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Conan Doyle Jr.

Na Escola Agrotécnica, onde eu estudava, o professor Eustorgênio Schmidel lecionava inglês, geografia e história, e nos levava pra terras longínquas no espaço e no tempo.

No jornal semanal da sede municipal, ele publicou contos de ficção científica sob o pseudônimo de Conan Doyle Jr.

Às segundas, ele nos lia e comentava as estórias. Lembro-me de duas.

No primeiro conto os soviéticos, pouco antes do desmoronar seu império, mandam sósias de líderes ocidentais, perfeitamente adestrados, substituí-los, após sequestros. Nos Estados Unidos o substituto de Reagan logo aceita o “American way of life” e inicia o projeto guerra nas estrelas.

No outro conto, a Terra e nosso sistema solar nada mais são que um vídeo-game de uma civilização superior, Tipo III.

Envolvidos em efeitos luminosos especiais, temos a impressão de vivermos em espaço infinito, quando estamos, apenas, em grande cubo espelhado. Quando uma espécie — aconteceu com os dinossauros — descobre o embuste, é fulminada com meteoritos enviados do espaço externo. Nós, encerrados nesta espécie de mundo virtual, estamos, também, em vias de destruição.

Alguns alunos comentavam os textos, favoravelmente. Outros bocejavam. O Prof. Eustorgênio dizia:

— Um dia vou escrever o grande romance da ficção científica brasileira…

Lembro-me ainda que os meninos, quando pescavam pitus, no rio, ou roubavam jacas nos grandes pastos do norte, passando, na volta, à porta da modesta casa do professor, sempre entregavam à sua filha, uma garota feiosa e mirrada, algum presente.

Fiquei dez anos fora. Formei-me e passei a trabalhar no principal jornal da Capital. Um dia, voltei a C. de férias.

Ontem fui visitar o velho professor Schmidel, já aposentado, e segundo me disseram surdo e meio esclerosado.

Não me reconheceu mas quando falei em science-fiction deu um sorriso.

— E o romance, professor?

A filha, fiel guardiã, respondeu pressurosa:

— Já acabou. Fala na tribo perdida de Israel, cujos descendentes foram localizados na serra dos Aimorés, brenhas do Mucuri…

Alice, a moça (já não tão moça) foi buscar os originais. Eram quatro grossos cadernos escolares. Na capa, a nanquim, em belo ronde, Os herdeiros da Rainha do Sabá por Conan Doyle Jr.

O velho sorria e tartamudeou:

— A capa é desenho da minha menina…

A “menina”, uma quarentona, enrubesceu quando elogiei seus dotes caligráficos.

Comecei a folhear os cadernos, cheios de rabiscos e sinais ininteligíveis, parecia serviço de taquígrafo.

Abismado, disse, meio atoleimado:

— É, tem estilo…

A moça falou mais uma vez:

— Estamos tendo dificuldade em conseguir editor. Pelo que o pai conta há cenas belíssimas, como aquela em que Zumbi se lança ao precipício…

E me olhou, pedindo com os tristes olhos negros que eu não desfizesse o engano do velho pai.

Fiquei firme. Lembrei-me que o professor Schmidel estava, na literatura, repetindo, numa cidadezinha perdida no interior do Brasil, o músico “Gambara” ou o pintor de “uma obra-prima ignorada” de Balzac.

À saída, não sei se hipócrita ou bondosamente, felicitei, calorosamente, meu professor por haver, finalmente alcançado seu objetivo: escrever uma obra-prima da novelística nacional.

[Reprodução autorizada pelo autor.]

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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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