A cegueira, não. Pelo menos, não a definitiva, mas sim a herdada da negra sala de projeção do cine-teatro Glória. Saio meio cego, tonto, chegado de Casablanca, sem lábios feitos de vermelho, não de carne, ao meu lado para me servir de guia. Para dialogar à Platão.
Vindo da caverna de Platão, cego pela luz, saio tonto do Glória e tropeço, não num paralelepípedo, mas na rua Marcelino Duarte, que se torna gente. Ou fantasma. De uma sessão freudiano-espírito-santense que transcrevo a seguir. Escrita automática dos surrealistas, velhos amigos há muito, desde o nunca, vamos lavar a roupa suja de sua existência para que, enfim, descanse em paz.
Com a rua transformada em gente, habitamos o vazio, eu e Marcelino Pinto Ribeiro Duarte (Serra-ES, 1788 — Niterói-RJ, 1860). Choroso e melancólico, como sempre, Marcelino, em respeito à poluição sonora que ameaça o nada instaurado, recusa-se a falar. Está por baixo. Subimos, então, aos céus, via Cidade Alta, favela do ouro e, como Marcelino era padre, vamos à casa paroquial oitocentista, na rua José Marcelino, seu semi-homônimo, admirador e irmão em rua. José Marcelino, também escritor, incluiu a maior parte da obra publicada de Marcelino Duarte nos dois volumes de seu Jardim poético, publicados em 1856 e 1860.
Padre e filho do padre Manoel Pinto Ribeiro Duarte, Marcelino deixou diversos filhos carnais, muitos escândalos e a fama de agitador político. Mulato, venceu a cor e se pintou como primeiro dramaturgo capixaba e um dos pioneiros da arte poética. Coração numeroso, um romântico? Um clássico perdido na estante? Não e não. Certamente um pré-romântico. O que é sem ser, a divisão, o sentimentalismo, o nacionalismo patriotário, a dor fragmentada pela técnica.
Não há escritor capixaba mais controvertido do que Marcelino Duarte. Desde que morreu, nunca mais foi visto em público. Ligo para a revista Você e de lá pedem uma matéria. Pauta: teatro, poesia, Rubim e Afonso Cláudio. Pergunto a Marcelino como tem andado.
— Morto. Comendo capim pela raiz. Imóvel, naturalmente. Subterrâneo total underground. Enterrado no trabalho. O que me permite conhecer adegas subterrâneas, de onde extraio o vinho do Porto necessário para conservar meu cérebro em álcool. Não me lembro de muita coisa. (O contra-regra traz alguns litros de vinho.)
— E Afonso Cláudio?
— Esse cara mudou minha vida. Um artigo publicador por Você, segundo número, mostra que ele reescreveu os meus poemas incluídos em sua História da literatura espírito-santense. Distorceu meus versos com sua colher torta, querendo me fazer passar por um autor clássico, um árcade, veja só!
— Mas não foi o Afonso Cláudio que te transformou em herói da resistência contra a tirania de Francisco Rubim, que governava o Espírito Santo?
— Mais ou menos. Afonso Cláudio não imprimiu a lenda nem a história. Preferiu a ficção, maior que as duas. E mudou o desfecho da trama, incluindo um final feliz. (Os litros de vinho, como nó em gota d’água, enrolam sua língua com laços de beleza. A sede, vinda de séculos de abstinência, é morta pelo ex-morto.)
— Soube, no disse-me-disse, que você não disse palavra de honra do que o Afonso Cláudio disse. (Repórteres e escritores bebem em serviço. Não tanto mas não tampouco.) E aí, qual é a verdade?
