No capítulo anterior, nosso herói foi com tanta sede ao pote do velho Trianon que acabou se molhando. Ou melhor, se molhando no bom sentido, porque acabou assistindo a uma chuva inesquecível, ainda que tenha ido ver Bergman e viu Sven de tal.
Anos mais tarde ele está no Rio de Janeiro, fazendo um curso que não lhe dava folga. Dez horas de queimação de pestanas por dia, inclusive domingos. Folga? Aos sábados. Nesses dias, um programa infalível: a ida ao Hipódromo da Gávea para gastar ou ganhar alguns trocados, mas principalmente ver os cavalinhos correrem, um prazer recém-descoberto. Depois, cinema.
Era o tempo da “geração Paissandu”. Uma referência ao cine Paissandu, no Flamengo, próximo de onde ele morava. Perto do cinema também havia um bar onde a “geração” se reunia para conversar sobre os filmes. Como li mais tarde, desses grupos saíram importantes cineastas brasileiros. Mas, seguramente, havia também o “baixo clero” que, como sempre, procurava ultrapassar a barreira dos dois palmos adiante do nariz com a conhecida catapulta do fanatismo. Nessa parcela do grupo reinava a idolatria pelo diretor francês Jean-Luc Godard. Era fácil identificá-los. Ficavam falando “Godá”, “Godá”, olhando para um ponto do vazio talvez com a esperança de que o santo diretor fizesse uma aparição cinematográfica entre as palmeiras da rua Paissandu. Versão cinéfila do fundamentalismo de sempre. Não sei se, na época, tinha alguma coisa a dizer mas, se tivesse, também não a diria caso tal coisa pudesse significar um átomo de restrição ao guru máximo. Esperava voltar vivo para Vitória. Melhor deixá-los brincando com suas catapultas.
Para falar com franqueza, só me lembro mesmo de um filme de Godard, Acossado. Assisti a outros mas não tenho mais a menor ideia do que tratavam. Os enredos se desenvolviam sempre de maneira muito lenta e obscura. Talvez só pudessem ser compreendidos por escolhidos, excetuados naturalmente os fundamentalistas cujo negócio é sempre outro. Quanto a Acossado, ainda que, na época, não pudesse perceber toda a dimensão da mudança, havia indícios de que estavam ali muitos dos anúncios dos novos tempos, dos anos sessenta e de sua máquina de triturar a “ordem estabelecida”.
Mais tarde, percebi que o personagem de Jean-Paul Belmondo é descendente direto do Meursault de Camus. Isto é, personagens desconectados de seus meios sociais e dos mecanismos ideológicos que os sustentam. Mais ainda, personagens que rompem com uma visão cristã do mundo e não se apoiam em visão alternativa já que consideram a vida um absurdo. Tanto faz matar um homem, uma barata ou tomar um sorvete.
Como tenho o hábito de voltar de vez em quando ao velho Eça, dia desses estava relendo a página das Notas Contemporâneas chamada “No mesmo hotel”. Eça relata o assassinato de Canovas, presidente do Conselho Espanhol, por um sicário politizado. Chega a ser comovente a indignação de Eça, que, em 1897, escreve: “…o que permanecerá, dando sempre um arrepio novo, é a história tão simples e trágica daqueles cinco dias de Verão em que o assassino viveu, quietamente, e cortesmente no mesmo Hotel, com o homem que vinha assassinar! Não, nem na realidade ambiente, nem nas coisas criadas pela imaginação, existiu nunca episódio mais intensamente sinistro!”
Eça se indignava porque o assassino hospedou-se no mesmo hotel de Canovas para matá-lo friamente embora, por sua vez, tenha sido também assassinado no mesmo episódio. O atentado tinha raízes políticas.
Pobre Eça. Nos dias de hoje, enquanto escrevo estas notas, estão procurando um indivíduo que, nos EEUU, já matou nove pessoas sem qualquer razão aparente na escolha das vítimas. Mata por matar, dentro de uma atmosfera absurda, esvaziada de qualquer sentido, deixando O Estrangeiro de Camus no chinelo.
Há algum tempo quis assistir outra vez a Acossado de Godard. Aluguei o filme em uma locadora e fiquei pasmo. Onde estava a linha de ostensiva transgressão do personagem de Belmondo? Para padrões atuais, um filme normalíssimo, com episódios tangendo a banalidade. Pensei: o filme envelheceu? O mais provável é que tenhamos entrado na rota do absurdo como quem toma a sopa vespertina.
Muitos talvez não concordem com a afirmação anterior quanto ao fato de termos ainda uma sinalização cristã na civilização ocidental e que naturalmente vem sendo bombardeada por protótipos de Meursaults da oficina de Camus e personagens estilo Acossado e adjacências.
