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Crime no Radium Hotel, “onde couber”

[Minha nova versão, à luz da sugestão de Reinaldo.]

Suspeita de homicídio confirmada

Quando Silva Pontes voltou de Vitória, onde fora em breve visita, o rapaz da recepção, com uma familiaridade que o médico achava insuportável, bateu-lhe no ombro e disse:

“Pois é, doutor, a velhinha do 302 bateu as botas…” [Reinaldo: Não sei se o Radium Hotel tem três pavimentos.]

Silva Pontes teve um choque.

“O quê?”

“É isto mesmo. O irmão está chegando de São Mateus de teco-teco para levar o corpo…”

“E se mal lhe pergunto, de que morreu a professora?”

“Diz que foi um tal ‘colápis’ lá no coração dela… Foi encontrada caída no jardim, e a cachorrada da rua toda em cima dela…”

Não é possível, pensou o médico. A professora tinha artritismo, lá isto tinha, mas era forte como uma rocha. Viveria muitos e muitos anos. Poucos dias antes ele a examinara, tirara a pressão, estava tudo ok. Disseram que o exame cadavérico tinha sido feito por um padre e um sacristão. Que dupla!

Chegou o irmão da falecida — baixinho, gordo, careca, olhos muitos pretos sobre um nariz adunco. Silva Pontes foi apresentado a ele e lhe disse:

“Suspeito que há alguma coisa nessa causa mortis. Sua irmã, com o perdão da má palavra, era forte como um touro… Minha consciência profissional está gravemente ferida…”

“Para nós também foi surpresa. Na última carta ela diz que estava quase andando e… faz os maiores elogios ao senhor.”

Com alguma interferência política, dois médicos do necrotério de Vitória foram chamados às pressas para novo laudo de exame cadavérico e não deu outra — as suspeitas de Silva Pontes estavam certas. Feitos os testes recomendados pela medicina legal, averiguou-se que Dona Marinalva Cunha, como se propalou aos quatro cantos da cidade balneária, tinha morrido “não de morte morrida, mas de morte matada”. Morrera por asfixia, e as marcas da esganadura ainda estavam visíveis, como um colar de sangue pisado, em seu pescoço.

Com as diligências feitas ficou tarde para levar o corpo para o norte do Estado e o fazendeiro Cunha decidiu enterrá-la ali mesmo, no cemitério à beira-mar plantado, a jusante da igrejinha colonial.

Com a nova versão que se espalhou como fogo em capinzal seco, levantou-se nova e importante questão:

“Quem matou a paralítica? E por quê?”

Alguém chegou até a aventar que a moça perdera muito dinheiro no jogo e se suicidara. Outro dissera que ouviram, na véspera, uma discussão dela com o sobrinho veranista e malandro, que a vivia achacando. O rapaz negou veementemente:

“Eu amava minha tia. E dependia dela para viver aqui. Por que mataria a galinha dos ovos de ouro?”

Padre Manezinho, muito ofendido com a nova versão dos fatos, ele que à falta de médicos na cidade assinou com o sacristão o primitivo e errado laudo, se recusou a fazer as orações finais para a morta, que acabaram sendo feitas por oito velhas beatas, companheiras de jogo de baralho da falecida…

Depois de uma salve-rainha, foi rezado o terço, tirado por uma beata muito gorda e baixinha, olhos brancos e voz arrastada e monótona, e acompanhada por todos os presentes.

Diante dos boatos, o delegado determinou se ouvisse Aldo Cunha, filho de uma irmã da vítima. Ele era alto, atlético, bronzeado, bem vestido, um dandy conquistador. Era a estrela do time de basquete do Saldanha da Gama, um dos principais clubes da Capital.

À pergunta “Onde passou a noite de 8 de dezembro?” ele respondeu:

“Não posso responder, porque estava na casa de uma senhora que jamais trairei.”

E repetiu a história de que a tia, desde que sua mãe morrera, era a única mãe que reconhecia no mundo. Discutiram sim, por causa de dinheiro, “mas isto é comum entre parentes.”

O delegado tomou por termo suas declarações e o dispensou. Ao escrivão disse:

“Vamos ficar de olho nesse cabra safado…”

Enquanto isso, Silva Pontes em suas modorras vespertinas descartou a idéia de que o sobrinho fora o autor do homicídio. Na opinião do médico, um crime praticado pelo Aldo Cunha teria que ter muita pancada, muito sangue e não o delito asséptico que afinal ocorrera.

Lá fora meninos jogavam bola no parque do hotel, o que era terminantemente proibido. A algazarra que faziam doía nos nervos de Pontes, amante do silêncio.

Levantou-se e caminhou, lentamente, para seu apartamento, onde pela milésima vez ia reler o ensaio de Montaigne, “De como filosofar é aprender a morrer”: “Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparação para a morte, etc. etc.”

