onde fomos visitados por uns remanescentes indígenas.
O carro de De Paoli, o feitor da turma do Departamento de Estradas de Rodagem, que nos servia de vanguarda, estancou, atolado até o diferencial, e ele me disse:
— Doutor, agora estamos perdidos. O banhado tem mais de meio quilômetro, e não há alternativa. Do lado de cima, vê, o barranco, do lado de baixo, a sanga.
Como a sanga estava marginada por imenso palmital, um plano me brotou na cabeça:
— Não há nada a temer, De Paoli. Mande a turma cortar palmito. Com os troncos faremos uma esteira e a revestiremos com as palmas, para melhor rolamento. Para desatolar o caminhão, corte um varão comprido e faça uma alavanca, suspenda o carro e calce as rodas com folhas de palmito.
Trabalhamos, talvez, oito horas.
Essa estiva salvadora durou dois anos, garantindo o tráfego que fora o temor dos motoristas.
Pernoitamos extenuados no fim do atoleiro, junto de uma ribeira. No dia seguinte alcancei Catanduva, baluarte último entre as tropas revolucionárias e legais, onde estas desistiram de perseguir Isidoro Dias Lopes e Luís Carlos Prestes, com seus companheiros Juarez Távora, Cordeiro de Farias e tantos outros bravos opositores da República Velha.
Estavam ainda presentes os dias de lutas sangrentas: dois cemitérios próximos, um bem cuidado, florido, o dos revolucionários, e outro, encapoeirado, das tropas legais. As trincheiras com centenas de cunhetes de balas deflagradas. O pequeno arraial, meia dúzia de casas de madeira, de criadores de porcos, estava todo transvasado de balas. A torre da igreja parecia ter sido um dos alvos. Um verdadeiro ralador de queijo, tão perfurada estava. Aqui a cena foi comovedora e interessante. Pedimos pousada ao encarregado dos telégrafos. Era um casarão habitado pelo funcionário, mulher e cinco ou seis filhos entre um e doze anos. Estação importante porque chamava-se de “transferência”. Terminava a transmissão Morse e as mensagens eram transmitidas por fonia, usando-se verdadeiros logogrifos. Cada letra do alfabeto era substituída por um nome próprio. Por exemplo: Amor: Antônio, Mário, Orlando, Rute.
A noite era fria e havia lua cheia. Os raios de luz de prata penetravam pelas frinchas das paredes, em contraste com a chama do candeeiro de querosene. A criançada, engruvinhada ao lado do lume, esmolambada e faminta, nos olhava apavorada. Foi minha penúltima dormida precária da viagem.
Muitas dificuldades aprendi a vencer. Conheci vasta região paranaense, promissora e inculta. Bela na magnificente paisagem agreste, cuja riqueza potencial, trinta anos depois, se transformou numa grande realidade econômica, embora carente da beleza que o homem não sabe reproduzir. A mata e os pinhais infinitos, revestindo milhares de quilômetros quadrados, foram sacrificados sem o menos resguardo à conservação do solo, para as necessidades futuras.
De Catanduva, hoje Guaraniaçu, até Toledo a região era pouco povoada; alguns ranchos, e seus habitantes, quase miseráveis, consistiam de mescla de indígenas, paraguaios e brasileiros. Na maioria, caçadores de tigres, cachorros selvagens e cobras, cujas peles vendiam aos argentinos mascateadores.
Depois da descida da serra da Adelaide dormimos à noite. O músico nos deliciou com as valsas sensuais e lamurientas, “Saudade de Iguape”, “Nossa Senhora do Amparo”. Madrugamos e, por volta das oito horas, chegamos em Cascavel, campo de pouso de emergência do Correio Aéreo. Três ou quatro casebres, dos quais o do Silvério, o patriarca, pequeno negociante de reputação suspeita. A venda estava de prateleiras vazias. Faltavam-lhe açúcar, sal, gorduras, mas abundavam mel de abelha, ovos e leite. Fizemos uma barganha de comestíveis: cedemos pão, linguiça, sal e manteiga e lanchamos ovos fritos e café com leite. Acompanhou-nos à comida o cabo rádio-telegrafista do posto. Informou-nos que o Correio Aéreo estava prestes a chegar. Decolara de Guarapuava. De fato, em poucos minutos aterrissava o “Waco-cabine”, pilotado pelo capitão Lizarralde.
