Até os idos de 1940, os vanguardeiros, que bela juventude, quando se reportaram a Ilha, chamavam-na carinhosamente de Cidade Presépio. E Vitória, vista do continente, tinha mesmo uma romântica silhueta de cidade bucólica.
A mata, rematando os morros, emoldurava a cidade alta e a parte baixa espreguiçava-se, na seqüência de sobrados de dois ou três pavimentos, em amistosa intimidade de parentesco próximo.
O povo caminhava despreocupadamente nas ruas, os bondes cruzavam-se nos dois sentidos e os automóveis não atropelavam ninguém.
O trânsito só se avolumava ao cair da tarde quando as normalistas e os ginasianos deixavam as aulas e os servidores públicos encerravam o expediente.
Então o Café Globo, dos irmãos Trinchet, e o Bar Petrópolis, do lusitano Eusébio, se enchameavam de fregueses. Lá o café custava um tostão e a pinga se bebia temperada com mate queimado ou traçada com Cinzano.
O Eusébio, mais evoluído, novo na praça, oferecia chope bem gelado e, como tira-gosto, pitus a mil e duzentos a dúzia.
Aqui a preferência era dos jovens e se ouvia discos seletos de bonita música: La Comparcita, Romana, Mariu.
O Café Globo, mais discreto, era o preferido dos velhos. Na esquina da Farmácia Aguirre, chamada esquina do pecado, os desembargadores, discretamente, comiam amendoim torrado e molhavam, com seus humildes olhares, as moças bonitas solteironas. Às seis e meia todo o mundo ia embora jantar, e depois Cinema Glória.
No mar alguns botes remavam para Paul, e de quando em quando um navio, abotoado por saveiros se abastecia de toneladas de café, com grande alegria dos funcionários que sabiam que nesse mês as folhas seriam pagas.
Fora da política a vida corria mansa, tranquila.
A Vida Capixaba, do Manoel Pimenta, e a Canaan, do Carlos Madeira e do Adolfo Monjardim, relatavam os acontecimentos sociais e nelas a mocidade expandia sua vocação literária.
Firmaram-se, com crônica, poemas, versos e fantasias: Eugenio Sete, Salvador Thevenard, Paulo Freitas, Ruy Côrtes, Alvimar Silva, Almeida Cousin, Beresfor Moreira, Antônio Pinheiro, Celso Bonfim, Abílio de Carvalho, Arlete Cipreste… na culminância luziam Jair Tovar, Estelita Lins, Teixeira Leite, Ciro Vieira da Cunha, Virginia Tomanini, Saul de Navarro, Ernesto Guimarães.
Pontificaram nas escavações históricas e prosódicas Mário Freire e Elpídio Pimentel.
Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco ressuscitavam a riqueza de nosso folclore. No comentário jornalístico, José Sete e Garcia de Resende se defrontavam com o infatigável Mesquita Neto.
Queiroz do Valle, em seus Micrólogos, valorizava os capixabas e promovia os tímidos com aquela sua linguagem cristalina como as águas frescas das montanhas. Encarnando-se em Júlio Verne profetizava a realidade do progresso desfrutado hoje em nossa Capital.
A Ilha de Duarte de Lemos era nossa, dos capixabas ou dos velhos afeiçoados, os devotos de Nossa Senhora da Penha.
Prosperava suavemente. As mulheres ainda escondiam a anatomia dos quadris e os homens… usavam paletós. As freiras e os padres vestiam batinas. As ruas não engarrafavam e os automóveis não matavam ninguém.
Passaram-se os tempos. A Ilha progredia lenta e seguramente. A cidade estendia-se ligando novos núcleos dando-lhes feições de bairros autônomos: Jucutuquara, Ilha de Santa Maria, Gurigica, Maruipe, Praia Comprida, Santo Antônio, sempre modesta, se espichava para os mangues e subia para os morros alcançando Caratoíra.
As autoridades municipais sabiam que o centro urbano era limitado em área útil. Procurava-se fazer a cidade ganhar novos espaços. Carlos Lindenberg ousou, sim era ousar naquele tempo, unir Vitória a Vila Velha com ampla avenida apta a se povoar. Veio Jones Santos Neves e ganhou os alagados marinhos do Cine Glória à Bento Ferreira , enriquecendo a superfície da ilha. Completou a Avenida Vitória e rasgou, em alinhamento a via Fernando Ferrari de Goiabeiras até o Planalto de Carapina, numa antevisão de um polo da Grande Vitória, que a Vale do Rio Doce, com o porto de Tubarão tornaria realidade. Mas, os condutores, hiper estimaram a utilização do solo em altura, saturando as vias já estreitas, tornando-as intransitáveis e perigosas.
Não obstante o prestígio merecido dos últimos e atual governo, encarrearem dilúvios de cruzeiros, os técnicos, se embaraçam bisantinamente, em construir a segunda e terceira ponte, o terminal rodoviário e o centro de abastecimento, soluções salvadoras.
Vitória tornou-se a Portaria do Inferno para tormento de seu povo herdeiro de um futuro esperançoso.
[DERENZI, Luiz Serafim. Cidade presépio… portaria do inferno. In A Gazeta, 29/10/1976. Reprodução autorizada pela família Avancini Derenzi.]
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Luiz Serafim Derenzi nasceu em Vitória a 20/3/1898 e faleceu no Rio a 29/4/1977. Formado em Engenharia Civil, participou de muitos projetos importantes nessa área em nosso Estado e fora dele. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)