CONVERSÃO DO ANJO
No ar, aroma de De Luxe, como de quem recém-saído do banho.
À meia-luz, exigência:
— Primeiro as meias, devagarinho. Não há pressa.
Antes, jurando inocência, que “não era disso”; depois, despiu os pudores e, pouco a pouco, as partes mais ínfimas.
Carinhos mil no pescoço.
— Coço mais, meu anjo?
Descendo, meticuloso, aos pés.
— Coço mais, meu anjo?
De novo, no pescoço. E ao pé do ouvido:
— Coço mais, meu anjo?
Olhou, tímida, e fez “não” com a cabeça.
— De quem é isso, hem?
Mão apalpando o seio esquerdo.
— Seu coração bate.
Corridinha à porta do quarto. Preocupação rápida em vedar orifício da fechadura.
— Ninguém mais. Pronto.
Risinho meio cúmplice, a mão aliciante, posta no fogo. Em teia de aranha, bem na mosca.
— Olha que isto não é público… — reclame em falso tom pudico. E a fuga, para o meio dos lençóis.
Testa reluzente de suor.
— Dá cá o pé, minha lourinha.
O animal ainda não doméstico.
— Lúcia, vem, Lúcia.
Voz em tom mais ameno.
— Dá um beijinho no papai aqui.
O olhar estudantil e desatento.
— Dá, meu bichinho de pelúcia.
Alucinado quase, ao pé da cama. Arfando, o salto em preparo.
Armadilhando a presa. Ao alcance agora.
Lance único, Lúcia imposta em pêlo, sob domínio. Carnudo o corpo, despido.
— Eta, Lúcia boa!
Trêmulas, em luvas de pelica, mãos descrevendo a anatomia. Perito no assunto. Cioso de tudo.
Punha Lúcia quadrúpede. Selvagina nunca vista.
— Minha nossa!
A ladainha de sempre.
— Santa Virgem!
— Quê???
— Nada, nada. Olha o tubarão.
Rindo, às gargalhadas, semilouca.
— Sua barba…
Lucinha já de pé, soluçando, já ré arrependida.
— Ora, ora!
Luciferino brilho nos olhos, lúcido então.
— Vem, bonequinha de louça.
Promessa de nada fazer e outras juras.
— Prometo.
Deitado, citando trechos poéticos. De memória, ou inventados.
— Ó menina dos meus olhos, nina-me, nina-me…
Lúcia bebendo do vinho. “In vino veritas”.
As ondas indo e vindo.
— E teu perfil é de estátua grega.
Lucinha embriagada com o álcool das palavras.
— Diz mais.
A cabeça nas nuvens, navegando.
Ele singrando as enseadas dela.
Salva do afagamento, respiração boca a boca.
Línguas funcionando, a traduzir anseios.
— Bela Babel… — exclame entre confusão de línguas.
Subindo, ambos, o alto da torre. Subindo, aos céus.
Ela toda mordidinha. Espora em potra selvagem, pondo ele.
— Malvado.
Só, domava-a, corcel fogoso.
Logo morria de regozijo.
— Ai, minha gostosa — em fogo, ressuscitando do inferno.
— Meu paraíso.
— Meu demônio.
Ela, toda gozosa, ainda.
— Lucinha do coração.
— Lucinha de minha vida.
Ai, sempre acesa a chama.
Lucinha disto. Lucinha daquilo.
Lucinha cá.
[p. 26-8]
* * * * *
DE CODIFICAÇÕES
“Deixai simplesmente que a vossa palavra Sim signifique sim, e o vosso Não, não, pois tudo o que for além disso é do iníquo.” Mateus, V, 37.
— Alô?… É da residência do lingüista? Alô?…
— Sim! O senhor reparou quando disse alô? Um alô é não mais do que o meu sim inicial. Ele jamais constata alguma coisa; ele responde, chama, compromete. Preocupa-se em testar contato, ou interessa-se no prolongamento da comunicação, ou impede que seja interrompida. Não há nele objetivos informativos. Ele tem uma função centrada no canal, que, neste caso, são os fios telefônicos. Em lingüística, diz-se que ele tem uma função fática. Vide Jakobson.
— Obrigado, professor. O senhor é mesmo um gênio. Mas nós gostaríamos…
— Outra coisa. Esse nós, que o senhor disse, ou é plural majestático ou o senhor incluirá na frase, evidentemente, um aposto, que me esclarecerá esse nós.
— É que nós, jornalistas, enquanto…
— Eu não disse? Disse.
— Exato. Eu queria saber do senhor…
— Você queria, e não quer mais? Queria é imperfeito. O senhor queria. E continua querendo, no presente? Ou não quer mais? Percebeu a alteração do sentido temporal?
