Na praia das Pelotas, Silva Pontes interrompeu sua caminhada. Era uma nesga de areia situada entre rochas, que a separavam das praias vizinhas da Areia Preta e do Riacho. O médico chegara até ali depois de voltar do Riacho, andando sobre a pedra onde o mar quebrava em ondas, espraiando espumas na crosta molhada e escorregadia. O sol tinha acabado de surgir sobre o oceano e Silva Pontes aspirou o ar da manhã enchendo os pulmões no limite da sua capacidade.
A praia das Pelotas era coberta por uma extensa camada de conchas e corais que as vagas depositavam na areia. O médico fazia ali uma parada habitual para catar “carrapatos”, uma conchinha que lembrava a forma deste artrópode. Era preciso apurar a vista para identificar os carrapatinhos nacarados, com pintas marrons, espalhados pela areia.
Silva Pontes impunha um desafio diário à sua sofrida miopia, mal atenuada pelo pincenê: ver quantos carrapatos era capaz de catar em cinco minutos. Marcava o tempo pelo seu Tissot de pulso, do qual nunca se separava, nem quando dormia ou mergulhava em suas vigílias elucubrativas. Seu recorde de catação tinha sido de quinze carrapatinhos, o que lhe dava a satisfatória média de três carrapatos por minuto. Uma glória, para quem tinha de manter o equilíbrio do pincenê acavalado no nariz, com as lentes ligeiramente embaçadas pela maresia.
Catar carrapatos na praia das Pelotas era uma distração de muitos banhistas. Silva Pontes já havia pensado em promover um concurso entre os adeptos do passatempo. Mas desistiu da ideia por achar que seriam tantos os concorrentes que a estreita praia não os comportaria de uma vez. Pelo menos esta iniciativa não seria mais uma das suas contribuições para divulgar Guarapari como maravilha da Natureza. E não pensou mais no assunto.
Curvado sobre o corpanzil cinquentão, terminou os cinco minutos que se dera e conferiu a féria do dia, reunida no côncavo da mão. “Doze carrapatos! Não foi uma performance de todo ruim”, murmurou para si mesmo, atirando de volta à areia as conchinhas catadas e contabilizadas. “Que alguém, de olho mais agudo que o meu, tenha melhor sorte,” disse, em voz alta, no gesto do arremesso.
“Falando sozinho, doutor?”, perguntou a veranista cuja aproximação Silva Pontes não notara.
O médico encarou a mulher através das lentes embaçadas do pincenê e reconheceu a professora Sílvia Miranda, uma das suas pacientes do Radium Hotel. Num gesto de boa educação, ergueu o chapéu Panamá que cobria a cabeleira basta, cor de caju, e respondeu, bem humorado:
“Não posso dizer que falava com os meus botões porque não os tenho no calção de banho. Mas falo com meus carrapatinhos de estimação.”
A professora sorriu da resposta e, sem se deter um segundo sequer, retrucou com uma saudação estimulante:
“Bom proveito, doutor!”
Silva Pontes ficou contemplando-a afastar-se em direção à praia do Riacho, caminhando sobre a pedra em passos de passarinho, o corpo jovem e torneado contido no maiô azul escuro.
“Bom proveito?”, indagou para si mesmo. E completou, tirando novamente o chapéu da cabeça, onde os cabelos à Carlos Gomes lembravam as lavas de um vulcão impetuoso: “Ai, carrapatinhos de minh’alma, o que posso esperar deste voto?”
Sílvia Miranda sentiu que, enquanto ia pela pedra em direção à praia do Riacho, os olhos do médico cravavam-se nas suas costas. Esta impressão, que era quase palpável, a deixou envaidecida. Claro que não iria cometer a leviandade de se virar e conferir o que a sua intuição feminina lhe assegurava com tanta certeza. Continuou seu caminho, reforçando, agora com certa malícia, o ligeiro bamboleio dos quadris, enquanto percebia, através da planta fina dos pés, a rugosidade da rocha por onde andava com o necessário cuidado para não escorregar. “Eu sei que ele está me olhando, tem de estar me olhando!”, pensava Sílvia.
Não podia negar que o médico, apesar do pincenê e daqueles cabelos de juba de leão pintados de caju, ou talvez até por causa da juba leonina, a impressionasse como homem. Alto, simpático, solteiro, e, ainda por cima, médico de renome nacional, era o que se podia chamar de um partido de primeira. E quanto ao pincenê, bem, nem sempre estaria ele cavalgando o dorso nasal do doutor.
A par disso, tratava-se de homem maduro, pelos quais Sílvia sempre tivera uma queda especial e diante dos quais sua carência de menina órfã, ex-interna do colégio do Carmo, em Vitória, se tornava extremamente vulnerável. Depois, havia como a ligá-los, premonitoriamente, a semelhança dos nomes — Sílvia e Silva. Nada mais do que um i os tornando diferentes e, ao mesmo tempo, os fazendo tão próximos um do outro, ele e ela, homem e mulher, macho e fêmea.
O lado romântico e ardente do temperamento de Sílvia Miranda sofreu, da parte dela, uma puxada de rédeas e seus devaneios se recolheram como as ondas do mar depois de espumarem sobre a rocha. Sua atenção orientou-se então para a praia do Riacho, onde havia marcado um encontro com possibilidades concretas, segundo pensava, de mudar para sempre seu destino de professora primária.
Estava em Guarapari há um mês e meio. Viera de Governador Valadares para passar férias de verão na Cidade Saúde e hospedara-se no Radium Hotel por indicação de um amigo, mas graças também a algumas economias forçadas, feitas durante o último ano letivo.
Na verdade, não só tinha em mira se conceder um justo e merecido descanso, como aproveitar a terapêutica monazítica das areias pretas para combater um começo de reumatismo que lhe afligia as juntas e o pulso da mão direita.
O amigo, que lhe indicou Guarapari, havia lido numa revista de medicina, na ante-sala de um consultório médico, um artigo apologético sobre as propriedades miraculosas das praias de Guarapari, para o tratamento do reumatismo e de outras doenças dos ossos. Tratava-se de trabalho assinado por Silva Pontes. Ao passar as informações para Sílvia, o amigo não se esquecera sequer de mencionar o nome do articulista. “Parece que é uma sumidade no tratamento de reumatismo”.
Ao hospedar-se no Radium Hotel, Sílvia Miranda ficou sabendo que a sumidade também se encontrava ali, hóspede de honra com direito ao uso de uma saleta para o atendimento de pacientes. Não seria ela, pois, que iria perder a oportunidade de travar conhecimento com aquele prodígio da medicina, tão à sua mão doente que quase a assustava.
