Se for possível proceder, num esforço de pretensão, a uma análise do pensamento jurídico de Renato Pacheco, conforme externado na sua produção como jurista, por certo se há de deparar com noções de humanismo jurídico pouco correntes na produção quase que estritamente técnica que nos rodeia. É que Renato Pacheco, o homem de múltiplos interesses, é um humanista, no sentido próprio do termo, que mais se aproxima, entre nós, do ideal renascentista de intelectual na sua forma de encarar o mundo. Sua atuação na área no direito se fez (e continua a se fazer) nas vertentes possíveis: a teórica, como investigador e docente, e a prática, como advogado e juiz de direito. Ainda hoje está em atividade, graças à sua vitalidade, o que permite a perpetuação de suas idéias e ideais nos incontáveis alunos e discípulos que já formou ao longo de quase sessenta anos no exercício da docência. Propomo-nos, aqui, a tal esforço de pretensão, com o risco inerente ao fato de se comentar o pensamento de um autor ainda atuante. De fato, um tal comentário só pode ser fruto da interpretação do comentarista que, se obviamente, pode não corresponder ao que outros possam concluir da mesma passagem, pode também não corresponder ao direcionamento que o pensamento vivo desse autor ainda atuante possa tomar a partir daí. Mas, a despeito de tudo, iniciaremos a busca de uma metodologia para esta tentativa de acompanhar o percurso do pensamento de Renato Pacheco no vasto campo do direito, pela menção ao texto Alguns Métodos e Técnicas na Pesquisa do Direito, de 1977, reportando-nos a outros, à medida que a exposição de suas idéias o exigir. Naquele ano de 1977, Renato Pacheco apresentava ao Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da Universidade Federal do Espírito Santo referido trabalho, sua tese de concurso de habilitação à livre docência na disciplina Introdução ao Estudo do Direito. Escolhia, assim, para lecionar, disciplina de formação geral, aquela que dá ao aluno recém-ingressado no curso “as bases teóricas necessárias, no campo das ciências sociais (conceitos e métodos) interligando a ciência do direito com as demais ciências do homem, principalmente com a história, a sociologia e a filosofia” (1977:3). A escolha de um tema epistemológico para desenvolver na forma de trabalho de admissão à cadeira demonstra sua preocupação com entender o “como fazer” — no caso, a forma pela qual se faz — a abordagem do seu objeto de estudo. Neste sentido, a elaboração da tese significou, no seu percurso de jurista, uma síntese dos resultados de sua investigação e a exposição do método utilizado no percorrer do caminho que escolheu para a vivência da experiência do fenômeno jurídico. De fato, longe da pobreza intelectual de certa espécie de “operadores do direito” (os sempre-assoberbados de trabalho), Renato Pacheco sempre perseguiu uma integração multidisciplinar fundada no seu onipresente humanismo: para ele a filosofia, a sociologia e a ciência do direito são embasamentos sem os quais “o exercício das funções forenses não pode alcançar um grau eficiente de adequação” (1977:1). Neste sentido o texto “Atitudes perante a lei, em uma sub-cultura brasileira“[ 1 ] demonstra sua preocupação com o conhecimento prático do meio social em que atuava como juiz de direito. Afinal, se para o investigador o fenômeno jurídico (seja em que acepção o termo seja tomado) é o objeto de estudo, para o operador (no caso, o magistrado) é instrumento de atuação, a ferramenta de que se utiliza para alcançar o fim a que visa a sua atuação profissional, que é a pacificação social. 1) Conceito e Valores A par da sua formação sociológica, inicia a exposição de seu sistema tentando situar o objeto de estudo nalgum lugar na dicotomia dado-constituído. Posicionando-se a respeito afirma, como Dabin[ 2 ] que “o direito pode ser encarado sob ambos os aspectos — em sua existência histórica e debaixo de sua essência” (1977:5). É essa “existência histórica”, no sentido de elaboração normativa que dá suporte à sobrevivência do grupo social, o objeto de sua cogitação nesta quadra. Ocupa-se, portanto, do direito “constituído”, justamente o resultado dessa elaboração. Esta questão foi enfrentada mais amiúde por ele em “Do Jusnaturalismo à morte do Direito“,[ 3 ] em que externa uma maior inclinação pessoal pela vertente empírica do estudo do direito, em