Conversamos. Ofereceu-se a levar-me no seu avião. Não era justo abandonar meus companheiros. Redigi uma mensagem ao saudoso capitão Severino Antônio da Cunha, comandante da Companhia de Fronteira, sediada em Foz, avisando a minha chegada. Fiquei informado das condições do tempo e partimos: Lizarralde por via aérea e eu por terra. Ele voou cinqüenta minutos e eu gastei dezessete horas.
De Cascavel às barrancas do Paraná, seguimos rigorosamente o picadão da linha telegráfica. Era meia dúzia de retas. A primeira, a picada do Benjamim, em homenagem ao militar que a abriu, com 75 quilômetros, era um valão, sempre descendo, em plena mata alta. Fomos saudados por variada fauna: pica-paus, tucanos, papagaios, mutuns, macacos, lagartos e nuvens de borboletas multicores. A picada terminava em Castelanos, pequeno erval de mato abandonado, ocupado por duas ou três famílias que socorremos com nossos víveres remanescentes.
A região agora era de capoeirão baixo, sobre coxilhas pouco onduladas, com lavouras esparsas de mandioca e milho. A estrada, sulcada por rodas de carroças, sulcos que se transformavam em regos encostelados, dificultava o rodar dos veículos, que seguiam arrastando os diferenciais. A garoa fina embaçava o pára-brisa. A neblina baixa nos alcançou e perdemos mais velocidade, caminhávamos às apalpadelas. Ouvimos um som soturno e contínuo. De repente o chão acabou. Era a barranca do Paraná. Chegávamos finalmente. O relógio de pulso, com mostrador luminoso, marcava quatro horas da manhã. Raiava o domingo, dia 17 de dezembro de 1939. Eu vencera o imponderável e iria viver o capítulo primeiro da minha nova investidura de engenheiro. Buzinamos. Eis que nos aparece, de lanterna à mão, o Sr. Schultz, engenheiro austríaco, acastelhanado, que estava terminando os edifícios da Prefeitura, o grupo escolar e o Hotel Iguaçu, obras mandadas construir pelo Governo do Paraná. Havia o prestimoso construtor sido incumbido de nos aguardar. Ali terminava a estrada, ali deveríamos estancar.
Eu e dois auxiliares, o chefe do escritório e o mestre de obras, nos adiantamos na viagem de duas horas sobre a turma e os caminhões, com nossa bagagem.
Estávamos exaustos, sujos, famintos e mortos de sono. Estreamos o hotel, sem roupa de cama, sem luz, sem água. Deitamos sobre os enxergões de arame das camas nuas. Não descalçamos nem as botas enlameadas.
Antes das nove horas da manhã, fomos acordados pelo capitão Severino Antônio da Cunha e pelo comandante José Luís de Araújo Goiano, capitão do Porto. Mal havíamos pregado os olhos. Nossas visitas tinham instruções do Ministério da Agricultura para nos receber e orientar.
Bocejos, cumprimentos, lanche trazido pelos novos e amáveis amigos. Severino era um tipo singular de oficial. Gaúcho, alto, forte, fardado impecavelmente com suas botas brilhantes e justas. Expansivo, franco e liberal. Inesquecível. Quando coronel, comandou a Companhia de Recrutamento em Vitória. Goiano, calado, patriota, cooperador e incansável companheiro. Severino disse:
— O senhor tem todo nosso apoio para sua tarefa. Para começar vamos almoçar na Argentina, no Hotel Parque: para o senhor tomar contato com a região.
E fomos. Opíparo almoço e ótimos vinhos. Uísque a vinte mil réis o litro!
Assim estreei em Foz do Iguaçu.