— Percebi, professor…
— Mas eu, idem, percebi o espírito de sua frase. O seu queria, na verdade, é o imperfeito de cortesia, de que assim nos fala Spitzer: a transformação de uma ação presente em uma ação passada retira o que ela pode ter de brusco. O senhor, o falante, por respeito a minha pessoa, o interlocutor, quis amenizar o tom impositivo que há no verbo querer, quando no presente do indicativo. Correto?
— Muito correto, professor. O senhor é mesmo um grande. Mas o senhor poderia escrever um artigo sobre linguagem para a nossa revista?
— Você me indaga se sou capaz, coisa duvidosa, ou seu eu aceitaria escrever um ensaio? Nesta segunda hipótese, seria um pedido ou um convite. Uma eficiente interpretação vai depender da entonação, da nossa relação nas duas extremidades da linha, de muitos outros dados, de um contexto, situacional, que não é imediatamente lingüístico. O senhor mesmo, que já foi meu aluno em faculdade, estudou comigo sobre esse assunto. Ficou claro?
— Sim, professor, Claro.
— Dito isso, na primeira hipótese (você é capaz de…), a indagação remete-nos a uma resposta que alguns estudiosos diriam confirmativa. Meu sim equivaleria a: sou capaz. Assim, eu pretenderia dizer o que é, definir, descrever, constatar. Entendido?
— Entendido, professor. É muito interessante. Mas…
— Mas se a pergunta equivalesse ou tivesse o efeito de um convite, meu sim não constataria nada, ele faria alguma coisa, ele me comprometeria. Minha promessa provocaria um acontecimento que não tinha nenhuma chance de aparecer, assim como não teria nenhum sentido, antes de meu sim. Este, sim, não tem mais valor confirmativo; é, essencialmente, performativo, no sentido de: eu afirmo, eu digo que, eu acredito que, eu penso que sou…
— Como o senhor mesmo disse, um sim em si mesmo equivale a um alô, porque jamais constata coisa alguma. É vazio de significado, embora contenha significante. Um sim confirmativo.
— Alô! Muito cuidado com a terminologia. A distinção entre o confirmativo e o performativo continua sendo resumida, desobrando-se em refinamentos que não cessam de agudizar sua dificuldade. Quando o senhor afirma que o sim é vazio de significado, embora contendo significante, pode (sic) estar afirmando uma falácia. Essa assertiva, lato sensu, é enganosa. Ora, sabe-se que é arbitrário o laço unificador do significado ao significante. E entende-se por signo ao total resultante da associação desses dois elementos. Então, concluo, apud Lévy-Strauss, que o signo lingüístico é arbitrário a priori, mas que deixa de sê-lo a posteriori. O senhor sabia?
— Confesso que não sabia, professor.
— Então fique sabendo que no meu próximo livro esse será um assunto exaustivamente questionado, verbum ad verbum. Apenas uma parte dos signos é absolutamente arbitrária. O signo, enquanto unidade constitutiva da língua, une, não uma coisa ao nome, e sim um conceito a uma imagem acústica. — Alô? O senhor poderia exemplificar no caso do sim que comentávamos?
— Pois não. O senhor repare que, quando digo pois não, eu, na verdade, pretendo e quero e digo sim, eu posso.
— Alô, professor, mas o senhor não disse sim, eu posso. O senhor disse pois não. Há, pelo menos, uma sensível diferença de significante, embora o significado…
— Pois sim. Eu já explico. O senhor observe que quando eu enuncio pois sim, eu pretendo exprimir algo que manifeste minha indisposição, uma negação, um não.
— Sim, professor, sim. Eu admiro sua agilidade intelectual. Mas naquele caso do sim o senhor ainda não me esclareceu.
— A fim de melhor compreensão didática, convém remontar aos tópicos básicos, rever conceitos fundamentais, citar considerações de outros igualmente estudiosos. Um leigo jamais deveria entrar, ex-abrupto, neste assunto. Mas o senhor já tem um bom embasamento teórico, de tal forma que começo aqui mesmo.
— Alô, mestre? Na verdade, eu prefiro Ter o prazer de ler no seu próximo livro sobre este importante tema. Eu sei que o senhor é muito aprofundado. Agora, eu queria e continuo querendo e quero saber, também para a nossa revista: por que o seu extremo interesse para com a linguagem?