detrimento daquela outra especulativa. É que, à partida, Pacheco desconfia da possibilidade de elaborar os conceitos de moral, bem e justiça com base no senso-comum, dado o seu relativismo[ 4 ] e a impossibilidade de se lhes precisar o sentido por meio da pesquisa científica. Assim, e como operador do direito que lidará diuturnamente com a indagação íntima a respeito dos conceitos acima, como historiador que apreende o — aparente — mecanismo intrínseco ao desenrolar dos fenômenos que se sucedem na marcha da civilização, resolve o problema considerando que a elaboração legislativa tende ao momento histórico do fim do direito. A imperfeição consistente na imprecisão de categorias fundamentais do jurídico nada mais seria, então, que uma etapa da elaboração — afinal racional — deste momento histórico em que a regulação social por meio do normativo não mais se faria necessária. Mas se então não haverá conflito, portanto não havendo necessidade de regulação normativa, não será porque os homens agirão de acordo com um mesmo padrão de comportamento, ou sentimento de bem ou de justiça, que lhes seria inato? Pacheco recorre, neste passo da elaboração de seu pensamento, à filosofia cristã como negativa ideal do direito, na forma como o propusera RadbruchRadbruch[ 5 ].[ 6 ] O fato é que, sem embargo, não é este o momento presente (que para Pacheco, aliás, não chegará[ 7 ]). E assim, o direito é a mais eficaz ferramenta de regulação social, ao proporcionar um meio eficiente de otimização das relações entre indivíduos e grupos, e de todos estes entre si. Considera premente, no exercício da investigação, a problemática da identificação, pelo investigador, dos valores envolvidos, o que pode determinar “se o problema é relevante no plano acadêmico ou público” (1977:07). Da mesma forma, ao transitar para o nível que mais atrás foi chamado prático, aquele que diz respeito à aplicação do direito, a problemática dos valores envolvidos é de fundamental importância, embora desta feita sob um significado totalmente diferente. Neste outro nível não se poderia Pacheco alinhar senão entre aqueles que defendem que o método lógico representa “papel secundário e subordinado na aplicação do direito”, a quem interessam decisões “justas e socialmente aceitáveis”, em oposição àqueles que acham que o direito é “ciência eminentemente lógica” (1977:06). Logo, é neste nível que pode resolver a aparente contradição entre seu desapego, neste particular, à especulação pura e simples e a necessidade de se alcançarem, por meio do direito, aqueles valores socialmente “desejáveis”. É assim que, fazendo suas as palavras de Aftalion,[ 8 ] considera que “o direito não tem a finalidade exclusiva de realizar a coexistência de realidades individuais, mas sim a de alcançar a coexistência e harmonia do bem de cada um com o bem de todos” (1977:07). Desta forma consegue parâmetro afinal não subjetivo para a apreensão do significado de “bem” ou de “justo” (o que deduz da consideração da conseqüência de se terem atingido aqueles valores): a pacificação social, mensurável, em última análise, pela apuração do grau de tensão social interna ao grupo (p. ex., na quantidade de crimes ou de ações judiciais de natureza cível ou de família). Quanto menor o grau de tensão social mais se pode dizer que aqueles valores — tenham, afinal, a definição que possam ter — são contemplados pela ordem jurídica vigente. Pacheco cuida, então, de se debruçar sobre a investigação dos níveis de tensão social na comunidade em que atua, por exemplo, nos textos “Criminalidade Mateense em fins do século XIX“,[ 9 ] e “Criminalidade Colatinense no Período 1960/1970“,[ 10 ] em que faz um levantamento das taxas de criminalidade em determinados momentos importantes da evolução sócio-econômica das comunidades analisadas: São Mateus, “da época de fastígio comunitário para o subseqüente de estagnação” e Colatina “na década em que a estagnação principia“.