Só que, antes que Sílvia levasse à frente um estreitamento de relações com Silva Pontes, o acaso colocou em seu caminho a figura bem apessoada e galante, e diga-se ainda que divertida e fogosa, do jovem Rodrigo Vilela da Cunha. Por ele a professora se tomou de amores e, impulsionada pelo sopro quente de Cupido, ia encontrá-lo na deserta praia do Riacho, onde a constante arrebentação das ondas espantava, para águas menos encapeladas, banhistas ousados e temerosos.
“O homem — todos os homens — vivem num imponderável jogo de acasos.”
A frase mordeu o cérebro de Silva Pontes enquanto voltava para o Radium Hotel. À sua direita, o mar arrebentava com força, na praia da Areia Preta; à esquerda, uma falésia aprumada e vermelha, como um ventre de barro rasgado de cima em baixo, se despenhava reto sobre a praia, criando uma ribanceira com mais de quinze metros de altura. A falésia formava, naquele canto, um regaço morno e aconchegante.
Na barra do mar, em frente ao barranco, algumas rochas faziam as vezes de banheira natural, onde as ondas entravam espumando e onde Silva Pontes entrava suado, para usufruir daquele refúgio sereno. Era ali que ele se alojava como senhor do mundo, Netuno em águas reconfortantes, durante suas caminhas matinais, para banhar-se calmamente, com uma alegria quase juvenil. “Maravilha da natureza”, chegava a gritar para as ondas que se rompiam sem o menor perigo, por cima das pedras.
Terminado o banho de pato, Pontes dirigia-se para o hotel onde quebrava o jejum com um café da manhã, servido no salão de refeições, constituído de café, leite ou chocolate, pão com manteiga, cuscuz e banana da terra cozida, que ele cirurgicamente abria ao meio para passar manteiga e chuviscar com canela em pó.
Andando sem pressa, evitava a parte fofa da praia, onde, às vezes, suas pisadas mais firmes provocavam alguns assovios, curtos e agudos, que lhe causavam gastura. Aprendera a palavra em Guarapari, com a gente da terra, e a adotara para significar um mal-estar momentâneo e físico, geralmente acompanhado de arrepio. Enquanto caminhava, remoeu a frase que lhe tinha atinado à consciência, fruto de antiga obsessão da sua mente lógica e especulativa: “O homem — todos os homens — estão sujeitos na vida a um imponderável jogo de acasos.” E concluiu: “O acaso deve ter as suas leis, talvez tão sutis quanto as da hereditariedade. O diabo é explicá-las”.
E tomava a si próprio como exemplo para as essas ruminações filosóficas.
Nunca estivera nos seus desígnios se interessar pelos segredos da radioatividade. No entanto, quando ainda era estudante, caiu-lhe sob os olhos o Almanaque Hachette de 1904, que mencionava a existência do radium, descoberto em 1898 pelo casal Curie, cujas pesquisas posteriores levaram os dois cientistas ao Prêmio Nobel de 1903.
Anos depois, já formado pela Escola de Medicina da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, Silva Pontes, num convite inesperado que lhe fez um embaixador amigo de seu pai, tornou-se assistente do Instituto de Radium de Berlim, no decurso da Primeira Guerra Mundial. Ali, onde trabalhou com alguns professores de maior renome na Alemanha, publicou, em revistas médicas, trabalhos experimentais sobre os efeitos biológicos da radioatividade no organismo animal.
Já no Brasil, durante uma de suas habituais excursões de férias, feitas em automóveis comprados de segunda mão, veio bater na modesta cidade de Guarapari, que, de tão modesta mais parecia uma simples vila de pescadores. Foi quando travou contato com a praia da Areia Preta, cujo potencial radioativo identificou a olho nu, percebendo, antes de qualquer outra pessoa, o potencial curativo que o lugar oferecia para tratar reumatismos.
Agora, quase vinte anos depois dessa primeira visita, ei-lo outra vez em Guarapari, que ajudou a projetar mundialmente como cidade-saúde. E, para sua maior satisfação, hospedado como convidado especial, no novo hotel da cidade, ao qual muito apropriadamente fora dado o nome de Medicinal Radium Hotel, erguido diante da praia da Areia Preta.
O hotel era explorado pelo Governo do Estado, interessado em divulgar Guarapari como balneário turístico e terapêutico. O governo o adquirira ao seu idealizador, um amazonense que estudara em Vitória, mas que não teve cacife para concluir as obras.
“Sim, o homem vive num imponderável jogo de acasos,” repisou Silva Pontes entrando no grande jardim do hotel, enquanto revia em pensamento o corpo atraente de Sílvia Miranda, balançando sobre as pedras lambidas pelo mar. E ele mesmo lambendo os lábios sem sentir, perguntou-se, sorridente: “Será este um outro exemplo das imponderabilidades do acaso?”
O Radium Hotel era o que se poderia chamar um hotel moderno, com o conforto necessário para atrair hóspedes e turistas de todas as partes do mundo. Seus quartos tinham ventiladores de teto, camas com mesinhas de cabeceira e abajur, penteadeiras com pufes e armários para roupas, além de banheiros privativos.
Para Silva Pontes, que chegou a Guarapari pela primeira vez em 1937, e teve de se hospedar num hotel de precárias condições, com sanitário tipo fossa, coletivo e imundo, com catres nos quartos no lugar de camas e assoalho de madeira cujos furos permitiam que se visse a vegetação do solo, o Radium era a última palavra em modernismo, como já alardeava a propaganda feita fora do Estado do Espírito Santo.
Além desses requintes, o hotel tinha alguns apartamentos que se comunicavam internamente por uma porta comum, como acontecia em grandes hotéis do Rio de Janeiro e São Paulo. Era uma solução prática que permitia a associação de dois cômodos, transformando-os, num abrir de porta, num aposento conjugado, quando assim fosse do interesse de alguns clientes.
Além das dependências para hóspedes, o Radium Hotel contava com um cassino. O cassino funcionava com a tolerância das autoridades do Estado, algumas das quais, independentemente dos poderes a que pertenciam, costumavam frequentá-lo nos finais de semana, com a vantagem de poder se passar por hóspedes acompanhados de suas digníssimas consortes ou de suas espevitadas amantes.
Jogava-se a rodo, o uísque corria solto, o dinheiro passava de mão em mão, sobretudo para as burras do cassino. Era como se a radioatividade das areias de Guarapari se transferisse, desde o cair da noite, para o frenesi da tavolagem.
Nos fins de semana que coincidiam com feriados religiosos ou dias da pátria, artistas vinham do Rio de Janeiro, especialmente contratados para cantar e tocar no cassino do hotel. O show se estendia até altas horas da madrugada, mas apesar da bebedeira reinante, nunca se soube de alguém que tivesse curado o porre fenomenal mergulhando em nudez etílica no mar ali perto.
