Digamos que, num primeiro momento, você não aceite um sashimi feito com saudáveis e rosadas postas de peixe pousadas num grande cubo de gelo. O gesto pode ter várias causas. Você não gosta de peixe cru. Acha que o peixe pousado no gelo pode ser uma obra de arte e não tem coragem de, com sua gula, destruir uma possível concorrente a exposição de arte de vanguarda. Prefere alimentar o espírito. É provável também, dadas inevitáveis limitações físicas e por não querer imitar o execrável hábito dos antigos romanos, que você recuse o sashimi porque está de olho num fantástico peixe grelhado que implora para ser escolhido no lugar do peixe cru. (Os dois é uma opção inaceitável pelo seu estômago.) Você hesita e seu amigo japonês já tornou a encher o seu copinho de saquê. Entre o sashimi e o peixe grelhado você escolhe o saquê e adia a decisão. Para ganhar tempo e cumprir um ritual, você também serve a bebida a seu amigo. A dúvida persiste. O melhor mesmo é fingir que escuta o cantor folclórico sentado na outra ponta da mesa entoando uma plangente canção dedilhada num instrumento que até então você só vira em estampas antigas: alaúde.
Agora a canção atinge um clímax e você passa mesmo a prestar atenção no cantor cuja música lacrimeja pelos quatro cantos do restaurante. Peça ao amigo japonês para explicar do que se trata. Qual o enredo da triste história dessa canção? Parece o apelo apaixonado de alguém cruelmente traído/desprezado pela amada ou algo semelhante. O amigo japonês sorri e diz que não é nada disso. Trata-se de uma canção folclórica japonesa originária de uma região de pescadores, na ilha de Hokaido. Nessa canção o pescador faz um dramático apelo ao peixe para que ele se deixe pescar. É inevitável a pergunta: “Mas o que é que o peixe vai ganhar com isso?” O japonês lhe diz, divertido, que não sabe dizer, mas que talvez você possa ganhar, já que é possível que esse tal peixe tenha sido pescado e está aqui em forma de sashimi em cima do gelo ou como o grelhado aí mais à sua frente. Você entende que essa foi uma maneira delicada de lhe dizer que está na hora de decidir. Mas, em definitivo, você sobe no muro. Para desespero dos deuses da gastronomia e para auxiliar minhas próprias conclusões nestas notas, se desculpa, inventa qualquer coisa, diz que perdeu a fome e não escolhe nenhum dos dois. A reação do japonês? A mais normal possível. Todo o ritual da gentileza nipônica permanece intacto e talvez até você seja objeto de admiração por essa atitude estóica especialmente porque optou por mastigar alguns inocentes talos de brócolis.
Muda a cena. O amigo japonês está disposto a mostrar-lhe hábitos alimentares tradicionais do Micado. Pretende provar que os japoneses (uma preocupação constante) não desprezaram suas tradições culinárias. Para isso ele o convida para jantar num velho restaurante que permanece no mesmo local há cerca de trezentos anos. Vocês seguem um trecho de táxi e depois caminham até uma rua onde não existem vestígios dos guizos e das lantejoulas do Ginza. O Japão ancestral. Figuras que antes foram vistas apenas gravadas na porcelana dos jogos de chá orientais estão sentadas nas mesas e olham para você com curiosidade. Confira: você é o único ocidental naquele ambiente. Não se impressione quando é apresentado à dona do restaurante como brasileiro e ela pergunta a seu amigo japonês: “O que é isso?” Claro, estamos no século XVIII, mas a notícia da descoberta do Brasil ainda não chegou por ali. A seguir você fica ouvindo uma espécie de cantochão entoado por uma senhora de quimono sentada numa janelinha que dá para a copa. “De que se trata?” O amigo lhe explica que aquela é a forma tradicional de transmitir pedidos à cozinha. A surpresa seguinte fica por conta do cardápio. Não consta nenhum daqueles pratos trabalhados que são ao mesmo tempo prodígios culinários e festivais de artesanato. Pelo que observa, as pessoas comem apenas macarrão e arroz. Ora um prato, ora outro. É surpreendente a quantidade de pequenas travessas que vão sendo consumidas e empilhadas ao lado das mesas. Quanto mais alta a pilha, maior a consideração recebida dos outros comensais. Fica bem clara a atitude de discreto respeito para com os detentores dos himalaias de travessas abatidas. Sem a menor pretensão de se aproximar dessas culminâncias, você, que está com muita fome, vai fazendo o seu jogo e vai empilhando suas travessinhas de macarrão. O amigo japonês fica visivelmente alegre pela sua adesão ao jogo da comida tradicional, mesmo ignorando que você pode não ter sido um campeão mas, nos velhos tempos, poderia muito bem ter sido classificado, digamos, modestamente, num torneio regional de comedores de macarrão. Mas chega o fatal momento em que seu amgio japonês lhe sugere experimentar o arroz. Àquela altura você está abarrotado de macarrão até a alma e não há mais espaço para nada. Você agradece e recusa o arroz. Repito: RECUSA o arroz. Seu amigo emudece. A recusa lhe causa indisfarçável decepção. Não adianta mostrar a pilha de travessinhas de macarrão como desculpa. Você aprende que o arroz é fundamental, mas agora é tarde. Em conclusão: os japoneses não se incomodam se você recusar quaisquer daquelas sofisticações culinárias em que são mestres, mas ficam tristes se você não aceita o seu arroz.
[Transcrito de Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.]
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)