[ 11 ] Mas o crime, do ponto de vista da sociologia criminal, é um padrão cultural, e Pacheco tem a sensibilidade de perceber que “padrões divergentes” de cultura (divergentes com relação a uma cultura dominante), podem condicionar a prática de delitos que, no interior daquele padrão vigente no âmbito da cultura divergente, não seriam tidos como tal. É assim que se ocupa de investigar os padrões de cultura vigentes no seio de uma “subcultura brasileira”, como chamou os grupos de “imigrantes teutos, que se fixaram, em meados do século passado, nas montanhas do Espírito Santo”, no já referido “Atitudes perante a lei, numa sub-cultura brasileira“,[ 12 ] texto que serviu de preparação a “Assimilação de Alemães no Espírito Santo, Brasil“,[ 13 ] e que analisei mais detidamente em “Dois Estudos de Sociologia Jurídica no Espírito Santo e sua Atualidade“.[ 14 ] 2. Gênese Social e Interrelações do Direito Está assente que para Pacheco o direito é algo constituído, cuja “existência histórica” é resultado de elaboração cultural. Pode-se voltar um pouco atrás na construção que vem sendo feita para tentar estabelecer uma base para as afirmações acima. Em “Gênese Social do Direito“,[ 15 ] move-se ele pela seara da teoria antropológica da cultura para explicar a gênese do direito como manifestação cultural de um grupo humano. No referido texto, parte da premissa irrefutável de que o direito constitui um subsistema dentro de um sistema sócio-cultural. Atento às condicionantes sócio-culturais de uma comunidade específica, derivadas, também, de condicionamentos ligados, em última análise, ao meio físico que habita,[ 16 ] conclui que a importância do direito é introduzir, no padrão de comportamento humano, uma dimensão de previsibilidade, na medida que dá “normas uniformes, maneiras uniformes de julgamento e sanções iguais para as violações”. O que permite, na prática, a adoção de um instrumental recheado de paradigmas capaz de permitir a atividade de intervenção (visando a eventual) controle — no sentido, muito mais, para ele, de regulação — social. A adoção de estratégias que permitam essa regulação social se deve à necessidade de integrar as diversas classes em que se estratifica o grupo social, aglomerados que, se legalmente são abertos, na prática são socialmente semi-fechados. Assim, os grupos de maior poder de pressão ou de mobilização são capazes de introduzir no sistema normas que consagram valores que lhes são caros, em detrimento de outros valores, oriundos de outras classes não tão eficazes. Este estado de coisas é, na teoria, desejável: a forma democrática de governo é a que contempla a maioria, e a maioria dita as leis.[ 17 ] No entanto, a situação contemporânea, de cada vez maior estratificação econômica, leva, na prática, a uma perversão do sistema, de tal maneira que os meios de comunicação de massa difundem valores que são caros não a uma maioria numérica (sendo ainda um tal critério de democracia discutível), mas a uma classe privilegiada, na medida que se torna detentora dos meios de divulgação em massa de suas próprias idéias. A noção de maioria é, assim, ampliada, abarcando, também, aqueles persuadidos pela propaganda da classe que domina os meios de divulgação de idéias.[ 18 ] Obtida, desta maneira, a maioria, resta a forma de se regular o seu exercício. Em “Liberalismo e Democracia“[ 19 ] Pacheco lembra que “o respeito à vontade da maioria deve conter em si os mecanismos para que falem” os não contemplados por ela.[ 20 ] Neste sentido, sim, o ordenamento jurídico “aparece organizado para exercer um controle social preventivo e repressivo destinado a garantir a ordem, o equilíbrio e a manutenção da correspondente estrutura social“.[ 21 ] Se não por meio do direito positivo (na medida que este vem de espelhar os valores vigentes nas classes mais eficazes e portanto mais aptas a traduzir esses valores em normas obrigatórias de conduta — “o direito objetivo é fruto do sistema de poder vigente“[ 22 ]) ao menos através dos meios disponibilizados pelo sistema, v.g., a atuação dos operadores do direito. Este tema é investigado, dentre outros temas que lhe são próprios a este ciência, no âmbito da Sociologia Jurídica.[ 23 ] 3. O Controle Social Em “Controle Social Reexaminado” Pacheco re-analisa a teoria clássica do controle social e constata que novas variáveis devem ser inseridas na sua concepção.[ 24 ] Da mesma forma considera a possibilidade de inserção, na investigação deste ponto, de caminhos analíticos que permitam examinar a necessidade de descriminação de alguns delitos e também as taxas de mudança social que atropelam os juristas e sociólogos pela velocidade com que acontecem modernamente. Por outro lado, entender essa mudança social não prescinde do conhecimento da evolução histórica das instituições: “Quereis ser juízes, e mais que isto, juristas, interessados na ciência da direção da sociedade, no correto legislar das relações jurídicas, subordinando-vos ao supremo ideal de justiça? Estudai, diariamente, a ciência histórica.