— A verdade, segundo Welles: It’s all true. In vino veritas: no vinho, a verdade. Atrás da verdade, você toma a primeira garrafa de vinho e não encontra. Sem desânimo, bebe a segunda. Também não. A persistência na busca da verdade leva à terceira garrafa. Quando chega à metade, ela não importa mais. (Bastante altos, somos arrebatados em corpo e alma por anjos até a visão da “Bahia” de Vitória.) A verdade começa com minha ida ao Rio de Janeiro, em outubro de 1817, para pedir ao rei aumento de vencimentos e a concessão do “Hábito de Cristo”. Quem tiver insônia pode conquistar o sono eterno lendo a história no José Schiavo — Caderno Dois de A Gazeta de 13/1/1983. Eu merecia esse dinheiro: prestei muitos serviços à monarquia, mais por esperteza do que por crença. Em 1816, por exemplo, tive de me tornar o primeiro dramaturgo nascido no Espírito Santo, a fim de comemorar a coroação de D. João com o Drama que escrevi e encenei. Pretendia passar apenas quatro meses na Corte, tempo suficiente para a grana sair. Acabei ficando dois anos pois, em fevereiro de 1818, Rubim indeferiu meu pedido e eu decidi permanecer onde poderia ganhar melhor. Como eu sou escritor e o mundo é construído com palavras, resolvi me vingar do Rubim. A verdade, meu amigo, é que não fui até o Rio apenas para reclamar do despotismo de Rubim, ruim, com D. João vi. Nem vi o passarinho verde que o Sonso Gáudio (= daqui por diante, a Afonso Cláudio) viu. Você sabe: pegaria mal usar a necessidade de dinheiro e de honrarias nos versos. Transformei o caso em luta contra a tirania do governador e descrevi a viagem em um poemão em oitava rima, cego, como Camões, a tudo que não fosse a grandiosidade da pompa e circunstância. Cego — mas de raiva — chamei de “Derrota de uma Viagem Feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817”. Usei a palavra “derrota” no sentido de rota marítima percorrida por um barco. De olhos abertos, o Sonso claudicante, sem a devida autorização, por força maior de meu falecimento, enxugou deturpando para “Derrota de uma Viagem ao Rio de Janeiro em 1817”. Contra os privilégios, deu igual tratamento distorcedor aos versos. (O contra-regra traz cebola e glicerina. Ele chora com a artificialidade piegas dos pré-românticos, criador de uma sensibilidade brasileira dentro da literatura capixaba que foi:)
Oh, Rio, vós, que algum dia,
Ouvistes meu terno canto,
Parai um pouco p’ra ouvires
O triste som de meu pranto.
— Sei. Naturalmente, este é seu poema “Pranto”. Mas e o “Derrota”?
Minhas palavras inauguram uma revolução no visual da baía. À força da mudez lacrimosa de Marcelino, suas musas se oferecem de montaria e nos levam ao ano da graça de 1817, mês de outubro. Sabendo que poemas não foram feitos para serem declamados por boca que não seja a vista, de seus olhos escorrem faixas em que letras contêm o som mudo das palavras. É, milagre, o Canto VI do “Derrota”:
Adeus, Vitória, digo então comigo,
Pátria ditosa, a mais feliz colina,
Goza amável, ah, sim, fica contigo
A encantadora mas cruel Francina: (3)
Tu sabes, não que o céu maior castigo,
Nem tormenta maior, mágoa mais fina,
Me podia causar, se não privando
De por pouco avistar seu gesto brando.
Trazida por mil das musas, surge uma nota de rodapé, de autoria do próprio Marcelino, que seria rejeitada pela revista Você: [A revista proíbe e condena o uso de notas de rodapé por ser de alto nível e contra desvios de coluna Prestes a doer.]
— (3) Uma das moças mais honestas, a quem por simpatia amei; mas não mereci dela o mais pequeno favor, e que foi aleivosamente infamada por línguas peçonhentas.”
Fora de si, boquiabertocaladamente, Marcelino pede as mais mais às musas espetaculosas que nos assessoram o dom da beleza aguçado pela morte de que o poeta ressuscitou, eternidade da arte. Aleatoriamente, metralhadoras giratórias alvas, elas disparam os Cantos XII e XVI:
XII
Qual o que raio viu, eu vacilante,
Turva-se o mar, desperto do tormento,
Eis sobranceiro a mim vejo um gigante,
Imenso, horrível, feio, e corpulento,
Parecendo, qual monstruoso Atlante,
Nos ombros sustentar o firmamento;
Era este porém árduo rochedo,
Que a linguagem vulgar chama — Penedo —.
Algumas lágrimas depois, os versos ainda se desenrolam:
XVI
Gela-se o sangue, e o pálido semblante
Inculca o susto, que sufoca o pejo;
Percebe o meu terror vivo estudante,
E grita: oh, lá, oh lá do Caranguejo…
Levanto os frouxos olhos, não distante,
Pernambucano vaso avisto, e vejo;
Me saúda de lá piloto ativo,
Correspondo, porém nem sei se vivo.