— Se o senhor me pergunta linguagem no sentido estrito de “faculdade que têm os homens de se intercomunicarem através de signos orais”, como quer Saussure, eu respondo: “Je……………………………………………..”, como escreveu Barthes, in Le plaisir du texte, Éditions du Seuil. Mas já traduzo: “Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz”. Aliás, a linguagem é algo mítico e místico. Os livros sagrados têm muitos exemplos. A Bíblia revela isso. Vide Evangelho de João: “No princípio era o Verbo.” Vide torre de Babel. Vide o “sim, sim” e o “não, não”.
— O senhor me faz lembrar Brecht e suas duas óperas para a escola: “Aquele que diz sim e aquele que diz não…”
— Sim, porém não. Quero dizer: faço lembrar porém não quero. Eu não suportaria e não suporto alguém que faça arte com fins didáticos. Há na comunicação, lato sensu, profundas implicações ideológicas. A linguagem é instrumento sine qua non de manipulação do poder. Daí eu não admitir alguém didatizar (sic) através da arte. A arte é terreno do lúdico.
— Professor, a alienação através da linguagem é um assunto que o senhor deveria, exempli gratia, explorar em seus estudos, e…
— Não, porém, sim. Que dever tenho eu para com esse assunto? Ninguém, nenhuma autoridade, nenhum poder, ex lege, me obrigará a fazê-lo. Não devo, porém, posso. Sim, eu posso. Eu tenho poder para tal. Eu tenho todo o direito. Meu curriculum vitae é dos maiores. Possuo em várias universidades o título de doutor honoris causa. Alô? O senhor sabia? Alô? O senhor não me ouve bem?
— Alô, não, doutor. Quero dizer: sim, eu sabia. Eu quis dizer: não o ouço mal; eu o ouço bem, sim. A propósito, a sua pronúncia de latim continua sui-generis. Mas o senhor seria capaz de escrever mesmo o ensaio para a nossa revista?
— Já que o senhor entrou no jogo, eu poderia responder: sim, porém não (sim, sou capaz, porém não aceito escrever o ensaio). Ou ainda sim, sim (sim, eu sou capaz e aceito, sim, escrever o ensaio). Ou então não, não (não, não sou capaz, e não aceito escrever o ensaio). Ou por outra: não, porém sim (não, não sou capaz, porém aceito, sim, escrever o ensaio).
— Alô? Enfim, o senhor poderá, ou não, escrever o ensaio para a revista?
— Meu caro ex-aluno, você me força a parecer pedante. Repare que você me pergunta: o senhor poderá, ou não? Se eu puder, a resposta será um sim; caso constrário, um não. Então, basta dizer: O senhor poderá? E qualquer resposta minha, afirmativa ou negativa, eliminará a necessidade da outra opção, tornando-a redundante, portanto alógica. Ainda assim, o problema, in totum, não está concluído. Observe, verbi gratia, na pergunta: o senhor não poderá? Se eu responder não, estaria dizendo não poderei. Porém, se eu responder sim, posso estar dizendo sim, eu não poderei. Repare que, hic et nunc, sim e não se equivalem.
— Brilhante, professor. Mas esse não equivale a um sim, como no exemplo citado?
— Não equivale. Estarei muito ocupado com outro ensaio, sobre o sim e o não. Não creio que possa.
— Compreendo. Permita-me dizer boa noite, sim, professor.
— Pois não, data venia.
[p. 32-7.]
* * * * *
D DE DENTE
Entra mudo e aguarda calado.
Entre dois dedos, um cigarro de ruim marca, aceso, mal disfarça o nervosismo das mãos. Colocá-las sobre as pernas? Deixá-las livres? Ou cruzar os braços?
E as pernas? Cruzá-las? Ou deixá-las à vontade? E se não parecer elegante? Pernas, pra que vos quero?
Minutos de espera e de dúvida, não se resolve.
Um cigarro após o outro é a solução. Ou um pigarro.
A atendente é toda só riso postiço e crava nele os olhos de vampira d’óculos.
— Agora é sua vez.
Desorientado, exibe, em agradecimento, sorriso amarelo de nicotina.
— Entre.
Entra mudo. Rês dócil caminhando ao abatedouro.
O odontólogo, de entre os dentes d’ouro, também diz:
— Entre.
E ainda:
— Sente-se.
E ainda:
— Sente-se bem?
Quer estabelecer uma ponte.
O outro faz duvidoso meneio com a cabeça.
— O senhor não fala?
— Sim.
— Fala ou não fala?
— Sim.
— Hum…
Há uma pausa, longa, de silêncio.
— Abre a boca.
Fecha os olhos. Mas o odontólogo, logo, douto:
— Veremos o que o senhor tem na boca.
Quase diz. Mas não diz. Considera imprudente.
— Qual é o dente?
Aponta com o dedo médio. Poupa o indicador.