Tinha a hierarquia de cidade mas não passava de um arraial de tábuas coberto de zinco. Cem habitações? Talvez menos. As ruas eram caminhos lamacentos e escorregadios. Carroções puxados a um ou dois cavalos pangarés trafegavam pelas vias transportando madeira, material de construção e, às vezes, mulheres e crianças. O linguajar era um dialeto misto de castelhano, paraguaio e guarani, com termos e frases a jeito dos gaúchos. Negros só no destacamento de polícia. A indumentária não era miserável. Os homens usavam boinas, lenços no pescoço, blusões, muitos de couro, bombachas e botas ou alpargatas. Armas brancas na cinta. Pequenos sitiantes, donos de boliche e changadores (carregadores que ajudavam a carga e descarga de navios). Biscateiros, chamamos nós. Passadores de contrabando, aliás quase público. Caras suspeitas. Poucos poderiam exibir suas credenciais. Contrabandeava-se madeira, vitaminas, cigarros, pneus, por parte do Brasil. Recebia-se vinho, trigo, gasolina e vestuário de lã e de couro. Comércio ativo de peles. Os barcos argentinos compravam tudo. Nossa madeira, principalmente, e peles de cobra e tigre. Não havia pobres. Ninguém gostava de trabalhar no pesado. Jogava-se “truco” e bebia-se muita cana paraguaia. Uma delícia. Principalmente no inverno, que é rigoroso.
O Exército, com seus seiscentos recrutas e uma dezena de oficiais, enchia a cidade e mantinha certa segurança. A Capitania dos Portos, com um sargento e três marinheiros, chorava a falta de uma lancha, um escaler ao menos.
A Prelazia, sem prelado, um edifício de dois pavimentos, com mais de cinquenta metros de fachada, sólida e majestosa construção feita pela Congregação do Verbo Divino, de padres austríacos. Encontrei velho vigário, que servira muito tempo em Santa Leopoldina, no Espírito Santo: padre Teodoro, amigo meu e de minha família. Foram abraços e lágrimas. Pôs à minha disposição três salas enormes com entrada independente. Foi um achado do céu. O edifício destinava-se a um colégio para meninas e sede de uma prelazia, o que não se efetivou devido às dificuldades da guerra. Servia de residência para uma pequena missão que andava a catequizar, pelas margens do Paraná. Havia um padre alemão, Vicente, que foi o construtor do prédio. Excelente mestre de obras e marceneiro que, com uma pequena oficina de carpintaria, movida a motor Diesel, angariava meios para terminar a magnífica igreja.
Foi de grande valia para mim a presença dessa ordem religiosa. A ela confiei a execução de todas as esquadrias dos edifícios a construir. Milhares de metros quadrados, todas de cedro e muito bem trabalhadas.
Instalei-me também na Prelazia: tinha uma sala de estar, quartos de dormir e pequena cozinha. Reunia, em drinques homéricos, meus amigos, autoridades e turistas.
Gozei do privilégio de morar com minha família nesse edifício, não obstante proibição para mulheres, devido ao fato de eu ter sido aluno, em Cachoeiro de Itapemirim, de colégio dessa ordem, e, principalmente, pela circunstância de meu pai ter reconstruído a torre da igreja de Santa Leopoldina, quando atingida por um raio. Sempre contam as boas obras.
Estávamos em plena guerra mundial. A Ordem do Verbo Divino foi fundada na Áustria, pelo venerável padre Iansen. Recebeu dos Habsburgos, família reinante daquele país, um magnífico castelo medieval, e por isso a fidelíssima ordem era protegida pela família imperial.
Por volta de 1936, veio o príncipe Otto de Habsburgo, acompanhado de uma comitiva régia, caçar e conhecer as florestas das bandas do Paraná e Paraguai. Os ilustres viajantes foram hóspedes desses bons padres. O equipamento trazido por esse nobre grupo era alguma coisa de maravilhoso. Uma estação rádio-transmissora, barracas de linho-lona, carabinas, cunhetes, facões com cabos trabalhados, equipamento de cozinha de campanha, garrafas térmicas, máquinas de filmar e de fotografar, enfim, um verdadeiro e inédito arsenal. O príncipe Otto regressou precipitadamente via Buenos Aires e confiou sua tralha à guarda dos padres. Estes transformaram os cômodos que foram ocupados pelos imperiais hóspedes em museu, que só a poucos eles permitiam conhecer. Quando o Hotel do Estado foi inaugurado, eu logicamente deveria sair e me mudar para lá, mas dada a minha condição especial, os hospedeiros não o permitiram. Eu consignava mensalmente uma ridícula espórtula de 120 mil réis para as obras das missões.