De sua parte, apenas uma vez Silva Pontes pisou nas dependências do cassino, assim mesmo a serviço da medicina, para o atendimento urgente de um freguês da roleta e do bacará que foi acometido de uma súbita comoção cerebral, depois de ver esvair-se pelas mãos trêmulas e ansiosas o patrimônio construído durante anos. Silva Pontes teve muito pouco o que fazer, a não ser recomendar que o homem fosse removido às pressas para o hospital do Dr. Dório Silva, em Vitória.
Um carro chapa preta, que atendia ao secretário do Interior e Justiça, estacionado no grande jardim do Radium Hotel, serviu de ambulância para o transporte do doente.
Mas para Silva Pontes a ida ao cassino teve ainda outro proveito: revelou-lhe que algumas hóspedes do hotel também se faziam presentes às noitadas da jogatina. Bem arrumadas, com pulseiras, colares e anéis cintilantes, agitavam-se de um lado para o outro. Uma delas, Dona Marinalva Cunha, paciente a quem o médico atendia devido ao artritismo crônico, chamou-lhe em especial a atenção, docemente empurrada em sua cadeira de rodas por um enfermeiro do hotel.
No dia seguinte à incursão ao cassino, Silva Pontes teve de ir a Vitória. Foi para atender ao convite para proferir uma palestra sobre a cura do reumatismo e do artritismo pela radioatividade.
O convite partiu do diretor do Sanatório Getúlio Vargas, Dr. Zaig, que fora um dos mais brilhantes alunos de Silva Pontes, na Faculdade da Praia Vermelha, no final da década de 20.
Silva Pontes partiu para Vitória na véspera do dia de Nossa Senhora da Conceição, 8 de dezembro, que começou radioso, com muito sol e temperatura amena, mas terminou sob tremendo temporal.
A perua do sanatório chegou ao Radium Hotel às 9,20 da manhã, dirigida pelo motorista Gabino Ramos. O médico embarcou logo, carregando na mão sua maleta marrom com uma muda de roupa. Deu bom dia a Gabino e acomodou o corpo pesado no banco dianteiro e inteiriço da Chevrolet 52.
De soslaio, Gabino conferiu o passageiro com a descrição que dele fizera Zaig: “Tem porte de vulcão, cabeça de vulcão e, às vezes, cospe lava pela boca, sem deixar cair o pincenê”. O personagem batia com o seu retrato falado.
Ao passar sobre a ponte de cimento armado, que liga o porto de Guarapari a Muquiçaba, Gabino puxou conversa: “Graças a essa obra, inaugurada há pouco tempo, não precisamos mais esperar a balsa para atravessar o canal.”
Silva Pontes inspirou fundo e, sem se voltar para o motorista, retrucou: “Pode ser uma bela obra de engenharia, mas para mim não passa de engenhosidade modernosa. Eu preferia a balsa. Esta ponte vai destruir Guarapari. Daqui a alguns anos, meu caro, a cidade vai virar um paredão de prédios, como Copacabana.”
Gabino não esperava tal resposta. Não podia imaginar que Silva Pontes tivesse sido ferrenhamente contrário à construção da ponte que, no seu entender, iria descaracterizar Guarapari como recanto acolhedor e tranqüilo. Resolveu ficar calado e murcho, como zero à esquerda, no seu canto de motorista, concentrando-se na estrada e nas mudanças de marcha, com a alavanca em baixo do volante.
Rodados uns cinco quilômetros por estrada de chão, Silva Pontes virou-se para Gabino e quebrou o gelo reinante: “Como está o Zaig?”
“Bem, como sempre”, respondeu o motorista. “E aprontando muitas e boas”.
O médico se recordou do ex-aluno, agora seu amigo particular, a quem não via há algum tempo. Zaig era um homem de porte médio, de inteligência fulgurante, olhos vivos e perspicazes, com um nariz aquilino que não escondia sua ancestralidade judia, trazida de Portugal pela mãe lusitana. Tisiologista de fama nacional, era um humanista na verdadeira acepção da palavra. De formação clássica, leitor assíduo de Santo Agostinho e de Santa Teresa de Jesus, que lhe alimentavam o lado místico, sua luta infatigável para combater a tuberculose, principalmente junto às camadas menos favorecidas da população, transformar-se-ia na cruzada da sua vida. A ela Zaig se dedicava de corpo e alma e com toda a ciência que havia apreendido.
“O combate à doença se faz com lógica e precisão. Na enfermidade, como no roubo e no crime, há sempre um desafio à nossa inteligência, um mistério que pede solução”, costumava dizer, com ares sherloquianos. “O que é o diagnóstico, senão o ato preliminar e indispensável para o desvendamento de uma incógnita?”
Silva Pontes desconhecia, porém, do ex-aluno e amigo, aquele lado brincalhão e irreverente, a que se referira Gabino Ramos.
“Que história é essa de aprontar muitas e boas?”
“O senhor não sabia? Pois para armar uma brincadeira, que aqui no Espírito Santo se chama enxova, Dr. Zaig não dorme no ponto, principalmente quando está com seus amigos Dr. Pissinali e Dr. Paulo Veloso. Já ouviu falar deles?” Do médico Pissinali, Silva Pontes já ouvira falar pelo próprio Zaig. Mas, de Paulo Veloso, era a primeira vez que lhe mencionavam o nome.
“Quem é o Dr. Paulo?”, quis saber, sem reprimir a curiosidade e até arrumando motivo para alimentar a conversa durante a viagem. Ouvir, ouvir atentamente os outros, quaisquer que fossem as histórias que contassem, era um dos princípios de vida de Silva Pontes. “Pela audição se aprende tanto quanto pela leitura,” costumava dizer.
“Dr. Paulo é promotor de Justiça, enxovador de marca maior, amigo de Dr. Zaig desde os tempos de ginásio. Estão sempre juntos, como unha e carne”, explicou Gabino, retirando, por alguns segundos, as mãos do grande volante da perua, para fazer, com os indicadores em fricção, o gesto que indicava a estreita ligação entre os amigos. “Eu mesmo já fui vítima de muitas situações que eles me criaram”.
“Você?”, indagou Silva Pontes.
“Eu. A última que me fizeram foi domingo retrasado, no jogo entre o Caxias e o Vitória”.
A curiosidade de Silva Pontes levou Gabino a contar a história em detalhes.
“Já que o senhor quer saber..,” disse ele, depois de evitar, com uma guinada para a esquerda, o atropelamento de uma galinha com um renque de pintinhos que chisparam de um lado para outro da estrada, perto de Amarelos.
“Olha, doutor, além de motorista, eu sou juiz de futebol. Não foi nem uma, nem duas partidas decisivas que apitei, no estádio Governador Bley, em Jucutuquara. Até jogos contra times do Rio e de Minas Gerais, que no placar são chamados Visitantes, eu marquei e me orgulho disso.