— Hum…
O profissional observa, minucioso.
— Hum… O molar superior esquerdo.
E toca o local.
— Dói?
Faz sim com a cabeça.
O odontólogo, incisivo:
— Sinto muito, mas é necessário extração.
A raiva canina, o desejo de triturar os dedos dele.
Rápido, o auxiliar passa-lhe à mão os instrumentos. É a eficiência em pessoa.
— Abre mais a boca.
Abre bem os olhos. Quer engolir o mundo. Engole em seco.
— Hum, hum…
Os dentes em situação precária, a boca quase oca deles. A anestesia, a anestesia…
— Agora cospe.
Boquiaberto, pratica masoquismo na cadeira odontológica. Ai, em tuas mãos entrego a minha boca.
— Não está doendo nada.
— Hum…
Uma dor ardente. A extração, a extração…
— Não dói nada.
— Hum…
O auxiliar faz ar de riso. O profissional, de siso.
— Agora cospe.
Então, o secular diálogo, desde a invenção da tortura e do sexo, segundo os entendidos de um e de outro.
— Dói?
— Ai.
A sempre retórica pergunta.
Agora cospe.
— Dói?
— Ui.
A milenar resposta.
Agora cospe.
— Dói?
— Ói.
Sobre o armário, irônica dentadura sorri dentes alvos e perfeitos.
— Hum… Pronto. Extraí o mal pela raiz.
Mostra, vitorioso, o troféu.
— O senhor escove os dentes pelo menos três vezes ao dia. Pela manhã, após o almoço e após o jantar. Assim, evita a cárie e…
Mas ele já sai, calado, como quando entrou. Porém, com a humilhação de um dente a menos.
— Hum…
[p. 50-3.]
* * * * *
ÉDEN IDEM
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— Homem, tenho aqui no ventre um filho seu.
— Ora, mulher, então é seu.
— Não, homem, é seu mesmo.
— E de quem é o seu ventre, mulher?
— É meu o ventre, homem.
— Então seu é o filho, mulher.
— Homem, você não crê que este seja seu filho?
— Você disse, mulher.
— Homem, então, é você que é o pai.
— Você diz, mulher. Mas você mesma não sabe quem.
— É você, homem. Juro por Deus.
— Você mente, mulher. Sua língua é serpente.
— Não falo entre dentes, homem: ou digo a verdade ou seu filho será mendigo.
— Há um engano aqui, mulher.
— Você não me engana, homem.
— Não é possível, mulher. Há um engano.
— O médico está certo, homem: há sete meses um filho é possível.
— Mulher, há sete meses eu estava fora.
— Fora de mim, homem. Fora de mim.
— Mulher, eu estava no interior do país.
— E no meu interior uma parte sua, homem.
— Eu não tenho culpa, mulher.
— Seu filho, sim, homem, não tem culpa do pai que tem.
— Nós somos inocentes. Ele é um inocente. Eu, mulher, sou inocente.
— Homem, você se nega a ser o pai de seu filho.
— Mas, mulher, eu não posso ser pai de qualquer um. Há muitos querendo pai. Há muitas mães.
— Homem, seu filho, quando crescer, será um filho sem pai.
— Mulher, você é a mãe. O filho é seu.
— Homem, vocês são todos iguais.
— Mulher, deve ter sido alguém igual a mim.
— Homem, eu estou certa do que digo.
— Eu não estou certo disso, mulher.
— Homem, naquela noite, jantamos juntos num restaurante.
— E depois, mulher?
— Depois, homem, dormimos juntos num dormitório.
— E depois, mulher?
— E, depois, eu fui sua mulher.
— Vocês, mulheres, são todas iguais. Aqui e na China.
— Homem, ser mulher-mãe é um inferno. E você nunca foi à China.
— Mulher, nunca estive lá. Nem aqui, antes.
— E você, naquela noite, disse que eu era diferente de todas as outras. Você disse, homem.
— Mulher, você jura que não mente? Que não perdeu o juízo?
— Homem, juro pela vida de seu filho que há de nascer.
— Isso não é possível, mulher. Deve ser fruto de sua mente.
— De sua semente, homem. De sua semente em mim.
— Oh, minha mulherzinha, você é um demônio de anjo.
— E você é o meu homem. O meu homem.
— E você minha mulherzinha.
— E você o meu homem. O meu homem.
— E você minha mulherzinha. Minha.
— Terminamos, querido. (Desvia do texto o olhar.) Está cansado? Olha para ele.
— Um pouco, querida. (Suspira, e guarda os papéis.) Amanhã ensaiaremos de novo.
[p. 54-6.]