“[ 25 ] Ocupou-se, mesmo, de temas sociológicos específicos, considerados em sua inter-relação com a ordem jurídica: sendo para ele a família a instituição social que, pelo controle que exerce, mais influencia a formação de valores posteriormente traduzidos em normas jurídicas, aprofunda-se no seu exame. Em “Alguns Aspectos Legais do Casamento no Brasil“[ 26 ] investiga o ato jurídico que dá origem à instituição familiar, sob o aspecto normativo no direito brasileiro contemporâneo, tanto no que diz respeito à sua constituição quanto à sua dissolução. Ocupando-se, de um modo mais geral, dos aspectos sociológicos do tema, em “O Direito em relação a outros subsistemas Sociais“[ 27 ] acusa uma tendência contemporânea à desorganização da instituição, como conseqüência funesta da diuturna implantação dessa alta taxa de mudança social que o intriga e inquieta e parece ser o móvel de sua atividade investigativa em geral. Tanto que não deixa de acusar seu interesse pelo aspecto legal das conseqüências dessa desorganização, comentando a obra Divórcio à Brasileira, de Saulo Ramos,[ 28 ] à altura recém-saída do prelo. Por outro lado, dentro do âmbito da temática da ciência sócio-jurídica, ocupa-se também, sempre, do papel do juiz como operador do direito e interveniente direto na realidade social, capaz de influenciá-la através da sua atuação. 3.1. O papel do juiz A tal acelerada taxa de mudança social já o ocupava em suas cogitações quando ator interveniente, de fato, na prática das relações sociais, como juiz de direito na ativa. Em “Juiz e Mudança Social“[ 29 ] Pacheco vem pôr a relevo o seu papel, o papel do juiz, na integração do direito. É que, no atual estado de coisas, consideradas as taxas em que se processa a mudança social, o direito positivo mostra-se inadequado na sua função de regulação, máxime no Brasil, onde essa mudança social se verifica em taxas altamente desiguais entre os setores rural e urbano, ou entre as diversas regiões do país. Dadas as posições doutrinárias do papel do juiz no desempenho de sua função judicante, Pacheco refuta a baliza imposta por Montesquieu, do juiz que se limita a ser repetidor das palavras da lei, para posicionar-se também contra o papel pretoriano extremado proposto por algumas tendências de direito livre. Para ele, o juiz deve estar atento à mudança social, de que é ator e partícipe, para ser capaz de “atualizar” a vontade do legislador, dado o descompasso entre a realidade social da época da codificação e da aplicação da norma codificada. Este descompasso é fato, e a observação sociológica torna-se, assim, parte integrante da ação judicante. Para isto, o juiz deve ter independência para poder proceder a essa operação de adaptação que chamei acima “atualização”, mas, em contrapartida, deve ter responsabilidade, para que sua sentença possa ser aceitável como ato de autoridade que é. Para essa aceitação, tanto quanto possível deverá o ato espelhar a realidade da vida das pessoas no âmbito comunitário no qual ela é prolatada e haverá de ser cumprida. Prolatada por um ator, o juiz, que, assim agindo, atua como um “sociólogo em ação ou pensador social que é”. Fica clara a sua concepção do juiz como elemento integrado na vida social da comunidade onde exerce sua função, do juiz de direito participante, em contraposição ao juiz dogmático, que esgota sua ação na elaboração mental, circunscrevendo-se aos limites de seu gabinete. O conhecimento da realidade social em que vive e atua, repita-se, deve ser condicionante de sua elaboração intelectual espelhada na sentença, não se desvinculando — antes pelo contrário constituindo, mesmo, parte integrante — de sua atuação judicante. 3.2. A Função de Juiz Em forma de apêndice registre-se que a sua necessidade pessoal de atuação prática nas áreas de que se ocupa como investigador e pensador do direito fizeram-no pensar a magistratura brasileira em geral, e a do Espírito Santo em particular, consideradas como classe e como órgãos do Poder Judiciário, cuja autonomia funcional defendia e forma de controle propunha, por ocasião da elaboração da nova carta constitucional.