Tempestade no mar





Da sua janela assistia, emocionado, ao temporal que caía no mar. Vinha chegando a misteriosa noite. Relâmpagos. Trovões. Silva Pontes detestava a chuva forte, voz de um Deus irado. Sentia pena dos pescadores surpreendidos pela tormenta.

Ele amava o silêncio. Os longos silêncios meditativos.

Entre sono e vigília, conversava com o padre Manezinho, e a Maria, mulher do padre, o espiava da porta da cozinha, e era uma antiga ama preta que o embalava em Juiz de Fora. Quando ela fugiu com um boiadeiro, o menino teve febre alta. Um velho de longas barbas chamava-o de longe…

Acordou, e graças aos céus, o temporal se fora. Saiu para dar uma volta.



[Sem título]





“Quando se vê um forte na Escalvada podes crer,” disse seu Lyra, “é coisa dos alemães. Muito peixe vendi a eles, durante a guerra. A gente estava pescando e aquele baleião de aço surgia do fundo do mar. Eles mostravam, suástica no dólmã, moedas de ouro e a gente entendia que desejavam peixe fresco. Pois bem, voltando ao forte, ao anoitecer não havia nada na ilha. De noite, chegaram os marinheiros alemães do submarino, iniciaram a obra, de manhã todo mundo na praia viu, maravilhado, uma fortaleza sobre a ilha Escalvada. Ah! Gente danada… Depois foram embora e levaram o forte com eles… De vez em quando voltam, depende do tempo…”

Atenção: Nova personagem





Silva Pontes caminhava distraído em baixo das castanheiras e trombou com um garoto, cerca de doze anos, com suspensórios de pano, camisa do Grupo Escolar, e nos pés uma dessas sandálias novas, de borracha, recém-introduzidas na cidade.

Ao ombro ele conduzia um pau de vassoura em cujo topo havia uma peça circular de madeira, cheia de furinhos, cada qual com um dos famosos “pirulitos espetados no palito”, uma bolinha caramelada, em forma de cone, e enrolada em papel impermeável. Com o encontro, a armação das balas caiu na areia da praia.

“Oh, desculpe,” disse o médico. “Se houve prejuízo eu pago. Quem é você?”

“Sou o Zito do pirulito, espetado no palito…”

“Qual foi seu prejuízo?”

“Ah. Eu já vendi quase tudo. Só três pirulitos sujaram na areia.”

Silva Pontes deu-lhe uma nota pequena, mas que dava para pagar trinta docinhos. O menino se desmanchou em agradecimentos e desde aquele dia, todas as manhãs, ia vê-lo no hotel, perguntando se precisava fazer algum mandado, de olho nas boas gorjetas… Passou a ser um bom informante, quase o filho que ele não teve.

Silva Pontes adquiriu o hábito de colocar, no jardim, alpiste, painço, quirela para as rolinhas, um que outro pardal, importado da Europa, e que já invadia o pedaço. Ficou na varanda a ver as avezitas. De vez em quando uma dava uma carreira nas outras, que, em defesa, corriam com as asas levantadas.

Um dia, Zito perguntou-lhe:

“Por que o senhor dá comida às rolinhas? A gente nem come elas…”

“Tenho prazer… Há o lado pragmático da vida, meu filho, mas há também um lado estético…”

O menino não compreendeu, mas saiu pensando — rico tem cada idéia…

Um dia o menino chegou com a notícia:

“Doutor, sabe o que estão dizendo?”

“Como poderia saber? Mas, como dizia o grande Dr. Johnson, ‘a curiosidade é uma das características mais importantes de uma mente fértil’, vá lá, diga-me o que você tem em seu balaio de fofocas…”

“Tão dizendo que o prefeito vai abandonar Dona Vivi, que é uma santa (assim dizem) e vai juntar os trapinhos com a viúva do seu Pitani…”

“Nossa,” mostrou-se espantado o médico.

“Mas diz que,” continuou o menino, “ela prefere o Boris da Monazita, que é homem rico e mora na estranja…”

“Nossa, como você sabe de coisas…”

“É o que tão dizendo por aí…”

E foi para a praia anunciando:

“Olha o pirulito, espetado no palito…”

Silva Pontes ficou a matutar sobre o estranho sortilégio que a viúva do milionário estava exercendo na pacata cidadezinha praieira…

Ceia de Natal





Silva Pontes fora convidado para uma ceia de Natal no restaurante do judeu alemão Roberto Sternberg. Não era de seu feitio jantar, mas como o convite partiu de um veranista oficial da FAB, filho de um amigo dele, do Rio, deliberou ir.