* * * * *
REVISÃO
Sou um homem noturno, de vigília. Não sou vigia: não durmo por insônia. Sempre — ou quase sempre — estou de plantão permanente, isto é, acordado, quando está a dormir todo um hemisfério. Quase não — ou só não — durmo à noite. Troco-a pelo dia, hábito desde há muito adquirido. Nessas horas mortas — não vejo nisso mistério — ou vago pelas ruas, geralmente desertas, ou aproveito e arrisco a escrever rabiscos — ou arabescos — talvez estranhos mesmo a árabes e gregos e troianos. E ao dia — quando durmo — o sono é lento. Talvez enquanto adormeço ainda me atormente o temor da morte: com medo dela convivo, por amor à vida. Teve isso começo na infância: isso, por reserva, sempre o omito, ao psicanalista, quando o consulto. A ânsia do eterno, o mito da imortalidade, explicar-me-ia ele, sintético; e certamente, formularia algumas perguntas, a analisar — impassível — as respostas. Cultivo, porém o ocultismo de mim mesmo, fingida esfinge: decifrar-me ou não — eis a questão.
&
Não conto a ninguém — mas estou a escrever uma obra, hermeticamente fechado em meu quarto de solteiro. Nele, solitário, pelo menos há liberdade e silêncio, sem contar das pulgas. Não me preocupo com os possíveis leitores, leigos, em sua maioria; por enquanto, livro-me deles o quanto posso.
Na pensão, onde estou hospedado, já até houve comentários acerca de meus hábitos noturnos: alguém, sempre à escuta, já deve ter ouvido o ruído de minha máquina de escrever. Pensam eles que sou um desses poetas sentimentais, que dedicam a vida a poemas à amada ausente, ou um fracassado escritor que sobrevive às custas de mísero prêmio ganho em concurso literário de júri medíocre, ou ainda sobrevivente de direito autoral num país onde pouco se lê. A fim de evitar dedução desses maníacos especulativos, decidi manuscrever os meus fragmentos.
A dona da pensão, uma senhora gorda e prestativa, aos curiosos vive a explicar que sou um senhor sujeito muito inteligente e culto, apesar de meu jeito estranho, oculto. Também nunca lhe atrasei o pagamento do aluguel. E não sou um homem de senhas. Não sei, porém, o que os outros pensam de mim, pois apesar da pouca distância, inquilinos que somos, nunca nos cumprimentamos: limitamo-nos a nos medir, com olhares desconfiados, de soslaio.
Por falar em leitores, suspeito dos tais que dizem ter livro de cabeceira — acredito mesmo que, à falta de travesseiro, durmam com o crânio sobre o livro, no leito, sem nunca sequer ter lido ou folheado uma página dele. Há muitas histórias de leitores assim. Conheço-as através de relato dos próprios.
Suspeito — também — dos que dizem estar a escrever um livro. Tais assuntos causam-me mal estar: no máximo, é pura ficção ou o livro não é bom — em termos conteudísticos — ou está o autor acima de quaisquer suspeitas. E se é ele realmente um escrevedor, cabe-lhe, na sociedade, o papel de escrever, claro. Sem imposições. Há a liberdade da pena e — censurável — a pena da liberdade.
Mas escrever é um trabalho penoso — admito-o — e os escrevedores homens plenos de pretextos, e, por isso, não faço — em minha obra — um prefácio fácil, a pretexto de ser lido. Lido com palavras como o faz o lavrador com sua lavra: em intensa lida. E se meu texto é sólido ou se liquido com a tradicional escritura, isto é outro tema — ou tira-teima — a ser estudado pelos que dispõem de tempo de sobra.
E minha temática é outra, boa ou má.
Ora, a literatura é o ardil de alguns eleitos para o deleite de uma elite leitora, e a poesia uma arte minoritária: de minoria para minoria.
E se minha obra prima pela rima, poeta não o sou: não ouso o pó das bibliotecas — obra de doidos e doídos.
Talvez o seja, sim, um poemador; mas um igual: nem maior nem menor, mas médio, crê — de mediana estatura.
Possuo olheiras bem visíveis e as retinas cansadas da rotina de revisar o que escrevo, quando, de instante em instante, em qualquer lugar, comum ou não, me assaltam à mente palavras novas ou frases de efeito, amante que sou das letras, a despeito de alguns lapsos lingüísticos. A mim me falta uma estante e, nela, um atualizado dicionário. Os erros, corrijo-os a lápis. E, quando me deito, assaltam-me logo o leito e iniciamos o diálogo. Com elas converso boa prosa. E elas, às vezes belas, me atacam — boa presa — e novamente e novamente e novamente. Um turbilhão de palavras, frases, idéias. Excitado, levanto num salto, rápido, a fim de papel e tinta. Conseguidos, enfim, às vezes sem tempo sequer para registro. Na memória uma turbação. Um jugo de palavras. Falo-as desconexas. E logo o dia.