[ 30 ] Da criação da Associação dos Magistrados do Espírito Santo, em 1966,[ 31 ] à proposta de criação de uma Escola Nacional da Magistratura, quando da realização do primeiro Congresso Nacional de Magistrados, em 1970, em Vitória; do exame da forma de percepção que tem a sociedade em geral da atuação do juiz[ 32 ] à preocupação com o modo ético de se conduzir o profissional na prática cotidiana do foro, que examinou em “Deontologia Forense“[ 33 ] propondo a introdução da discussão ética nas escolas nacionais da magistratura), Pacheco sempre teve em conta, na sua cogitação, a função de juiz de direito, modo de atuação eficaz dessa sociologia ativa que preconiza e com cuja preocupação permeia seus escritos. 4. Direito, Igualdade e Acesso à Justiça O exame dessa função sociológica do operador do direito como tal tem um outro ângulo de visão a ser considerado, que é o do acesso do indivíduo à organização estatal onde, afinal, se situa aquele. O indivíduo recorre ao Estado-juiz em busca de justiça, e fazer justiça pode ser definido, também, como a atividade que visa à distribuição equitativa de direitos entre os indivíduos. Pacheco sabe que a igualdade de todos perante a lei é utópica, porque, à partida, depende de características naturalmente discrepantes entre os homens. Obviamente, é objetivo a ser alcançado pela ação do Estado organizado, que atua para equacionar e administrar as tensões resultantes dessa desigualdade real. Sem o que, conclui em “Ideal de Igualdade“,[ 34 ] “as tensões acumuladas hão de explodir, um dia, em detrimento de todos”. A atuação do Estado organizado neste campo dá-se por duas formas diferentes de intervenção, a legislativa e a judiciária. O princípio da igualdade é dirigido igualmente a legisladores e julgadores e está, por isto mesmo, adstrito, no Estado moderno, ao princípio da legalidade. Só que as leis que formam o sistema são imperfeitas, dada a impossibilidade de se evitar certa dose de arbítrio nas legislações, “que acabam sancionando as desigualdades naturais“.[ 35 ] Estas desigualdades contempladas na lei espelham, na verdade, aquelas desigualdades entre grupos sociais dentro de uma mesma comunidade, a que nos referimos noutro ponto deste texto. Assim, o estabelecimento do princípio da igualdade teria, também, uma função prática, a de, pela sua aplicação institucionalizada, permitir administrar o nível de tensão social, circunscrevendo-a ao limite do suportável pelo grupo. Esta tensão social é inegável e é decorrência da própria natureza humana, do fato de que o indivíduo é dotado indistintamente do sentimento de paixão tanto pelos privilégios quanto pela igualdade.[ 36 ] Se a legislação acaba por contemplar essas desigualdades, como decorrência até certo ponto inevitável do jogo democrático referido mais acima, ao julgador é que cabe, pela atividade de aplicação da lei ao caso concreto, a função de pacificação social pela administração das tensões. Atento a isto e sempre ao corrente das idéias contemporâneas é que propõe, no referido “Justiça para Todos“,[ 37 ] algumas idéias para permitir um maior acesso da população à função judiciária estatal. Ainda quanto ao aperfeiçoamento da administração da justiça, propõe solução alternativa em “Do Juízo Arbitral: Meio de agilização do processo Civil“,[ 38 ] sugerindo o uso de arbitragem como alternativa à decantada morosidade do aparelho da justiça. E justamente por atribuir à atividade institucionalizada de prestação de justiça tão relevante papel na manutenção da organização estatal se preocupa com a maior eficiência nessa prestação. Repugna-lhe, à partida, a ideia de erro judiciário, que abordou no estudo de dois casos ocorridos no Espírito Santo: 1) o do agricultor Pedro Leppaus, ex-meeiro de vítima de homicídio ocorrido em 1954, a ele atribuído injustamente, que Pacheco abordou em “Pedro Leppaus: erro judiciário contado ao povo“[ 39 ] e 2) a do pretenso assassinato de Pedro Bertholi, em Anchieta, desaparecido da cidade em 1901 e que reapareceu vivo, em 1908, determinando a revisão da pena dos condenados.