Mas como ia dizendo, domingo retrasado ia ser a final do campeonato capixaba, entre o Vitória Futebol Clube e a Associação Atlética do Caxias. O Caxias é o time da Polícia Militar do Estado, um osso duro de roer quando joga uma cartada decisiva. E duro de roer para o adversário e para o juiz. O pior é que eu fui sorteado para apitar a partida.
Dr. Zaig e Dr. Paulo são Vitória de carteirinha social, e costumam ir ao estádio nos jogos do seu clube. Dois dias antes, lá no sanatório, porque Dr. Paulo não é médico mas aparece sempre para ver Dr. Zaig, eles me cercaram perguntando: ‘Como é, Gabino, você não está com medo de apitar o jogo com o Caxias? Aquela meganhada é capaz de lhe cortar o pinto.
‘ Me encheram tanto a paciência com essas brincadeiras que eu acabei confessando que ia levar uma peixeira dentro do calção. Não que eu quisesse furar ninguém, mas na minha terra, doutor, em São Mateus, no norte do Estado, costuma-se dizer que seguro morreu de velho.
Dr. Zaig e Dr. Paulo ouviram calados a minha informação, mas eu conheço eles bastante para saber, pela troca de olhar entre os dois, que iam me aprontar alguma.
E não deu outra. Quando soprei o apito para o início do jogo ouvi a voz de Dr. Zaig, gritando da arquibancada: ‘Gabino tá com uma peixeira no calção!’ E Dr. Paulo, completando: ‘Tira a peixeira dele!’
O Governador Bley é um estádio pequeno, o público nas arquibancadas fica perto do gramado. Em campo, ouve-se tudo o que os torcedores gritam. Pois foi assim o jogo todo. Dr. Zaig e Dr. Paulo me alcaguetando por causa da peixeira, eu fingindo que não era verdade, procurando apitar a partida sem me aproximar do lugar onde estavam meus acusadores.
No dia seguinte, quando fui pegar Dr. Zaig em casa, para levá-lo para o sanatório, como faço todas as manhãs, ele, com a cara mais lavada do mundo, me disse: ‘Mas que jogo, hein, seu Gabino! Uma beleza, a vitória do Vitória! E aquele pênalti, que nos deu o campeonato, só um macho como você teria coragem de marcar contra o Caxias…’
Não me contive e reclamei com ele, porque sempre houve muita liberdade entre nós, até somos parentes por laços familiares lá em São Mateus: ‘É, mas vocês me encheram a paciência com a história da peixeira.’ E sabe o que o Dr. Zaig me respondeu?”
“O quê?”, indagou Silva Pontes, divertido com a história que ouvia.
“Olha, Gabino, se Paulo e eu não gritássemos que você estava armado, pensa que você sairia vivo do jogo de domingo? Fomos nós, seu putão, que garantimos sua integridade física. Isso você nos deve pelo resto da vida!”
Silva Pontes deu uma boa gargalhada com o caso, sobretudo porque Gabino acabou reconhecendo que Zaig e Paulo tinham razão.
Chegaram a Vitória quase duas horas depois de terem saído de Guarapari. A estrada de barro não estava muito boa depois de Amarelos, pela via até a Barra do Jucu, onde ainda tiveram de esperar um caminhão mudar um pneu furado, em cima de uma das pontes de madeira que cortam o rio. Atravessaram o longo coqueiral dos Oliveira Santos, de onde Silva Pontes sempre admirava o convento da Penha, deixaram Vila Velha para trás, chegaram à ilha do Príncipe pelas Cinco Pontes e logo a perua 52 começou a trepidar pelas ruas de paralelepípedos de Vitória, a caminho do sanatório Getúlio Vargas, em Maruípe.
Em Jucutuquara, Gabino fez questão de passar diante do estádio governador Bley, que Silva Pontes conhecia só de nome, lembrando para o médico, “foi aí o meu suplício, domingo retrasado.” Mais à frente, depois do ponto final do bonde, pegou a avenida Maruípe para alcançar o sanatório. O prédio de dois pavimentos — construído de cimento armado, como então se dizia — sobressaía numa colina pontuada por pés de eucaliptos, considerados terapêuticos para o tratamento da tuberculose.
Quando Silva Pontes, quase ao meio-dia, entrou no gabinete de Zaig, este estava com as pernas esticadas em cima da mesa e os óculos puxados sobre a testa larga e branca, como era de seu estilo. Falava ao telefone animadamente e fez sinal para Silva Pontes se sentar em frente à sua mesa, numa cadeira de mogno, com réguas no encosto. Assim que terminou o telefonema, levantou-se e abraçou o amigo, dizendo, amistosamente:
“A vida é a luta constante entre o indivíduo e o meio em que vive”.
A frase, que se tornara saudação entre ambos, era repetida por Silva Pontes nas aulas da Faculdade da Praia Vermelha.
“Você não se esquece, hein, Zaig?”
“Pudera, mestre! Suas aulas são uma das boas lembranças dos meus tempos de acadêmico. E a saúde, como está?”
“Graças a Deus, vai bem, tirante a miopia, que às vezes me irrita”.
“Talvez graças a ela você tenha aprendido a ver mais longe do que muita gente…” disse Zaig, gentil.
“Quem sabe?” respondeu Silva Pontes, lisonjeado.
“Mas antes de mais nada, meu amigo, que tal irmos almoçar? Você se importa de comer aqui mesmo, no sanatório? Temos um refeitório onde se forra a tripa razoavelmente. Topas?”
A pergunta de Zaig fora feita por mera educação, sabendo que Silva Pontes não tinha outra alternativa senão aceitá-la.
Ao sair do gabinete, acompanhado pelo médico, Zaig dirigiu-se à sua secretária, Ilza Fundão, e disse: “Avise a Pissinali que o Pontes chegou e que estamos no refeitório.” E voltando-se para o amigo, perguntou: “Como está a sua Guarapari?”.
“Nossa”, respondeu Silva Pontes. “Ela é tão minha quanto de todos os capixabas. Eu só tento fazê-la internacional”.
“E está conseguindo, meu caro! Tanto que o governo passado construiu a ponte que agora dá acesso fácil ao balneário”, provocou Zaig, que conhecia a ojeriza do amigo pela obra.
Silva Pontes não perdeu a deixa: “Estou começando a entender o seu motorista Gabino Ramos”.
“Por quê?” interrogou Zaig, sem subsídios para matar a charada.
“Gabino me contou uma faceta sua, que eu desconhecia, um certo espírito galhofeiro que sobrou até para ele, num jogo de futebol…”
“Faceta que só dedico aos amigos mais íntimos…”, disse Zaig, alegremente, enquanto passava o braço sobre o ombro de Silva Pontes.
“Então obrigado pela parte que me toca”, replicou Pontes, entrando também na brincadeira.
Quando chegaram ao refeitório, Pissinali, que ali já se encontrava, veio cumprimentar Silva Pontes. Zaig o apresentou, dizendo:
“Com este mestre, Pissinali, aprendi a desvendar os mistérios das chapas de Raios-X”. Em seguida, indagou: “O que temos hoje?”