Cedo, menino ainda, via, com meus olhos então míopes, a profissão de jornalista, entre enumerável lista. A idéia ia penetrando-me. Meu pai, repórter policial que fora, nunca concordara. “Só nessa sua cabeça cabe essa idiota idéia.” Policiava-me os atos. Um dia, melhor, uma noite, alta madrugada, acordara, e, entrando em meu quarto, flagrara-me rabiscando uns papéis. A pena do delito fora um sermão realista e cru, como só meu pai sabia fazê-lo — melhor que vigário —, embora nunca tivesse lido nem conhecido os autores clássicos. Quase rasguei, desiludido, todas as românticas meninices. Preferiria três surras àquelas palavras cortantes quais lâminas.
Em seus planos de pai, homem reto, calculava-me engenheiro de construção civil. Aos amigos descrevia a minha vocação para o desenho — equívoco logo desculpável quando, em queda no andar térreo do prédio da vizinhança, fraturara eu o braço direito, então meu melhor amigo aos momentos solitários, porque, com ele, múltiplas alternativas de prazer obtinha, principalmente a masturbação.
A essa época, ainda éramos fartos e poucos.
Depois, falto de recursos, não pude, no entanto, cursar faculdade, tal a nossa dificuldade financeira, família pobre e de numerosa prole.
Abandonados os estudos e tudo mais, inclusive os escritos primários, fui ser aprendiz de tipógrafo, em gráfica de subúrbio; onde, por detrás de uma infinidade de letras e números, descobriu-me um poeta, com livro a ser ali impresso. À primeira impressão, em simples troca d’olhos, simpatizamo-nos mutuamente. Tinha ele certa dificuldade respiratória, mas, mesmo assim, recitou-me, ritmadamente, diversos poemas seus: achei-os perfeitos, com espontaneidade — não o disse no momento — mas cheios de vazio existencial. Elogiei — com efusão — apenas uma elegia, lindamente triste, intitulada “Sofrimento”. Ele próprio pareceu-me vazio de corpo: era um jovem alto e muito e muito magro. Usava óculos de grossos aros, que, sobressaindo-se mais que o rosto, lhe emprestavam ares de profundo intelectual. Vi nisso um bom artifício para ocultar olheiras. Mas nunca havia conhecido um poeta em carne e osso. De resto, só nas antologias e compêndios escolares. Talvez ele o fosse a fim de dar vazão a um certo desejo reprimido, pensei comigo.
Já versado no ofício de imprimir, encarregaram-me da composição do livro do poeta, a pedido do autor. Feita a obra, nenhum erro tipográfico! Emocionado, chegando mesmo às lágrimas, agradecera-me muitíssimo. O primeiro exemplar, ganhei-o, com dedicatória, tremida a letra.
Dedicado no serviço, firmava-me dia a dia. Ao dono da gráfica já imprimia confiança, e o convite para ascensão de posto viera em seguida. Mas o salário não sofrera o esperado reajuste. Então, fui vitimado duas vezes, injustamente: por discutir firmemente com o patrão um aumento salarial, fora demitido por justa causa, conforme reiterara seu advogado, citando-me — seguro — alguns artigos da lei trabalhista. Não recebi indenização alguma: era a lei. E eu leigamente ilegal.
Meu pai — em talvez castelos de sonhos — tinha ainda o vão desejo de me ver engenheiro de edificações. A essa altura, eu ainda não sofria da coluna. O seu sonho era-me um pesadelo, por eu lhe causar desilusão.
O referido poeta tornara-se famoso e nunca mais nos vimos. Às páginas e revistas literárias, cúmplice de seu sucesso, acompanhava sua carreira. Travara com um crítico uma tão acirrada polêmica que levou este à morte, de ataque cardíaco, em plena sessão da Academia de Letras, repleta de Imortais.
Depois conheci um contista; mau contista — sim — mas muito bondoso, com ajuda de quem contei para ingressar no Jornalismo, como revisor, em jornal de grande tiragem. A princípio, visava a Redação, porém, excluído por não possuir diploma do Curso.
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Evito escrever, mas, para mim é vital; talvez eu me tenha tornado escravo do que escrevo, por estar em fase de desemprego ou assim me atenha por não Ter uma outra lacuna onde empregar minhas parcas frases, ou ambas, simultaneamente; assim, creio, extravaso minha criatividade, após ser também despedido — por problema de coluna — do jornal onde atuava como revisor.