[ 40 ] Atraem-lhe, ao contrário, as idéias tendentes a possibilitar a otimização da prestação do serviço. Quando ainda incipiente a utilização em geral da informática, propôs seu uso como método de estudo do direito, pela utilização da lógica boleana na atividade de predição de modelos comportamentais, notadamente no referente a contratos e comportamentos criminógenos (1997:15) e no estudo da evolução das instituições jurídicas no tempo, à moda de vários estudiosos nos campos da Sociologia, da Jurisprudência, da Antropologia e da História do Direito. Também no campo prático propunha a utilização da informática como ferramenta auxiliar do operador do direito, em “Direito e Cibernética“,[ 41 ] examinando, em “O Tribunal de Justiça do Espírito Santo e a informática“,[ 42 ] os passos de sua implantação na Corte de justiça estadual, desde 1982. 2) Humanismo e Direito Novos métodos para estudar o mesmo fenômeno jurídico, cujo embrião vem desde a mais simples forma de sociedade. Por exemplo, a predição de modelos comportamentais das relações humanas pela utilização da lógica cibernética, ainda hoje um campo de exploração avançada, reservado aos exploradores das fronteiras entre o ordinário e o — ainda — somente possível. O direito em sua função utilitária, o sistema jurídico como instrumento de regulamentação da vida do homem em sociedade e a ciência que se ocupa desse estudo, ainda a ser aperfeiçoada na definição de seu objeto e metodologia. Métodos e técnicas para apreender o significado intrínseco das leis que regem a vida do homem, condenado a viver em sociedade, é o que interessa a Renato Pacheco, não fora ele mesmo o humanista a que nos referimos. Sua concepção de direito como produto de elaboração da cultura permite-lhe o transitar entre os múltiplos domínios da produção intelectual a que se dedica como o homem de múltiplos interesses que o nomináramos já. Porque, ele mesmo um fazedor do produto cultural, ao produzir está, de permeio, empenhado em entender, em organizar, em regular, em aperfeiçoar para otimizar — tudo do papel que, desde que começou a produzir cultura, seja em que forma for, tomou a si.
Referências
Aftalion, Enrique. Crítica del saber de los juristas. La Plata: [s.n.], 1951.
Dabin, J. Teoria General del Derecho. Madrid: [s.n.], 1955.
Losada, Alfredo. Sociologia Del Derecho. Buenos Aires: [s.n.], 1975.
Montesquieu. O Espírito das Leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Neves, Getulio Marcos Pereira. Dois Estudos de Sociologia Jurídica no Espírito Santo e sua atualidade. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, Vitória, n.° 55, p. 175/183, 2001.
Radbruch, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado, 1997.
Textos jurídicos de autoria de Renato Pacheco utilizados
Obs.
a) os locais e datas de publicação constam nas notas de rodapé no corpo do texto;
b) no caso de textos publicados em mais de um local, constará a primeira data de publicação.
“Alguns aspectos legais do casamento no Brasil”
“Criminalidade Mateense em fins do século XIX”
“Atitudes perante a lei, em uma subcultura brasileira”
“Juiz e Mudança Social”
“O Brasil e a futura Confederação do Mundo”
“Funções dos Partidos Políticos nos Estados Democráticos”
“Partidos Políticos — seu estudo, na América Latina”
“Um erro judiciário”
“Aos Juízes do Espírito Santo”
“Criminalidade Colatinense no período 1960/1970”
“Direito e História”
“Alguns Métodos e Técnicas, na pesquisa do Direito”
“Divórcio à brasileira?”
“A Morte do Direito?”
“Liberalismo e Democracia”
“Direito e Cibernética”
“O Juiz em alguns romances brasileiros”
“Gênese social do Direito”
“O Direito em relação a outros subsistemas sociais”
“Pedro Leppaus: erro judiciário contado ao povo”
“Ideal de Igualdade”
“Quem tem medo do Conselhão?”
“Controle social reexaminado”
“Do juízo arbitral: meio de agilização do processo civil”
“Do jusnaturalismo à morte do direito”
“Deontologia Forense”
“Justiça para todos”
Outros textos jurídicos ou referentes a assuntos jurídicos de autoria de Renato Pacheco não utilizados
“Questões de Pessoal”
“Graça Aranha no Espírito Santo”
“Sobre a pena de morte”
“Problemas do Menor Abandonado”
“A Justiça contra Guilhermina Lübke”
“A crise do mandado de segurança”
“O centenário dos Estudos de Direito, de Tobias Barreto”
“Da falsidade em matéria de prova”
“Paz e guerra: Problema maior do Direito Internacional Público”
“Os Juízes Conservadores da Nação Inglesa”
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NOTAS
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Getulio Marcos Pereira Neves é 3° Vice-Presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo.