Sexta-feira, à tarde
Chegou de bicicleta ao 272 da Chapot Presvot e saltou em frente da casa. Transpôs o portão do jardim, encostou a bicicleta na parede. Correu a trava na roda traseira, subiu os dois degraus da varanda e entrou na sala, vazia, naquela tarde de sexta-feira.
“Pois não?,” disse a voz vinda de um cômodo lateral.
“Boa tarde! Eu queria dar uma queixa. O senhor é o delegado?”
“Não, meu amigo, sou apenas o escrivão de polícia. Qual é a sua queixa?”
“É sobre um roubo…”
“Sente-se nesta cadeira… Agora, pode começar. Como é o seu nome?”
“Felisberto de Souza, mas me chamam de Cabeleira.”
O escrivão achou o apelido compatível com os cabelos revoltos do depoente e datilografou no formulário, batendo com agilidade as teclas da Olivetti: Felisberto de Souza, vulgo Cabeleira.
“Qual a sua profissão, Cabeleira?”
“Pedreiro. Trabalho numa obra aqui perto, o edifício Ano Novo Taver.
“Ano Novo Taver?”
“É um nome parecido com este. Eu não sei falar em inglês.”
“Onde fica a obra?”
“Na esquina desta quadra.”
“Ah, é o edifício Hanover Tower…”
“Este mesmo. É da Piramidal Construtora. Quer ver a minha carteira de trabalho?”
Antes que Pedro, o escrivão, pudesse dizer qualquer coisa, o depoente sacou do bolso traseiro da calça a carteira amarfanhada e estendeu-a para exame. O escrivão pegou o documento com um certo constrangimento, folheou as páginas de bordas dobradas e sujas, e tirou dali os dados pessoais para completar a qualificação do queixoso.
“Agora, me diga, Cabeleira, que roubo é esse de que você está falando?”
“Eu fui roubado, doutor. Roubado pelo Zé Gonçalves, o Sabidinho.”
“Quem é o Sabidinho?”
“É meu companheiro de trabalho. Nós trabalhamos no mesmo andar do edifício que o senhor falou o nome.”
“Conte como foi o roubo?”
“Foi onteontem. Eu sempre passo em frente desta Delegacia e por causa disso sonhei que estava sendo preso aqui. Um sonho besta, mas foi bom porque me deu um palpite e joguei no bicho. Todo mundo joga, n’é, doutor? Então eu joguei no porco, porque o número desta delegacia é porco. E ganhei quatro contos. Joguei um real na cabeça, porque só tinha um real, e ganhei. Podia ter lavado a porda, mas só tinha um real… No outro dia, peguei na banca as quatro notas de cem que o porco me deu de presente, escondi no fundo da malmita debaixo de um plástico pra não misturar com a gororoba, e trabalhei o dia todo. De noite, em casa, é que dei pela farta do dinheiro”.
“E você acha que foi o Zé Gonçalves quem passou a mão no seu dinheiro?”, perguntou o escrivão.
“Acho, não, doutor, tenho certeza.”
“E donde vem sua certeza?”
“Por que o Sabidinho tem a mania de mexer na minha malmita, só de sacanagem. Eu já disse que um dia ele vai se dar mal comigo, mas ele pensa que estou brincando…”
“E alguém viu o Sabidinho mexer na sua marmita?”
“Não, doutor, nós trabalhamos sozinhos, rebocando um apartamento no sétimo andar. Não dá pra ninguém ver, nem Sabidinho é de marcar bobeira.”
“Olha, seu Felisberto, a sua queixa está anotada e vamos ter de chamar o Sabidinho para prestar depoimento. Dá um tempo e volte para saber o andamento do processo.”
“Então posso ir?”
“Depois de assinar a queixa. Sabe assinar?”
“Sei, doutor.”
“Então é só.”
“Obrigado, doutor.”
“Mas fique sabendo que doutor, aqui na delegacia, é o Digital, que é o delegado. Eu sou apenas escrivão.”
Segunda-feira, à tarde
“Pedro, ó Pedro?”
“Sim, delegado!”
“Vê se atende este nosso amigo aqui, que eu vou dar uma telefonema para o Dr. Ribeirinho. O amigo quer dar parte de um furto.”
Era um homem magro e baixo. Vestia calça de cor indefinida, camisa de tecido riscadinho, e calçava sandálias havaianas.
“Vem cá, meu amigo,” disse o escrivão. “Sente-se aí enquanto eu datilografo sua queixa. Qual é o seu nome?”
“José Gonçalves e trabalho numa obra aqui perto…”
O escrivão fitou o depoente por cima dos óculos de aros redondos, e indagou:
“Por acaso é no edifício Ano Novo Taver?”
“Este mesmo, doutor.”
“Não vai me dizer que você é o Sabidinho?”
“Como é que o senhor sabe, doutor?”
“Aqui na Delegacia se sabe de tudo,” respondeu o escrivão acendendo um cigarro com ar de adivinho. “Mas vamos ao que interessa. Qual é a sua queixa?”
“Seguinte, doutor: eu fui roubado em quatrocentos paus pelo meu companheiro Cabeleira. Cabeleira é como a gente chama ele, lá na obra. O nome certo é Felisbelto.”
“E como foi esta roubada?”, inquiriu o escrivão com olhar desconfiado.
“Seguinte, doutor: eu sonhei que estava passando em frente desta delegacia e joguei no número dela. Aí ganhei na centena 272. Botei as notas de 100 na minha malmita, separadas da comida por um pedaço de papelão, e fui trabalhar. Minha burrice foi contar o sonho pro Cabeleira.”
“Mas você não é o Sabidinho, como foi dar uma mancada destas?”, perguntou o escrivão olhando o depoente com ironia.
“Doutor, eles me chamam de Sabidinho porque dizem que eu sou burro. E acho que sou burro mesmo.”
“E você acha que foi o Cabeleira quem tirou o dinheiro da sua marmita?”
“Só podia ser ele, doutor. A gente trabalha no sétimo andar do prédio, só tinha ele ali…”
“Mas vocês não são amigos?”
“Amigos a gente é, mas dinheiro, doutor, acaba com qualquer amizade… É que nem mulher.”
“Pois fique sabendo que foi bom você vir à delegacia porque nós íamos mesmo chamá-lo para prestar depoimento.”
“Mas me chamar por quê, doutor?”
“Porque o Cabeleira esteve aqui na sexta-feira e o acusou de ter roubado o dinheiro dele. E ainda contou o mesmo sonho que você contou…”
“Filho da puta! Me desculpe, doutor, mas é isto que ele é — um filho da puta. Além de me tirar o dinheiro, roubou meu sonho!”
“Não adianta se aborrecer. É a palavra dele contra a sua e nós vamos ter de fazer uma acareação, juntar você com ele nesta sala para descobrir quem está dizendo a verdade.”
“Mas sou eu que estou dizendo, doutor.”
“Isso é o que nós vamos ver. Aliás, nós não, mas o Dr. Digital, que é o delegado. E nosso delegado sempre descobre a verdade, como ele mesmo diz. Agora assine aqui nesta linha e pode ir.”
“Eu vou, doutor. Mas quem está falando a verdade sou eu. Juro que sou eu e vou provar nesta tal de acareação.”
Quinta-feira, pela manhã
O escrivão abre a página policial do jornal Notícia Agora e lê a reportagem com o título: “Operário cai de prédio em construção”: O pedreiro José Gonçalves, vulgo Sabidinho, cai do sétimo andar do edifício Hanover Tower, em construção na ….”
“Atrapalhando o trânsito?”, pensou Pedro.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)