Sinto ainda muitas dores — e mais acentuadamente quando me sento.
Era um funcionário exemplar. Cumpria a rigor o meu papel. Revisava letra por letra, palavra por palavra, não descuidava de um acento sequer. Causava boa impressão a todos os jornalistas. Havia um que me cumprimentava com um só leve sorriso, social. Era, enfim, bem visado até pelo crítico de cinema — tido por todos como intratável, fazedor de cenas histéricas ao constatar um mínimo lapso, ou corte, em seu artigo semanal. Nunca recebera deles, às horas de folga, frase alguma de queixa. Disso me orgulho. Eu é que me queixava de dores na coluna. Houve um que, com maestria e humor, registrara, em crônica, o meu mal, que se agravava dia a dia.
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Um dia, o diretor do diário, de sobrenome Farias, um sujeito de voz e gestos escandalosos, tipo manchete policial, intimou-me, em bilhete mal escrito, a comparecer à sua sala.
— Sente-se, por favor — a voz ativa, ditatorial.
E, entre um argumento e outro, sempre direto, por detr5ás de sua cadeira giratória, alegou ser ilegal a minha permanência no quadro de funcionários, devido a meu estado doentio.
E, devidamente ou não, decretou demissão imediata.
— Sinto muito — quis ele dar um tom de afeto; saiu, melhor, soou falso, afeito que estava às palavras fatais.
Senti muito mais. A partir daí, vi dividida minha vida em duas partes: em dívidas e dúvidas. Aceitei o fato com o meu jeito orgulhoso e calado de ser, dócil, rês posta ao golpe fatal. Era isso em mim — a notícia circulou depois — que o fazia me detestar, censurando-me caluniosamente, apesar de nunca termos trocado palavra, em tempo algum. Nem mesmo em pêsames, quando, no hospital, doente, falecera minha querida mãe.
Pesa-me na consciência o não saber ser violento. Na verdade, àquela hora — confesso-o agora, tarde — tive contade de explodir qual uma bomba, e lançar para fora todas as inúmeras letras, palavras, frases e idéias, que tenho acumulado ao longo de uma vida de covarde. Tão intensa era minha fúria interna que tive medo de mim. Tivesse um punhal à mão, faria, sem pena, bons furos no corpo gordo daquele porco podre e miserável até que se lhe esvaísse, entre as vísceras expostas, todo o sangue tipo A de arrogante.
Grande náusea sentiria em rever o cadáver. Boa matéria para a página policial, apenas.
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Ultimamente, muito tenho refletido sobre mim mesmo, principalmente quando me olho direito, diante do espelho, e começo a descobrir rugas, precoces, em meu rosto de ainda jovem de idade. Do que era eu fisicamente, há pouco tempo atrás, resta — entre minhas poucas posses — apenas esta fotografia, posado de frente, para fins de documento.
Também constato calvície precoce — falhas de cabelos na cabeça. Depois daquelas horríveis coceiras, careço deles. Quanto às rugas, uso um creme facial para disfarçá-las. Sei que isso é fácil, superfácil, superficial, num mundo de aparências e rotulações. “Não fique a ver rugas: use SUPERFICIAL”, diz irritante anúncio, na televisão.
Reviso uma outra fotografia minha, aos dez anos, já amarelada, um tímido sorriso ao canto dos lábios, um menino de trato e retrato, sem marcas de espécie alguma. A infância revista, qual em filme colorido, em reprise.
Sofro, também — sem remédio —, a dor dos outros seres, que sofrem anônima ou publicamente. Mas, a minha, a ninguém revelo — a ninguém mesmo — nem no escuro.
Do mundo, a visão que tenho é a dos meus olhos, tristes e cansados.
Só comigo converso, meu melhor amigo, e, aos reveses, pior inimigo. Não consigo outros: a não ser palavras. Sinto até pena de mim — é como se estivesse condenado, em ilha deserta, por um crime nunca cometido. Sim. Sem fama nem família, no exílio. Infâmia!
Outras noites saio pelas ruas a andar a esmo — feito um louco à procura de si mesmo, ou em busca de um suposto alguém que ele próprio desconheça — ou entro em profundo estado depressivo e me refugio nos mais ermos lugares da cidade, a feliz cidade que a um bêbado poeta encantou, onde, em mesmas mesas de bares noturnos, pares de olhos, meses e meses, espreitam outros, na esperança de serem vistos.
Ora em dúvida, se sonho ou realidade, ponho-me a pensar em possível cura. Entretanto, de tanto pensar, beiro a loucura.