Ao me retirar de Foz do Iguaçu, quatro anos depois, por ter a verba da construção do Parque Nacional sido reduzida a uma insignificância, o delegado regional de Polícia, um filho de poloneses, bacharel, que habitava o hotel com sua família, pleiteou a vaga que eu abria na prelazia. Os padres, delicadamente, alegraram que não havia mais razão de os hospedarem, por ter a cidade acomodações públicas. O delegado sentiu-se humilhado. Denunciou os padres como espiões nazistas e, como prova, apontava o equipamento bélico deixado pelo príncipe Otto! Foi de estarrecer. Não valeram os depoimentos da oficialidade do Exército, o meu e o de pessoas gradas. Os padres tiveram que deixar a fronteira e o superior, Dom Koeller, foi condenado a dez anos de prisão. O presidente Vargas comutou a pena para três anos.
O papa Pio XII elevou Dom Koeller a prelado, numa paróquia no Amazonas, onde faleceu poucos anos depois. Foi uma vingança ignóbil do delegado polaco.
Em Foz do Iguaçu, com Luiz Goiano e Seveverino. 1940/1944. |
As condições de trabalho em Foz do Iguaçu eram as mais adversas. Não havia serraria, olaria, pedreiros, e os rios Paraná e Iguaçu não forneciam areia. Mão-de-obra, nenhuma. Tudo tinha que vir de longe, pois muito longe eram as fontes de comércio: Posadas, Argentina, de acesso por via fluvial, numa viagem de seis horas, mais a alfândega, etc. Curitiba só tinha acesso por via terrestre, mas em estrada que só era viável em tempo muito seco, distante 840 quilômetros. São Paulo, a mil quilômetros: novecentos de ferrovia, pela Sorocabana, de São Paulo a Porto Epitácio; transbordo da Companhia Norte do Paraná, pequenos vapores, 480 quilômetros rio abaixo, até Guaíra. Transbordo para pequena estrada de ferro, bitola de sessenta centímetros, ligando o altiplano das Sete Quedas e Porto Mendes e novo transbordo, para vapores argentinos. A carga precisava, por garantia, ser acompanhada. Tempo de percurso aproximado: trinta dias. Tarifas astronômicas. Comércio local para abastecimento, ótimo: a Companhia Mate Laranjeira tinha um verdadeiro empório comercial — víveres e bugigangas. Mão-de-obra, como vimos, nenhuma.
Todas as operações deviam ser meticulosamente planejadas. A verba de que dispúnhamos não era global, mas específica. E como não era abundante, eu deveria orçar cuidadosamente cada parágrafo do programa a executar.
A mão-de-obra, eu a recrutava em São Paulo, às vezes em Belo Horizonte e, esporadicamente, em Vitória. Quando o nosso escritório de compras em São Paulo anunciava o engajamento de operários para Foz do Iguaçu, com passagens e manutenção pagas, a Delegacia de Costumes soltava alguns vagabundos com o endereço de meus agentes e eu recebia a flor dos malfeitores.
Esta operação era mensal. “Haja dinheiro!” Chegavam a Foz a terça parte dos engajados, famintos e sem bagagem. Adiantávamos roupa, alimentos e agasalhos. Chovia muito e o frio era intenso.
Fui obrigado a burlar a lei dos dois terços e me valer dos paraguaios, que eu podia obter à vontade, menos desordeiros e mais disciplinados.
O contrabando de gasolina e de cimento era constante. As autoridades fechavam os olhos, por se tratar de obras de nacionalização da fronteira.