O restaurante ficava numa puxada junto ao Armazém Sternberg, no caminho da Fonte (fonte que, segundo a lenda, fora descoberta pelo padre Anchieta batendo o cajado na pedra em frente ao mar).

Este Roberto era dono de próspero comércio em Vitória, no bairro de Santo Antônio. Apesar de judeu todos o chamavam de Alemão, o que foi o seu azar. Durante o quebra-quebra de agosto de 1942, invadiram-lhe o estabelecimento, furtaram tudo e tocaram fogo no prédio. Só não lincharam o proprietário porque ele se refugiou em um manguezal próximo, ficando três dias na lama.

Depois, amigos lhe emprestaram algum dinheiro e ele se refugiou em Guarapari. Agora estava próspero de novo.

Numa longa mesa feita de caixotes de madeira, agruparam-se os jovens de um lado — os Passos, os Bomfim, os Costa, os Aboudib e, na cabeceira, o prefeito, o delegado, Silva Pontes e Heliomar Carneiro da Cunha.

Bebia-se cachaça “Cariacica” à vontade, enquanto se esperava o peru de Natal. O padre Manezinho fora convidado mas alegara ter que rezar a Missa do Galo… Um gaiato disse:

“Ela vai mais é rezar ao pé da Maria…”

Carneiro da Cunha, meio à brinca, meio à vera, perguntou a seu vizinho:

“Como é, doutor, ainda continua investigando a morte da professora?”

“Que nada! Parece que nosso amigo aí, o Lyra, já encerrou o inquérito. Eu quero mais é cuidar de meus doentes…”

Roberto veio da cozinha trazendo um grande peru assado. Um menino trazia travessas menores de arroz. Serviam vinho branco português Grandjó. O Alencar começou a cortar o peru.

Carneiro da Cunha disse, sentencioso:

“Muita gente prefere a carne branca, o peito. Mas a carne mais saborosa é a escura, asas e coxas…”

Silva Pontes retrucou:

“Melhor ainda é uma boa refeição vegetariana…”

Mas o alarido era tão grande que o amigo não lhe ouviu a observação.

Um dos Passos, de nome Alípio, bateu a faca no copo, levantou-se e ensaiou um pequeno discurso.

“Nessa noite tão festiva temos a satisfação em reunir nossos amigos no restaurante do Roberto. E mais satisfação ainda porque esta bela ave assada, que é comer e chorar por mais, foi discretamente furtada do galinheiro do nosso delegado, aqui presente.”

Palmas. O prefeito deu uma gargalhada. O delegado Lyra ficou vermelho como um pimentão, engoliu em seco e deu uma risadinha alvar, enquanto o prefeito lhe batia no ombro, com força de bêbado.

Rapidamente, do peru só ficaram os ossos.

Mais arroz. Mais cachaça. Mais vinho.

Roberto anunciou a pièce-de-resistance: um leitãozinho assado por inteiro, limão nas fuças, que foi conduzido por seis dos rapazes, todos já muito altos…

Desta vez o discurso coube a Rubens Costa, ex-pracinha e funcionário da Alfândega em Vitória:

“Mais uma vez, meus amigos, queremos agradecer a Deus e louvar ao Natal do Cristo. Nossa reunião aqui está sendo abrilhantada por um bacorinho discretamente retirado no chiqueirinho do nosso prefeito Cisne, na noite de trasanteontem. Agradecemos à Madame Violeta ter engordado tão bem este bichinho…”

Desta feita quem gargalhou foi o delegado Lyra.

A ceia continuou animada até de madrugada. Silva Pontes, acostumado a dormir cedo, estava com os olhos fechando e abrindo. Além disso, a zoada se lhe tornara insuportável. Na primeira oportunidade despediu-se e saiu com Heliomar.

Chovera e as ruas de chão arenoso ainda estavam úmidas.

No dia seguinte o Alemão procurou as mulheres do prefeito e do delegado propondo pagar-lhes o prejuízo das criações furtadas. Não queria complicação com as “otoridades”. Dona Violeta foi enfática:

“Qual o quê… Coisas de rapazes… Ainda tenho uma leitoinha para o Ano Bom…”

Dona Zazá, esposa do delegado, do alto de seus cem quilos, foi implacável:

“Tem que pagar trintamirréis… Eu tive dó quando roubaram meu peru.”

Pagou e não bufou e ainda saiu rindo das expressões usadas pela virago.



Pescaria em alto mar





Um senhor, José Antônio Pacheco, administrador da Santa Casa, convidou Silva Pontes para uma pescaria de alto mar. Tinha horror às viagens marítimas, tanto padecera nas travessias Brasil-Europa-Brasil. Por delicadeza, no entanto, aceitou. Tomou um farto café da manhã, seu fatal erro para quem vai ao mar: bolinhos de arroz em forminhas de empada, bananas da terra cozidas, com muito açúcar e manteiga. E eis que em manhã que prenunciava exuberante sol, madrugadinha ainda, boné na cabeça, Silva Pontes compareceu ao cais, onde embarcou na lancha Mareiro, “vento que sopra do mar, propício à navegação”.