A pergunta devia ser rotina entre os dois porque Pissinali respondeu, sem titubeios: “Carninha moída com purê de batata, arroz com ervilhas, feijão manteiga, verduras e legumes”.
Zaig dirigiu-se a Silva Pontes e perguntou de novo:
“Topas?”
“Claro,” respondeu ele. Depois de se servirem em bandejas de madeira, sentaram-se os três numa mesinha de tampo de mármore branco, para iniciar a refeição.
“O pão, cadê o pão?” pediu Zaig à atendente. E explicou a Silva Pontes: “É um vício de quem vem de família dona de padaria, que funcionava no térreo da nossa residência”.
O pão foi trazido numa cestinha de vime, coberta por um guardanapo de xadrez vermelho e branco. Zaig o partiu com a mão, retirou o miolo que sempre deixava de lado, e começou a comer os pedaços misturados com a comida.
“O que vocês esperam da minha palestra?” indagou Silva Pontes, entre a primeira e a segunda garfadas.
“Que seja agradável como os banhos de mar de Guarapari”, respondeu Zaig, enquanto Pissinali sorria.
No fim da tarde, o tempo, que estava abafado, desfez-se em toró sobre Vitória. Caiu tanta chuva que a palestra de Silva Pontes teve de ser adiada para o dia seguinte.
Apesar do temporal, Zaig e Pissinali, acompanhados de Paulo Veloso, foram encontrar-se com Silva Pontes, no Hotel Sagres, onde o médico estava hospedado.
O Sagres situava-se no centro da cidade, ao lado do prédio dos Correios e Telégrafos. Na parte de baixo, ficava o bar e restaurante, que tinha também o nome do hotel. Ali, Silva Pontes foi introduzido na amizade de Paulo Veloso.
No programa dos quatro estava apenas deixar correr a conversa, em meio a rodadas de tira-gosto, regadas a caju-amigo, batida da preferência de Veloso.
Com sua capacidade invejável de conquistar amigos, Velozão, como o chamava Zaig, foi logo se fazendo íntimo de Silva Pontes. Quando o garçom veio com a primeira rodada de tira-gostos, Paulo pediu que trouxesse o caju separado da cachaça. Logo que o garçom retornou, Paulo apressou-se em explicar a Silva Pontes, numa demonstração de connaisseur, a técnica para degustar o verdadeiro caju-amigo.
“Veja, Pontes: você, que também é um estudioso dos comes e bebes brasileiros, pega um cálice desta Cariacica, uma das melhores cachaças do Espírito Santo, mas não mistura com o suco do caju, como fazem normalmente os leigos obtusos. Esta mistura de caju-amigo é o falso caju-amigo. O verdadeiro é o seguinte: você pega o caju, dá nele umas furadinhas com um palito e põe a fruta inteira na boca. Aí sim, você a mastiga nos dentes, bebe a cachaça por cima, juntando na boca o suco da fruta com a bebida, e engole num trago só. Experimente!”
Pontes provou e aprovou a receita: “Belíssima, Paulo, belíssima!”.
A partir daí, a conversa correu solta, Veloso dominando a cena com suas pilhérias insuperáveis, os cajus-amigos descendo em sucessão goelas abaixo.
Lá pelas tantas, Zaig disse:
“Paulo, o Gabino, que trouxe o Pontes de Guarapari, contou-lhe a história da peixeira, do jogo de domingo.”
Paulo abriu, debaixo do bigodinho à Adolfo Hitler, um sorriso de grande urso brincalhão, e proclamou o que considerava uma menção honrosa:
“Gabino é um dos nossos sparrings prediletos”.
“E também Paulo Fundão e Guilhermezinho”, acrescentou Pissinali.
“Guilhermezinho, não. Guilhermezinho é nosso parceiro”, corrigiu Zaig.
“Mas também entra bem,” disse Paulo, rindo.
“Como, aliás, todos nós. Está aí Cantáridas, que não me deixa mentir,” lembrou Zaig.
“O que é Cantáridas?”, quis saber Silva Pontes.
“Diz pra ele, Paulo, o que é Cantáridas,” instigou Zaig.
O rosto de Paulo se iluminou com a oportunidade que lhe era dada. Antes, porém, virou-se para o garçom, e pediu:
“Cearense, ô Cearense, traz mais uns cajus aqui pra mesa! Parece até que você os está escondendo debaixo da saia de Dona Maria…” E rindo como um garoto travesso, esclareceu para Silva Pontes: “D. Maria é a dona do Sagres.” Em seguida, empurrando a cadeira para trás, como se ganhasse espaço para uma revelação tridimensional, bateu com a mão na coxa de Silva Pontes e disse, empolgado: “Vamos a Cantáridas!”
“Cantáridas, meu caro Silva Pontes, foi uma revista de versos fesceninos que eu, Zaig e Guilherme, irmão de Zaig, criamos quando estudávamos no Rio de Janeiro. Eu e Guilherme fazíamos Direito, na rua do Catete, e Zaig era aluno seu, na Praia Vermelha. Íamos para o Rio no Noturno, o trem da Leopoldina que saía de Vitória de manhã e chegava em Niterói no dia seguinte.”
“A revista era toda feita à mão”, explicou Zaig.
“Artesanato puro!”, atalhou Paulo, os olhos brilhando, em parte pela lembrança saudosa, em parte pelos cajus-amigos que já tinha entornado bucho adentro. “Mas o que valia mesmo era a versalhada em forma de sonetos ou não, quase sempre parodiando poetas brasileiros, num jogo de esculhambação recíproca, entre os três autores. Vou até confessar uma coisa que nunca disse a Zaig, nem a Guilherme: Cantáridas, na minha opinião, marca a chegada do Modernismo no Espírito Santo. Um modernismo ao nosso modo, mas modernismo!”
“Você tem razão, Veloso. Pode-se até dizer que foi o capítulo único do modernismo no Estado, ainda que esculhambativamente falando, mas valorizando a prata da casa,” interveio Zaig, no endosso da opinião de Paulo.
“Esculhambação que sobrava para muita gente”, lembrou Pissinali, que já se deliciara com a leitura de Cantáridas.
“Claro”, disse Paulo, “o que dava para ser aproveitado, aproveitado era. Lapisuinha, por exemplo, sofreu com as nossas musas e nas nossas mãos”.
“Lapisuinha era primo meu e de Guilherme”, esclareceu Zaig, “e também fez medicina no Rio. Especializou-se em otorrino…”
“Como era mesmo aquele soneto do Lapisu?”, perguntou Pissinali, estimulando a verve de Paulo.
“Qual deles?”, indagou o provocado, rindo com a memória de todos os sonetos que tiveram Lapisuinha por personagem.