O problema da mão-de-obra eu solucionei com capatazes paraguaios, que velavam por seus patrícios e eram por eles responsáveis, porque eu pagava por homem, aos engajadores. Os operários nacionais eu os submetia a forte vigilância exercida por meia dúzia de prepostos enérgicos, de minha confiança. Dos oitocentos homens inscritos, respondiam ao ponto diário, em média, seiscentos homens. Era uma luta, porque, em sã consciência, eu os devia alimentar a todos, mulheres e filhos, sem que todos trabalhassem e produzissem economicamente. Havia então greves, desordens, cachaçadas, brigas de nacionais com argentinos e paraguaios, um horror!
Não consegui engenheiros auxiliares que permanecessem mais de um mês! Os jovens colegas não se adaptavam ao ambiente, que era de fazer medo.
De vez em quando aparecia um repórter de pasquim, de Curitiba ou São Paulo, querendo propina, páginas de anúncio, e eu não os podia satisfazer. A vingança era terrível. Edições escandalosas, manchetes terrificantes. Puseram-me na rua da amargura.
O primeiro fiscal do Ministério do Trabalho que eu recebi, vindo de Curitiba, tinha todo o aspecto de um escroque com plano preconcebido.
Veio via fluvial, depois, portanto, de longa viagem. Chegou, e me procurou na prelazia, minha residência e meu refúgio, onde inúmeras vezes eu trabalhava até de madrugada. Apresentou suas credenciais. Queria fiscalizar a observância da legislação trabalhista.
O escritório situava-se em São João, distante dezessete quilômetros, e a única condução, quem a possuía era eu. Levei-o no meu carro. Não deu uma palavra. Chegando no acampamento, desapareceu. A Companhia estava com sua instalação e administração concentradas nesse local: armazém, almoxarifado, oficinas, hospital e escritório. Acampavam uns trezentos homens. Nenhum deles tinha vocação para sacristão. Lá pelas tantas, me aparece o fiscal e pede para dar vistas à contabilidade. Prontamente atendido, mergulhou no exame dos documentos. Voltou à minha presença com uma série de autos de infração para que eu os assinasse.
Estávamos em plena mata virgem. A lei exigia que houvesse, em cada canteiro de serviço, um cartaz com o horário de trabalho, outro com a relação dos dois terços, outro com os preços das mercadorias. Respondi que às seis e meia da manhã a sirene dava o aviso de preparar para o serviço e às sete soava o pegar. De forma que o cartaz em cada frente de trabalho era inútil. O serviço era em campo aberto e em vários setores.
Como o preço das mercadorias era variadíssimo, o outro auto se referia ao fato de se vender cachaça a cinco cruzeiros, quando o comércio e os botecos avulsos vendiam a um cruzeiro.
— Eu não tenho interesse em que os operários bebam, porque depois tenho que apartar as brigas a pau.
Ainda um outro auto dizia que eu dava os adiantamentos em vales ao meu armazém, e os descontava em folha. Isto equivalia a emissão de moeda falsa!
O quarto proibia-me atrasar os pagamentos por mais de trinta dias e eu estava atrasado em noventa.
Respondi que o Governo me devia seis meses e não me dava nenhuma compensação. Quanto a mim, eu fornecia aos operários medicamentos, médico, assistência gratuita. Em vão. O homem encrespou-se nas suas tamancas, lavrou outro auto por desrespeito à autoridade. Respondi-lhe simplesmente:
— Retire-se, por favor, vá tomar providências em Curitiba e me deixe em paz, pois estou muito ocupado.
Chamei um vigia de confiança e ordenei-lhe:
— Aponte o caminho ao senhor fiscal porque ele quer ir embora!
O homem caminhou quatro horas a pé, em plena mata. Foi-se de avião para Curitiba.
Um mês depois, chovia a cântaros, vi em frente ao escritório uma limusine de chapa oficial, atolada. Por minha iniciativa mandei socorrer os viajantes. Havia estourado um pneu. Convidei os ocupantes a entrar e mandei servir um drinque e cafezinho. Todos beberam mas não se apresentaram. Feições distintas, pessoas bem apresentadas.
— São turistas?
— Sim, vamos às cataratas.