Dar uns dois tiros no ouvido — esta a minha vontade, se possuísse um revólver, mas temo ficar surdo antes e assim não ouvir o eco dos disparos, certeza de ato consumado, e — talvez o pior — nem o que seria o meu último grito, já há muito preso na garganta.
Revolver mágoas — eis o que resulta pensar profundo.
“Carregamos o peso de nossos corpos, e sua existência” — rápido, anoto em caderno próprio de frases e poemas, advindos aos instantes de meditação.
Gravei bem o que disse o doutor, após o exame ortopédico: “Grave! Escoliose. Espondilite. É necessário um bom tratamento para andar correto.”
Ando torto. Ando morto. Desisti de viver. Dei prazo à vida. Evito tratamento médico, o horror das intermináveis filas, todos a se queixar e a gemer de dores, como se fosse o mundo enorme hospital e os médicos espécie de messias, prontos a realizar milagres de cura. Comovem-me a vozes doridas.
Dependesse de mim, decretaria agora o Apocalipse, e morreria em lugar incomum: em poltrona de teatro, a ouvir de preferência Beethoven, como o ouvem os eruditos: em profundo silêncio. Comovo-me com o barulho de sua música: a mim me soa suave quais finos dedos de pianista, a correr, ágeis, pelas teclas de marfim, em piano de cauda.
Deitado, a olhar para cima, entre as quatro paredes do quarto, arquiteto um suicídio sui-generis, que seria manchete em todos os jornais do país. E do mundo. Receio apenas erro de revisão.
Suicida, não o serei por causa anônima. Antes deixarei em carta explicativa, fechada e escondida, a chave do enigma.
A fim de não revolver pensamentos negativos, resolvo ligar o vídeo e ter a ilusão de ver — finalmente — algum final feliz de algo, na telenovela que hoje finda: em evidente alusão ao meu caso, um homem com idéias suicidas termina casado com mulher compreensiva e simpática. Um belo casal, opino mentalmente, a contragosto.
Amanhã uma nova novela.
Desligo.
[p. 94-103.]
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AUTO-RETRATO
Ele se retrata alto como se o fosse. Além de si, fora do seu eu. Além desse cosmo. Alto como Deus Altíssimo, fora do céu. Alto como Deus de sapato de salto alto que não deu certo no pé. Grande à beça. Dos dois pés até à cabeça. Do tamanho da fé do fanático. Enfim, ele se pinta com a tinta que não existe. Triste: ainda acho que ele é ancho e baixo.
[p. 73.]
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AO AMIGO ALFRED
Se o cobrador bate à tua porta, às primeiras horas da manhã, a cobrar a promissória já há seis meses vencida, com protesto no cartório (e com juros de mora, correção monetária, e despesas extras); se um ofício da justiça te intima (e igualmente intimida) a depoimento no processo acusatório de homicídio, cuja vítima foi teu avô; se tens de enfrentar olhares indiscretos de vizinhos suspeitosos (porém nunca suspeitos) só por seres único herdeiro da fortuna do finado, que só se foi aos oitenta e cinco devidamente apenas à ingestão de forte dose de cianureto habilmente colocada, por alguém da casa, em sua aguardente predileta (conforme atesta o legista, no seu laudo cadavérico); se tens ainda de enfrentar as indagações, maliciosamente manipuladas, do excelentíssimo senhor promotor público da Primeira Vara Criminal; e ainda as manchetes dos diários locais, com informações distorcidas; se tens de fazer longos e cansativos repetidos esclarecimentos que nada esclarecem às mentes ocas dos senhores jurados, todos igualmente loucos por te ver atrás das grades; se esses pequenos inconvenientes do dia-a-dia ocorrem a ti, meu caro Alfred, não fiques triste: eles só vêm encher de mais razão essa vida vazia que levas, aliás, que todos levamos. Se ainda puderes, sai à rua, e repara os bares noturnos: estão cada vez mais cheios de homens vadios e vazios. Quase todos — ou todos — têm uma esposa infiel, ou um caso de amor impossível, e afogam suas mágoas num bom trago de vinho. Noite a noite eles se consomem, em desesperadora angústia. Uns até desejam a morte. A conversa é sempre a mesma: a de sempre. Então, Alfred, temos sérias razões para concluir que és o último dos privilegiados, um sujeito mesmo de sorte; por acaso, amigo Alfred, quando recebes tua polpuda herança?
[p. 81-2.]
[In No escuro, armados, de Marcos Tavares, Anima/Fundação Ceciliano Abel de Almeida-Ufes, Rio de Janeiro/Vitória, 1987]
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Marcos Tavares, poeta, contista e cronista, nasceu em Vitória, 1957, radicou-se em Dores do Rio Preto. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)