“Recite um deles, Paulo, em homenagem aqui ao Pontes”, sugeriu Zaig.
Sem perda de tempo, Velozão aceitou o desafio. “Vai o Lapisu de sua autoria, Zaig.” E saboreando os versos entre risos, recitou:
Enrabador de bestas e de vacas
Terror da pastaria e dos currais,
Só de sentir o cheiro de babacas
Lhe despertam os instintos bestiais.
Em cinema, ao seu lado, ninguém senta,
Pois distinção de sexo ele não faz,
Co´a mão bolina quem lhe está na frente.
E bolina co´o cu quem está atrás…
“Veja que imagem maravilhosa, meu caro Pontes — e bolina co´o cu quem está atrás!” enfatizou Paulo, em êxtase poético. E apontando para Zaig: “Olha pra ele, Pontes! Olha pro puto que está aí ao seu lado! É o autor desta maravilha!”
“E o resto do soneto,” perguntou Pissinali?
“O resto nem com mais caju-amigo eu consigo me lembrar”, desculpou-se Paulo, sublimado com as risadas de Silva Pontes.
“Mas do ‘Fodologia’ você se lembra”, provocou Zaig.
“Porque o ‘Fodologia’ é uma obra prima!” assanhou-se Velozão. E com lágrimas de prazer antecipado, explicou a Silva Pontes: “Este soneto fui eu que fiz para Guilhermezinho, que era professor de português no Ginásio do Espírito Santo, na avenida Capichaba. Capichaba com ch,” frisou Paulo. “Zaig também sabe de cor. Vamos recitá-lo juntos?” E declamaram numa só voz:
Quem ontem p´lo Ginásio ia passando
E a aula do Pancinha percebeu,
Ouviu a garotada decorando:
“Eu fodi, tu fodestes, ele fodeu!”
Viu também o malandro com cinismo,
Sufocando o caralho enzinabrado,
Gritar: “Pica com k é galicismo!
Foder com ph é antiquado!”
Depois, pra analisar, na lousa escreve:
“De que tamanho é a baja do servente?”
E: “se o e de boceta é longo ou breve?”
E, como é hora de bater o sino,
Ele sai pra ensinar praticamente
À fogosa cunhada do Gabino…”
“Opa”, é agora Silva Pontes quem diz, entre risadas: “O Gabino também levou a dele…”
“Eu não lhe disse que ele era um dos nossos sparrings prediletos?”, falou Veloso, espumando-se de rir.
A palestra de Silva Pontes começou às 20,00 horas, do dia 8 de dezembro, no auditório do Centro de Saúde, no Parque Moscoso. Era um auditório com capacidade para umas oitenta pessoas, que ficou lotado, notadamente por médicos e políticos.
Silva Pontes tornara-se um nome conhecido no Estado do Espírito Santo, desde que se empenhara na valorização e defesa das areias monazíticas de Guarapari. Com o correr dos anos, sua atuação ganhara ressonância nacional, principalmente quando denunciou a exportação predatória das areias da Cidade Saúde. Ricas em tório, ilmenita, monazita, cério e diversos outros elementos, para aplicações industriais e medicinais, as areias eram contrabandeadas para o estrangeiro, graças à conivência das autoridades brasileiras, em grande parte por ignorar o valor estratégico do material exportado, em grande parte por condescendência com a rapina.
Silva Pontes já havia advertido, no Rio de Janeiro e em São Paulo, que, no campo da radioatividade, sobretudo a partir da fissura do átomo que levou à produção da bomba atômica, o Brasil vinha sendo vergonhosamente sabotado nos acordos e tratados que permitiam a extração das areias, em troca de compensações mesquinhas e humilhantes.
Naquela noite, em oratória inspirada, o conferencista versou mais uma vez este tema, e relatou os estudos que vinha desenvolvendo, desde 1937, sobre os efeitos terapêuticos da radioatividade de Guarapari, no tratamento de determinados tipos de artritismo.
Foi uma conferência de alto nível. Durante mais de duas horas, sem precisar microfone, o orador expôs suas idéias e o seu conhecimento sobre o assunto, relatando casos sobre as pesquisas que vinha fazendo com pacientes portadores de reumatismo e de artritismo crônico. Acima de tudo, fez questão de mostrar as grandes perspectivas que ofereciam as praias de Guarapari, prevendo para o balneário um futuro promissor, no campo do tratamento daqueles males. “Desde que não continuemos sendo uns papalvos na defesa de nossas riquezas minerais”, acentuou, ferozmente, para a platéia atenta.
Papalvo e capadócio eram os termos preferidos por Silva Pontes para definir imbecil.
Encerrada a conferência, Zaig insistiu em levar o amigo até o Hotel Sagres, na perua do sanatório, que ele mesmo dirigia. Lá chegando, o cansaço de Silva Pontes não permitiu que aceitasse o convite do amigo para jantar no restaurante do hotel.
“Obrigado, Zaig, mas prefiro subir para o meu quarto, pedir um chá com torradas Petrópolis, tomar um banho de chuveiro e cair na cama”.
Zaig aceitou as desculpas, e se despediu de Silva Pontes na portaria do hotel. “Amanhã, às 7,00 em ponto, o nosso Gabino estará aqui para devolvê-lo são e salvo às suas ‘pretinhas’ de Guarapari…”
Próximo do hotel, o relógio da Praça 8 bateu onze horas, depois de tocar o prefixo do hino do Estado.
Silva Pontes acordou quando o relógio da praça batia 5,00 da manhã. Sentia-se bem-disposto e estava ansioso para regressar a Guarapari. Uma série de compromissos com seus pacientes do Radium Hotel, agendados para o dia anterior, foram transferidos devido ao adiamento da conferência, provocado pelo temporal.
Gabino Ramos havia se prontificado a ligar para o posto telefônico de Guarapari a fim de que fossem comunicados, no Radium Hotel, os motivos do atraso do médico. Inaugurado há pouco tempo, o hotel ainda não tinha telefone, até porque o serviço de telefonia era raro para o interior do Espírito Santo. De Vitória para Guarapari, era feito por meio de posto telefônico. Silva Pontes, porém, não chegou a saber o resultado da providência de Gabino.
No restaurante do Sagres, o médico fez um desjejum frugal e leu um artigo de A Gazeta, que elogiava a sua conferência, assinado pelo jornalista Mesquita Neto.
Quando Gabino parou a perua ao lado dos Correios, Pontes já o aguardava na porta do hotel, de maleta na mão. Foi o tempo de embarcar e seguir viagem.
Depois de passarem as Cinco Pontes, na saída de Vitória, o médico puxou conversa.
“Você realmente tem razão. O Paulo Veloso é um sujeito admirável.”
“E o senhor só teve uma amostrinha…” concordou Gabino.
“Mas deu para ver… Você sabe o que ele me confessou, quando nos despedimos ontem?”