— Então os senhores irão no meu carro porque está com correntes nas rodas. Este aí não tem condições de viajar. Enquanto isto eu o mandarei reparar e colocar correntes, para voltarem para Foz ou Curitiba.
Depois de certa relutância aceitaram, mas nada de se apresentarem. Eu percebi, entre os quatro viajantes, que duas fisionomias não me eram estranhas.
Seguiram. Fiquei imaginando. O tempo ruim, estrada péssima, eles demorariam muito. Fazia-se tarde. Não deveriam ter almoçado. Nas cataratas, só havia meu canteiro de serviço. Pelo sim, pelo não, mandei preparar uma refeição: galinha, feijão, arroz, salada. Eu tinha uma excelente cozinheira polonesa.
Dito e feito. Os viajantes voltaram pelas três horas da tarde, molhados, famintos e sequiosos. Beberam, comeram e agradeceram; porém não declinaram os nomes.
Eu falei, olhando para o mais alto, cabelos grisalhos, entradas largas:
— Tenho a impressão de conhecê-lo de vista, da Galeria Avenida, no Rio. O senhor me parece oficial do Exército…
— Sim, sou o coronel Lima Câmara!
Olhei para o outro comensal, moreno, pouco mais baixo, falar cantante, e obtemperei:
— O senhor me parece de Curitiba. Creio tê-lo visto em alguma parte…
— Sou o capitão-piloto, assistente do governador Ribas. Já nos vimos no palácio.
Eu tinha descoberto o complô.
Vieram em face das denúncias escandalosas dos jornais e da representação do fiscal do Ministério do Trabalho, não só me inquirir como ameaçar meu afastamento da direção das obras.
Os outros dois acompanhantes eram, um, o chefe do distrito do Ministério e o outro, seu secretário.
O incidente, pitoresco e cômico, eu o registrei na memória. Minha cortesia e prestimosidade venceu a fiscalização. Fiz um relato das condições locais, mostrei todo o complexo das obras e fiz sentir os obstáculos ao meu desempenho.
Abraços, oferecimentos de préstimos, despedidas, elogios, remataram o inquérito.
Todavia, transpirou no meio do operariado que eu havia sido censurado, estava na iminência de ser afastado e preso por arbitrariedade. Não demorou o efeito do boato.
Estava marcada, com grandes preparativos, a inauguração do aeroporto de Foz do Iguaçu. Eu havia sido eleito presidente do Aeroclube.
Assis Chateaubriand viera de antevéspera preparar a festa aérea. No dia aprazado chegaram vinte aviões e uma luzida comitiva. O embaixador e o chefe das Forças Aéreas da Argentina e o ministro da Guerra do Paraguai. O ministro da Aeronáutica, saudoso e bom amigo Salgado Filho e esposa. O comandante da Força Aérea Brasileira, o ministro da Justiça, Marcondes Filho, o almirante Gago Coutinho, o presidente do DASP, Simões Filho, altas patentes do Exército e autoridades estaduais.
Eu deixara meu engenheiro ajudante em São João para disciplinar o operariado. Tudo embandeirado e ornamentado com flores. Ficava em Foz, a receber os convidados.
A aterrissagem prolongou-se por duas horas. Espetáculo jamais visto nas barrancas do rio Paraná.
Conversava eu com o ministro da Aeronáutica, quando meu ajudante, engenheiro Hélio Lopes, me aparece pálido, preocupado, e me confidencia:
— Doutor, a turma das Cataratas está em marcha para se juntar com a de São João, em greve, fazendo arruaças, e querem procurar as autoridades para reclamar!
Fiquei gelado! Será um escândalo trabalhista, disse comigo, e a minha ruína moral.
Pedi discretamente licença ao ministro Salgado Filho. Este percebeu minha fisionomia perturbar-se, desconfiou que havia alguma alteração e, com sua reconhecida finura, perguntou:
— Doutor, algum problema? Disponha do Batalhão de Fronteira…
— Absolutamente! Rotina interna e nada de importante.