As musas têm seus encantos. Com um deles, voltamos a 1993, ao real e à verdade? Marcelino parece acordar — ou dormir, sonhar talvez o ser ou não — da bebedeira:
— Cheguei a puxar o saco de D. João VI, pai do Brasil português que eu combatia e me torturava. Fiz uma ode chamando o gordo comedor de galinhas — guardava coxas de “colegas” nos bolsos — de herói, de Enéias e de Ulisses. O Sonso Gáudio inventou, como justificativa, que os versos agradeciam o afastamento, a meu pedido, do governador Francisco Rubim (…)
— Fato que a boa História não registra!
— Não tenho nada a ver com isso! Não falei que a culpa é do Sonso?! Rubim só deixou o Espírito Santo dois anos depois, em 1819, por cima de sua carne seca: foi nomeado governador do Ceará. Não sei como vocês acreditaram. D. João VI nunca atenderia às queixas de um pobre padre-mestre roceiro contra um de seus homens de confiança, um capitão de mar-e-guerra da Armada Real! Nem demoraria dois anos — de 1817, em que escrevi o “Derrota”, a 1819 — para atender um pedido: a burocracia não era tão ruim naquele tempo! Nem, se tivesse me atendido, nomearia o Rubim para o honroso posto de governador do Ceará. Não tenho mais nada a declarar sobre isso. Vamos mudar de assunto. Se a vida é um palco, gosta de teatro? (Notei que você coloca alguns comentários entre parênteses, como em uma peça.)
— Dizem que sim. Mas você namorou com Melpômene antes de mim.
— Foi. Amo todas as musas com meu grande coração de vazio, mas Melpômene é a preferida entre as iguais. Ela e Calíope adoçam o sal da vida até mesmo para os mortos.
— Sem querer insistir insistindo, guardou alguma memória de Calíope que nunca mostrou ao mundo? O amor é uma forma de comungar almas de versos?
— Diversos memórias diversas conservo em conservas enlatadas pelo (e no) Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (Delirante.) Na lata 120, documento oito, jaz meu poema “Ermenoville ou o Túmulo de J.J. Rousseau”. Foi há muito tempo atrás, mas tenho dela uma “Memória sobre as vantagens do estabelecimento dos novos colonos estrangeiros na província do Espírito Santo” na lata 212, documento quatro, de 1825.
— Nunca mais falou com ela?
— Só nas 37 páginas da lata 6, documento onze. Vamos mudar de assunto? Teatro? Olha, aquela sessão de poema mudo foi coisa das musas. Fazem de tudo para me agradar.
— Mesmo?
— Eu também não falo nada ou porque não quero ser chato ou porque jamais devemos discordar das mulheres. Pelo menos enquanto estão presentes. Quero cair nas graças das musas. Acho o contrário: acho que a palavra devia ser escrita como se fala. Criei uma ortografia fonética antes de Qorpo Santo, nome que ele recebeu por motivo oposto a mim: devido ao tempo em que ele viveu “completamente separado do mundo das mulheres”. Em 1842, publiquei um livro dando lisõens (sic!) sufisientes (sic!!). (Delírio con fuoco) Chamei de Arte de Ler e de Escrever em Pouco Tempo a essa “Razão Filosófica da Verdadeira Ortografia, Desinfestada dos Prejuízos da Ortografia Barbaresca, ou por Outro Nome, Etimológica; que, como elementos do Sistema de Instrução Preparatória, Compôs e Oferece à Mocidade Brasileira Estudiosa. Seu patrício”…
— Quer dizer que o lance é escrever como falamos e não falar como escrevemos? Langue x parole?
— Por enquanto, o jogo está indefinido. Atuo nos dois times porque importa mais a competição do que a Vitória para que as pessoas tenham algo de fundamental a usar como remédio antitédio. Assim caminha a humanidade!… Por gostar do som da palavra, vamos virar o disco? Vamos mudar o tom de loucura para lucidez e de poesia para teatro?
— Nada contra nem a favor, muito pelo contrário…
— Isso! No entanto, não veja pedantismo onde existe apenas a sinceridade distante e indiferente dos mortos em prol da História. Que venham os touros das musas!