“Não faço a menor ideia…”
Silva Pontes relatou então os fatos conforme os ouvira do próprio Paulo Veloso na véspera. Quando Zaig convidou Paulo para conhecer o visitante, Paulo quis saber como é que ele era. Então Zaig descreveu o amigo médico como uma pessoa inteligente e agradável, entendido em areia monazítica e no seu emprego na cura de algumas enfermidades.
“O Pontes está divulgando Guarapari como ninguém,” concluiu Zaig, sabendo o quanto Paulo valorizava o balneário, onde seu irmão tinha casa, na praia das Castanheiras.
“Ele gosta de pinga?” quis saber Veloso.
“Creio que sim, pois Pontes aprecia as boas coisas da vida,” respondeu Zaig.
“Então quero conhecê-lo,” disse Paulo.
“Mas tem uma coisa,” preveniu Zaig, preparando o espírito de Veloso.
“O que é?”
“Pontes usa pincenê e pinta os cabelos de caju. Cabelos e costeletas.”
“Não vai me dizer que seu amigo é fruta?” ironizou Paulo.
“Absolutamente. É só para você não aprontar alguma das suas pilhérias com a cabeleira e o pincenê do meu amigo.”
“Se é um pincenê à Eça de Queirós, já está perdoado,” disse Veloso, grande admirador do escritor português. “Quanto ao cabelo acajuado, vou formar juízo depois de conhecê-lo pessoalmente.”
“Sim, e aí?” perguntou Gabino.
“Bem, aí, seu Gabino, o Paulo me disse que quando me viu pela primeira vez, no restaurante do Sagres, ficou de pé atrás com a cor da minha cabeleira. Mas logo depois eu o conquistei completamente quando elogiei sua receita de caju-amigo.”
“Este é bem o Dr. Paulo…”, comentou Gabino.
“Mas tem mais…”, prosseguiu Silva Pontes. “Com aquele jeito brincalhão de abraçar as pessoas sorrindo e armando o bote para uma galhofa, ele me disse, ao nos despedirmos: ‘Vou lhe confessar um segredo, Pontes, que o Zaig já sabe: Gostei tanto de você que já o apelidei de … caju-amigo!'”
Sem poder conter a gargalhada, Gabino teve de parar a perua para não bater numa ribanceira da estrada.
Por nada do mundo Silva Pontes quis que Gabino atravessasse a ponte sobre o canal de Guarapari. “Me deixe em Muquiçaba. Quero fazer a travessia de bote. Ainda tem uns catraieiros que insistem em ganhar a vida atravessando uns poucos passageiros. Quero ser um deles.”
Depois de se despedir de Gabino, o médico embarcou no bote “Guarapari”, o único ali disponível, e passou para o outro lado do Canal. Durante a travessia, deu razão ao barqueiro que protestava contra a construção da ponte, aconselhando-lhe paciência.
“Paciência, doutor, na minha idade? Vou fazer setenta anos e só sei remar. Fui balseiro no tempo da balsa antiga, aquela que se apoiava em canoas, não a que está ali encostada em Muquiçaba. Sofri para economizar um dinheirinho e poder comprar este bote. Agora, com a construção da ponte, como vou viver? Mal sei ler e escrever… Foi por isso que votei em Chiquinho, pra governador.”
Silva Pontes, ainda condoído da sorte do barqueiro, desembarcou no cais de Guarapari e seguiu a pé até a praia das Castanheiras. Queria caminhar um pouco pela orla do mar, como gostava de fazer todas as manhãs. Contemplando a beleza da paisagem, lembrou-se das palavras do barqueiro. E numa associação de idéias, recordou-se também dos versos do boi Jaraguá, que tantas vezes ouvira cantar na cidade:
Guarapari tem um boi que sabe ler,
balança o rabo mas não sabe escrever…
Falou então para os botões do paletó do terno branco: “Irremediavelmente, Guarapari está mudando.”
Quando finalmente chegou ao Radium Hotel, o recepcionista veio lhe comunicar, todo afobadinho:
“O senhor já soube, doutor, que a hóspede do 301 bateu as botas?”
“Dona Marinalva Cunha?”
“Ela mesma. Passou desta para melhor. Morreu ontem e foi enterrada ontem mesmo.”
“E já se sabe do que ela morreu?” perguntou Silva Pontes.
Dando-se uma familiaridade que o médico achava insuportável, o recepcionista respondeu:
“Vou contar no seu ouvidinho, doutor. Mas não diga a ninguém que fui eu que falei. Primeiro disseram que foi suicídio. Depois, mudaram para um tal de ‘colápis’… que deu lá no peito dela”.
Não é possível, pensou o médico. Dona Marinalva, apesar de condenada a uma cadeira de rodas devido a um avançado artritismo nas pernas, era uma mulher bem disposta, em paz com a vida, de coração forte e saudável. A imagem dela, empurrada na cadeira de rodas pelo enfermeiro do hotel, disputando no cassino um lugar junto às roletas, veio à lembrança de Pontes. Além disso, dias antes ele a examinara cuidadosamente, tirara sua pressão, e não percebera qualquer anormalidade sintomática em seu estado de saúde. Não que tivesse experiência bastante para saber que não há bom diagnóstico que barre as surpresas da Morte. Mas sempre fora muito vaidoso da sua acuidade clínica, nos exames que fazia. Qualquer sinal de alteração cardíaca, em sua paciente, não lhe passaria despercebida.
“Onde ela estava, quando morreu?”, tornou a perguntar.
“No jardim do hotel, perto das azaleias. O corpo ficou caído no chão, e a cadeira de rodas, virada.”
“Ela apresentava algum hematoma?”
“Algum o quê…?”
“Algum ferimento, um machucado na cabeça, um galo na testa, uma ‘roncha’ no rosto?” indagou Silva Pontes, pouco faltando para chamar o recepcionista de papalvo.
“Que eu saiba, não, doutor. Ninguém falou em machucado. Mas quem achou ela primeiro foi Dona Maria Silveira, a cozinheira-chefe. Foi bem cedinho, quando Dona Maria chegou pra trabalhar. O corpo estava estendido entre as azaleias. Ela acordou o hotel todo, com seus gritos. Chamou até pelo senhor, ‘Acuda, doutor Silva Pontes, acuda!’ porque tinha esquecido que o senhor estava em Vitória.”
“E depois?”, quis saber o médico.
“Depois, doutor, veio o delegado, que nomeou dois peritos para dar parecer sobre a causa da morte, e mandou chamar o sobrinho de Dona Marinalva, aquele que diz que é parente de barão…”
“O Rodrigo Vilela da Cunha?”
“Este mesmo”.
Rodrigo Vilela da Cunha, sabia o médico, dizia-se filho de uma irmã da falecida, que morava em Belo Horizonte. Tinha se hospedado no Radium Hotel há uma semana, em visita a tia, sob o pretexto de tratar de negócios imobiliários.