Antes que me venham com Inquisição, papa Alexandre VI e similares, devo dizer que estou tentando falar de outra coisa. Falo de uma das três principais visões ocidentais de mundo na atualidade: a visão cristã, a visão de conflito marxista e a visão individualista.
Quando me refiro a “visão cristã” não estou falando de engajamento confessional, o que, aliás, é da conta de cada um, mas de um fenômeno social, de algo que, desejável ou não, é um fato.
Algo incorporado à sociedade ocidental e que nem sempre é visível em muitos aspectos. Lembro, a propósito, de uma pesquisa feita numa universidade onde se perguntava aos estudantes a respeito do “justo preço”. Isto é, se eles consideravam isso importante na vida econômica moderna regida pelo mercado. A resposta foi afirmativa, isto é, o “justo preço” seria importante na formação dos preços. Ora, nada mais contraditório. Numa sociedade de mercado, com livre concorrência e ausência de agentes manipuladores, o preço é o preço de equilíbrio determinado pelas forças de oferta e procura. Contudo, a noção cristã de “justo” estava tão entranhada nos estudantes que não perceberam a contradição. Mas não é preciso ir longe. Estamos todos fartos de, por exemplo, ver na imprensa referências a um preço justo. Não nos damos conta que esta é uma visão econômica cristã, de fundo tomista, que não tem qualquer ligação com a ortodoxia da análise econômica moderna.
Não estou tão atualizado com a produção cinematográfica de hoje de modo a me permitir afirmações categóricas. Mas é evidente que o olho rútilo e rapinante tem brilhado mais que de costume. A caixa registradora se agiganta. Que ela sempre esteve presente em dimensões diversas no cinema não se discute. Os europeus, que tentaram ser mais consequentes, ou faliram ou não conseguiram quebrar a barreira de dinossauros e robocops. Aliás, o último filme europeu, italiano, vencedor de um Oscar, o tal A vida é bela, é uma capitulação grotesca aos padrões hollywoodianos no que têm de pior. Um grotesco que só encontra similar no comportamento basbaque do diretor do filme, durante a cerimônia de premiação do Oscar. Quem assistiu, viu. Os que não assistiram, me poupem de contar.
Então, ainda que não tente arriscar conceitos gerais sobre a atualidade cinematográfica, me permito dizer que o filme que ganhou o Oscar de 1997, Melhor é impossível, sinaliza novidades.
O personagem de Nicholson, abstraindo aspectos médicos, é um personagem à procura de si mesmo, de um caminho. No caso, especialmente, na busca do amor de uma mulher. Enfim, como já escrevi uma vez, responde ao personagem dos anos sessenta que, no amor, não basta um “vamos lá”. As coisas são muito mais complexas se se quer situá-las no nível do humano. O personagem está perdido mas procura ser conseqüente. Há um sentido que ele procura desesperadamente em cima de suas próprias limitações.
Creio que o ponto alto do filme é revelador do que estou procurando dizer. É o momento do diálogo no sofisticado bar em que os personagens de Nicholson e Helen vão jantar e onde a música ambiente é uma espécie de carícia a ouvidos bombardeados por percussões primevas. Mas há uma atmosfera tensa entre os dois. Ambos neuróticos mas profundamente vinculados a uma noção ética que os confronta em territórios estanques mas que querem, ansiosamente, se comunicar. Nicholson diz uma inconveniência, Helen diz que irá embora se ele não lhe fizer, imediatamente, um elogio. Nicholson fica aturdido. Consideremos que ele é um escritor. De livros populares, certo, mas com a maior facilidade juntaria um punhado de palavras vazias e altissonantes para atender ao pedido de Helen. Mas ele sabe que ela, muito perspicaz, não quer esse tipo de elogio cuja fatuidade pegará no ar. Quer, como disse, um elogio dito com intenção.
Nicholson quer achar palavras para atender ao pedido de Helen mas não as encontra. Passa a mão na cabeça, sabe que o momento é decisivo e finalmente diz “Você me fez querer ser uma pessoa melhor.” Suspense. Elogio aceito por Helen.
Nas cenas seguintes, Nicholson volta a dizer inconveniências, o conflito se restabelece, etc. Mas não vem ao caso agora. Fica como uma marca desse excelente filme a procura conseqüente de um relacionamento entre um homem e uma mulher e onde o absurdo está ausente. Por isso, ao menos nesse plano, vejo o filme como uma espécie de “ending” para os anos sessenta. Estamos em outra, parecem dizer os personagens de Melhor é impossível.
[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)