Em carta ao escritor Assis Brasil, datada de 6 de junho de 1998, Oscar Gama Filho forneceu o seguinte depoimento:
“Não realizei cursos extras de línguas ou de música. Sempre fui um autodidata e, desde a mais tenra infância, manifestei o desejo de ser escritor. Muito doente e solitário, às vezes permanecia de cama por meses. Nessas oportunidades, dedicava-me a percorrer a biblioteca de nossa casa. Minha família possuía uma excelente biblioteca, mesmo porque mamãe foi a segunda mulher capixaba a escrever e publicar contos — e no Rio de Janeiro, na Revista da Semana. Entre os treze e os vinte anos — até 1978 — dediquei uma hora por dia ao estudo de literatura: sem professor, sem matéria, mas com o mesmo empenho dos que se dedicam à música. Aliás, nesta idade, já compunha músicas populares. De 1978 a 1992, empenhei-me em resgatar obras artísticas capixabas e a reescrever a história literária espírito-santense em História do Teatro Capixaba: 395 Anos, Teatro Romântico Capixaba e Razão do Brasil em uma sociopsicanálise da literatura capixaba. Este propósito foi manifestado, pela primeira vez, no manifesto da Associação Cooperativa de Escritores Capixabas, em que defendia a criação de Oficinas de Memória e de Pesquisa.
Fui o principal leitor crítico da Fundação Ceciliano Abel de Almeida, editora da UFES, onde trabalhei de 1979 a 1985, participando da produção das coleções Letras Capixabas e Estudos Capixabas. Paralelamente, concluí o curso de Psicologia. Entrei na Fundação Ceciliano ganhando meio salário mínimo como ajudante de repórter e, em dois anos, fui contratado como funcionário público, passando a receber dois salários mínimos e muita glória literária — não, financeira.
Em 1978, realizei a exposição de arte ambiental poético-plástica Varais de Edifícios. A inspiração era o conceito de arte ambiental de Hélio Oiticica, os “móbiles” de Calder e minha estranha visão de mundo. Esta última adotava, em meus poemas, uma nova técnica, que chamei de fusão. Hoje, olhando criticamente, parece-me um subtipo de stream-of-consciousness, em que a associação livre utiliza as vírgulas como marcos de pausas de respiração e não para separar sintagmas gramaticais. Um exemplo é o poema Outono Americano. A técnica de fusão também explica o meu uso poético de maiúsculas, empregadas sistematicamente, até hoje, após qualquer sinal de pontuação, para marcar o início de uma nova frase poética, formada por vários versos curtos. Nesta frase estaria condensado um pequeno flash da ideia poética, uma subdivisão prismática do tema principal. Este formato foi abandonado, posteriormente, mas ficou a fôrma em todos os meus trabalhos, já que, em prosa e em verso, sou, fundamentalmente, um poeta. Caso contrário, escrevo mal, igual a ninguém e a todos.
O sucesso crítico da exposição Varais de Edifícios possibilitou que, no saguão da Aliança Francesa de Vitória, onde foi realizada, eu tentasse criar a Associação Cooperativa de Escritores Capixabas, realizando oficinas literárias que dariam origem à geração-mimeógrafo capixaba e a algumas tentativas de furar o que chamávamos de “bloqueio editorial”. Em 1979, juntamente com Gilson Soares, tentei criar a Editora Cooperativa de Escritores Capixabas, mais ousada, com registro em cartórios, etc. Não deu certo.
O passo seguinte não poderia deixar de ser a fundação da mais importante associação literária capixaba, o Grupo Letra. Fui editor da Revista Letra de 1981 a 1985 e redator do Manifesto do Grupo Letra — Rubem Braga, à época, fez referência a um de meus (nossos) motes: “é melhor ser poça no deserto do que lago no Rio” (de Janeiro).
Quando, em 1978, criei a primeira oficina literária local — chamada, oficialmente, de Editora Cooperativa de Escritores Capixabas, com a participação de Miguel Marvilla e de Marcos Tavares, do futuro Grupo Letra, bem como de Gilson Soares, de Benilson Pereira e de Coelho Sampaio, entre outros —, bradei, em grito-slogan de guerra: “[…] literatura exige compromisso. Ou se escreve, ou se vive. Se a opção é escrever, tem-se que pautar a vida em função da literatura […]” (cf. MONTEIRO, Lígia. A Luta dos Novos Poetas Capixabas e o Bloqueio Editorial, in A Gazeta, Vitória, 3/9/1978, Caderno Dois, p. 4).
Talvez tenhamos produzido, na época, um movimento fanático estético-religioso, à Fausto, em que trocamos a humanidade, emprestamos as vidas e perdemos dinheiro — em geral, pagamos pela publicação de nossas obras — pela visão permanente da beleza quintessencial da arte, nossa deusa. Esta era a pedra-de-toque do Grupo Letra, fundado em 1981 e formado pelos inesquecíveis sete cavaleiros do graal: Renato Pacheco, Reinaldo Santos Neves, O. G. F., Miguel Marvilla, Marcos Tavares, Luiz Busatto e José Augusto Carvalho (a ordem arturiana certa a que pertencemos estrutura-se pelo inverso, redonda e sem cabeceira). Esta era a pedra-de-toque: converter nossas existências em um acontecimento literário interior capaz de fornecer bons diálogos, cenários, figurinos e músicas a roteiros originais que iluminassem o repetitivo e tedioso livro do cotidiano, já que o sentido da vida é a emoção. Qualquer uma. Mas a emoção-mor é a estética, com seu poder de dourar a pílula a ponto de criar uma supra-realidade maior, mais interessante e mais compensadora do que a mesmice do real. Por ela, vale a pena morrer. Ou viver.”
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)