Passei pelo escritório, muni-me de uma carabina e dois revólveres 38, cano longo, e fiz-me acompanhar pelo armazenista, Djalma Ferreira, um barbacenense miúdo, valente e fiel. Disse-lhe do movimento e fomos enfrentá-los. O dia claro e o céu azul cantavam a beleza da primavera subtropical. Surpreendemos o magote de operários, todos nacionais, numa reta em plena mata, armados de fisgas de ferro. Saltamos do carro a uns dez metros e eu arenguei:
— Cachorrada, filhos-da-puta, brasileiros de merda. Vocês não têm vergonha de promover uma greve, num dia como hoje, diante de tantos companheiros estrangeiros? Se estão descontentes vocês podiam ter-se manifestado em outra ocasião, não hoje, dia da visita de autoridades públicas. Quem é o cabeça da greve; que se apresente!
Silêncio tumular. Respirei tranquilo e em voz baixa disse ao Djalma:
— Vencemos a parada.
E retomei a censura:
— Vocês não passam de uns covardes e o chefe de vocês é o maior de todos. Voltem todos ao acampamento e quando as autoridades chegarem às Cataratas, queimem os foguetes e cumprimentem os visitantes com vivas. Estamos todos trabalhando para a grandeza do Brasil, nossa pátria, aqui na fronteira dos nossos vizinhos. Ouviram!
Todos, como se fossem autômatos, largaram as fisgas, voltaram-nos as costas e dispararam com passos acelerados para seus postos. Felizmente minha carabina e os revólveres do Djalma voltaram mudos para o escritório.
A caravana sobrevoou as Cataratas, em acrobacias aéreas, e as principais autoridades, nos meus veículos fantasiados, visitaram as obras do parque e foram patrioticamente vivados…
O banquete de 120 talheres, em mesas dispostas em V, foi servido, obedecendo ao programa organizado por Assis Chateaubriand. Este saudou a fraternidade dos três países limítrofes e o prestígio da terceira arma. Falaram sucessivamente o embaixador argentino, o comandante da FAB, o almirante Gago Coutinho e o ministro Marcondes Filho, com aquela pose de mão esquerda no bolso do paletó e suas frases escorreitas. O promotor público, escalado por Chateaubriand, ergueu sua taça em homenagem ao presidente Getúlio Vargas, encerrando o ágape.
Enquanto ouvia os discursos, eu encabulado, por nenhum se ter referido expressamente ao ministro Salgado Filho, e estimulado por seu oficial de gabinete, sentado à minha frente, comentei com ele a gafe. Eu já estava com a pressão elevadíssima. Quando todos se sentaram, após o brinde convencional do promotor público, eu permaneci de pé.
— Senhores! Meu ministro Salgado Filho. Permita-me que eu quebre o protocolo, erguendo um brinde a V. Excia., cuja personalidade e atuação não podem ser omitidas. Nestas barrancas longínquas da pátria, onde a saudade cresce, V. Excia. faz riscar o céu das três fronteiras com o lábaro auriverde do Brasil.
Foi uma explosão de aplausos. Gabriel Bernardes Sobrinho, oficial de gabinete do ministro, despejou sua taça de champanhe sobre minha cabeça, e eu continuei, por vinte minutos, sob palmas prolongadas, a exaltar a ação do grande ministro.
Quando terminei, Salgado Filho pela ala direita e sua esposa pela esquerda caminharam ao meu encontro, com os olhos úmidos, a me abraçar e beijar! O ministro respondeu à minha saudação. Foi minha maior noite de homem público!
Assis Chateaubriand foi o único que não aplaudiu.
Um pouco de auto-elogio desabafa o coração. É uma festa íntima que enfeita a alma, medicina que nos reconcilia a consciência para novos embates.
A construção do Parque Nacional de Foz do Iguaçu foi um curso de mestrado, técnico e psicológico, que me enriqueceu bastante de sabedoria e experiência.
[DERENZI, Luiz Serafim. Caminhos percorridos — Memórias inacabadas. Reprodução autorizada pela família Avancini Derenzi.]
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Luiz Serafim Derenzi nasceu em Vitória a 20/3/1898 e faleceu no Rio a 29/4/1977. Formado em Engenharia Civil, participou de muitos projetos importantes nessa área em nosso Estado e fora dele. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)