(Anjinhos barrocos caracterizados de touros, discutindo a sua sexualidade através de quadraturas de círculos, feitos marionetes das musas, entram em transporte e mudam o cenário do real. A passagem dos céus nos deposita entre os dias 22 e 31 de maio de 1816, em frente ao atual Palácio Anchieta, Vitória City. Nesse local, armado na praça dos antigos Colégio dos Jesuítas e Igreja de São Tiago (“hoje fundidos em um só Palácio Anchieta”, cantam os anjinhos), ergue-se o teatro improvisado que o povo capixaba se acostumou a aplaudir desde o quinhentismo dos inacianos, faixa temporal de seda esticada pelas musas, vendo-se à esquerda algumas que seguram o seu começo, no século XVI, e, à direita, outras que sustentam o seu fim, no século XIX. Marcelino e seus alunos de latim representam, em monótona cantilena, o Drama que serviria de mote ao seu pedido de aumento. E à briga com Francisco Rubim. Terminado o Ato inicial, os anjinhos contra-regras, entediados, mudam o cenário para 1821. Eu e Marcelino somos toda a platéia. Podemos sentir nosso próprio futuro se plasmando no ar. Eis a sinopse da cena:
Ato I — Revolucionário membro do grupo oposicionista dos exaltados, Marcelino participa dos protestos nacionalistas responsáveis pela revolta que levou D. Pedro I a abdicar, em abril de 1831.
Ato II — Sua presença, na insurreição popular de julho desse ano, leva Diogo Feijó a ordenar sua prisão a bordo da fragata Paraguaçu.
Ato III — Enquanto está detido, sobe ao palco, no Rio de Janeiro, a comédia em três atos A Rusga da Praia Grande, ou O Quixotismo do General das Massas, de autoria de Januário da Cunha Barbosa, aliado de Feijó. (Dentro da peça, passa-se a peça. Um real dentro do outro e o universo como a tela que Deus assiste de fora. Há muitos canais e programas nos universos a cabo disponíveis contra o tédio divino. Medalha de honra ao mérito, a trama se desenvolve em torno das carnes da agitada vida amorosa de Marcelino, que morava na Praia Grande, em Niterói.)
Ato IV — Encarcerado no Paraguaçu, Marcelino escreve como resposta a comédia política O Cônego e Inês, em que satiriza Januário Barbosa (o “cônego”), Feijó (chamado de “Jeifó”) e Evaristo da Veiga (“Eravisto”). A polícia naturalmente impede sua representação. (Um anjo crítico, encarregado de recolher pérolas de beleza para o Senhor, escreve do meu lado: “(…) O texto, em decassílabos, com rimas emparelhadas, de que achei por bem fazer conhecer só um fragmento, empreende uma engraçada crítica de costumes em que a história do Brasil é a pedra-de-toque impossível mas existente enquanto exercício de farsa ou de manifestações pagãs dionisíacas de loucura.”)
GRAND FINALE — Eu e Marcelino somos transportados ao meu esconderijo na Gruta da Onça, Morro do Vigia. Bebemos água em pó, que patenteei recentemente como máquina de criar poetas. Basta acrescentar água e o saquinho esterilizado de pó se enche de… — água! Marcelino bebe demais, fica chapado e pega minha guitarra Pérola Negra, escolhida por Chryso Rocha sua dileta para gravar “Geração Setenta” (Afonso Abreu — Mário Ruy — Oscar Gama Filho).
Os anjos vão embora, passear no bosque porque seu lobo evém.
Ele toca lundus e improvisa modinhas usando, em geral, brasileiríssimas trovas em que os personagens são seu alter-ego Marcino, Marílias, Análias e Francinas, moda árcade que os pré-românticos seguiram. A atmosfera nacional inclui fossa, pieguice, desespero, angústia, solidão, jogos amorosos burlescos (“Tu m’afagando entre os braços, / Eu t’estalando os dedinhos” — Lira), além da indispensável fantasia de suicídio ante os olhos traidores da amada — lupicínica vingança da dor-de-cotovelo —, flashes românticos em que a dor é uma equilibrista suspensa e esquartejada entre o grotesco, o patético, o trágico, o mórbido e o cômico.
Mostro meu disco. Surpreendido, pede que eu toque. Improviso uns acordes de blues. Súbito, paro: “Não toco nada, só componho.” Mostro a melodia que fiz para seu “Soneto”. É um samba. Sua emoção faz com que voltemos aos “bons tempos”, no passado. Era um samba. Chorou. Chorinho.
Chorou notas em forma de lágrimas negras de chorinho.
Chorou lágrimas negras em forma de notas de chorinho.
Chorou notas em forma de lágrimas negras de chorinho.
Dormir profundamente. Sonhar, talvez.
Aqui jazz.
[Transcrito da Revista Você, n° 14, de agosto de 1993.]
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)