“Mas você não disse que todos os hóspedes do hotel acordaram com os gritos de Dona Maria Silveira? Seu Rodrigo não veio ver o que estava acontecendo?”
“Seu Rodrigo não dormiu no hotel, doutor…”
“Onde ele dormiu então?”
“Ah, isso eu não sei, nem quero saber… Só sei que quando ele chegou, e deu com o corpo de Dona Marinalva já coberto pelo lençol, nem quis espiar se era mesmo a tia dele. Podia ser eu, Deus que me livre, podia ser o senhor, Deus que o livre também, que ele ia acreditar. O pior é que até já fechou a conta no hotel, e foi s’embora…”
Silva Pontes ficou pensativo, depois voltou à carga: “Quais foram o peritos nomeados pelo delegado?”
“O sacristão e o padre Manezinho…” disse o recepcionista com um risinho debochado, escondido na palma da mão.
“Um padre e um sacristão?” estranhou Silva Pontes.
“O delegado disse que ninguém entende tanto de morto como um médico, um sacristão e um padre…” respondeu o informante, observando o esculápio de esguelha.
“Tem alguma coisa a mais que você não está querendo me contar?” perguntou Silva Pontes, desconfiado.
“Eu, hein, bebé! Minha alma é limpa como a de um anjo.”
Positivamente o médico não gostava daquele querubim. Sem esconder a irritação, disse:
“Então está bem. Seu nome é Euzébio, não é?”
“Em carne e osso, mas pode me chamar de Zezinho”.
“Vou chamá-lo de Euzébio mesmo,” cortou Silva Pontes. “Se você se lembrar de mais alguma coisa… Euzébio, ainda que julgue sem importância, venha me dizer.” “Pode contar comigo, doutor”, falou o recepcionista, satisfeito com a confiança que estava merecendo.
Silva Pontes desistiu de subir ao seu apartamento, no segundo andar, e dirigiu-se para um pequeno cômodo, ao lado da recepção, que tinha sido cedido pela direção do hotel para atender a seus pacientes. Estava de cenho carregado, quando entrou no consultório improvisado.
Geralmente ele não atendia mais de quatro pacientes por dia. Naquela manhã, porém, abriu uma exceção para receber a professora Sílvia Miranda, a quinta pessoa que o procurou para consulta. Sendo vizinha de quarto de Dona Marinalva Cunha, imaginou Silva Pontes que talvez pudesse sondar a paciente e colher dela alguma informação sobre a falecida.
Sílvia Miranda entrou fingindo um desembaraço que o médico viu logo que era falso. Vestia uma saída de banho estampada, por cima do maiô azul escuro, as pontas se fechando em nó, abaixo dos seios. “Será um nó górdio, à espera de uma espada para rompê-lo?” perguntou-se Silva Pontes. O tipo mignon da professora provocava nos homens o sentimento de proteção que o macho se sente inclinado a dedicar às fêmeas aparentemente frágeis, e ante aquele nozinho distraído, Silva Pontes teve ímpetos de Alexandre, o Grande.
“Bom dia, doutor”.
“Bom dia, Dona Sílvia, melhorou das dores no pulso?”
“Melhorei passando areia preta, como o senhor mandou”.
“É um bom sinal. Não pare. Este é o pulso que a senhorita movimenta quando escreve no quadro-negro. São os ossos do ofício. A senhorita dá aula todo dia, escreve no quadro e os nervos do pulso e dos dedos ficam tensos e inflamam. É uma forma de neurite que pode se tornar aguda e dolorosa, se não for tratada a tempo. Um dia, creio que haverá na medicina um campo especializado para o tratamento das doenças do trabalho.”
“Até lá eu vou estar bem velhinha…,” disse a professora, com um cínico divertimento cravado nos olhos.
“Não seja pessimista. A Medicina faz avanços surpreendentes. Às vezes, chegam a ser assustadores, para quem não os acompanha de perto. Mas o importante é que se possa combater as dores e adiar a Morte”.
Enquanto o médico falava, Sílvia Miranda foi empalidecendo e, de repente, cobrindo a face com as mãos, começou a chorar convulsivamente.
Silva Pontes levantou-se da sua cadeira, por detrás de uma mesinha simples e estreita, de estudante, e aproximou-se da paciente para oferecer-lhe o lenço, que tirou do bolso do paletó.
“Enxugue as lágrimas, professora, e diga-me o que está acontecendo.”
Ela controlou a crise de choro e, ainda com o lenço umedecido na mão, disse:
“Desculpe-me, doutor, mas estou muito nervosa com o que aconteceu com Dona Marinalva. E quando o senhor falou em doença e morte, não pude resistir. Eu era vizinha dela, nossos quartos eram separados por uma porta, e a considerava minha amiga. Foi um choque quando vi seu corpo estendido no jardim. Bem que notei um silêncio incomum no seu quarto, durante aquela noite.”
“Eu compreendo, minha filha”, acumpliciou-se Silva Pontes com a moça, retornando à sua cadeira, com o lenço ensopado, que Sílvia lhe devolvera.
“Na verdade, doutor, hoje eu queria que o senhor me receitasse um calmante”.
“Isso não é problema,” disse Silva Pontes preparando sua Parker 51 para passar a receita. “Mas, talvez, melhor do que um calmante, tenha sido a crise de desabafo que a senhorita teve. Agora me diga: quais as verdadeiras causas de tanta angústia?”
Sílvia ajeitou-se na cadeira, meio desconcertada, e confessou:
“Infelizmente, existem outras razões… Eu acreditei num canalha que me causou um grande mal…”
Num toque de inspiração, Silva Pontes perguntou:
“Por acaso a senhorita está se referindo a Rodrigo Vilela da Cunha?”
Os lábios da professora voltaram a tremer, e o médico preparou-se para outra catadupa de choro. Mas antes que isso acontecesse, a porta do seu improvisado consultório foi aberta abruptamente e Euzébio irrompeu apavorado: “Acuda, Dr. Silva Pontes, acuda! O hóspede do 101 está morrendo. Acho que foi envenenado!”
Mais tarde, enquanto tirava a sesta na varanda do Radium Hotel, acomodado numa espreguiçadeira com forro de lona e com a cabeça recostada numa almofada com franjinhas rendadas, Silva Pontes teve um sobressalto. Do fundo de sua consciência, que boiava entre a vigília leve e o sono pesado, bateu-lhe a percepção de que, em menos de uma hora, na manhã daquele dia, ouvira duas vezes a frase “Acuda, Dr. Silva Pontes, acuda!”
Despertou sob o efeito do insight e caiu em outro tipo de transe, a que denominava especulações de sua razão clínica e investigativa. Inquiria-se, intrigado: “O que eu estou querendo dizer para mim mesmo?”
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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)