Os companheiros estavam todos em sua faixa etária, 50/60 anos, e eram o dono da lancha, seu Pacheco, o sr. Homero Delacqua, comerciante da Capital, o tabelião Lyra e dois pescadores locais, o Neca Barros e o Juca Norbim.

Logo à saída, Silva Pontes se mostrou interessado pelo sistema de pesca: iam curicar com umas colheres de metal importadas dos Estados Unidos. Soltavam-se as linhas no mar, e o peixe, vendo a colherzinha brilhar, abocanhava-a, ficando preso no anzol anexo.

Mas com pouco tempo, veio-lhe um terrível enjoo e pôs cargas ao mar, o café da manhã em meio a bílis pura. Sem qualquer melhora, apesar de seu Lyra ter dito:

“Amigo, olhe para o horizonte.”

Apesar do conselho do tabelião, continuou mareado. Ajudado pelo Norbim foi deitar-se na cabine da lancha. Foi pior a emenda que o soneto. O cheiro do óleo que vinha do motor unido à maresia e a um cheiro incrível de peixe podre fez com que o pobre doutor começasse a lamentar-se do dia em que nasceu.

A lancha, no alto mar azul, muito longe da praia, para os que a observavam da terra, parecia pequeno asteroide perdido no espaço.

O dono da lancha veio oferecer-lhe um sanduíche, às vezes melhora mas o médico disse-lhe:

“Dou metade do que tenho para o senhor voltar à terra firme…”

Costearam a ilha Escalvada, e como o Dr. Silva Pontes era o convidado de honra, resolveram voltar, ainda mais que já haviam pescado cinco sardas cavala, de bom tamanho. Continuaram até Guarapari curicando, e ainda pescaram um chicharro de quase dez quilos.

Quando Silva Pontes se viu na ponte de cimento armado em que atracou o Mareiro, perdeu sua natural lhaneza, e gritou alto e bom som:

“Eu queria saber qual foi o miserável que me levou para alto mar…”

Amor, tanto amor





“O senhor, tão amoroso, nunca se casou?” perguntou, ainda em êxtase, a camareira, uma cabocla sestrosa, deitada na cama king size do apartamento do médico.

Silva Pontes olhou pensativo para as pás do ventilador de teto. Ficou muitos minutos assim, tantos que a moça supôs que ele nada fosse responder.

O médico empostou a voz e falou, pausadamente:

“Em Berlim, fui noivo. Chamava-se Lotte e tinha 19 anos. Eu, aos 31 anos, ainda era residente no hospital, pois não conseguira sair da Alemanha por causa da guerra, a primeira. Isto foi em 1917, 1918. Ela era loura, de olhos azuis, covinhas no rosto quando ria, grandes tranças, uma autêntica fräulein. Moça rica, da aristocracia prussiana, prestava serviços voluntários na seção de pediatria. Nós, os internos, éramos proibidos de qualquer contato com essas moças de alta esfera, que vinham prestar ajuda ao hospital. Mas, como bom brasileiro, via-a e me apaixonei. Com jeitinho, um sorriso aqui, um bilhete ali, uma caixa de bombons, escassos na época, começamos um romance que se poderia dizer tórrido. Descobrimos, com pouco tempo, que íamos ter um filho. Decidimos casar escondidos. No dia aprazado, papéis feitos às escondidas, Lotte viria me buscar na mansarda onde morava. Chovia e ainda havia uma lama suja da neve do inverno, que terminava. Eu morava numa íngreme ladeira. Lotte, o meu pequeno filho — descobrimos depois que era homem — uma chapeleira à mão, escorregou e caiu nas pedras do calçamento. Foi atropelada por um carroção do exército que descia à toda. As patas do cavalo esmagaram seu ventre grávido, esmagaram todo meu futuro. Com os gritos, na rua, cheguei à janela e vi o triste espetáculo. Lotte e meu filho (nunca lhe dei um nome, mas sinto que ele se chamaria José) estavam mortos. Prometi a mim mesmo jamais me casar, nunca ter filhos…”

Talvez fosse impressão, mas o médico vislumbrou lágrimas na face da camareira.

Um cassino tolerado





Silva Pontes sabia que havia no hotel um cassino clandestino. Desde o governo do general Dutra, dizem que a pedido de sua esposa, Dona Santinha, católica e ultraconservadora, todos os jogos de azar — isto é, aqueles que não dependem de talento ou habilidade, e simplesmente de sorte para o ganho — estavam proibidos no Brasil. Desde o popular e tolerado jogo do bicho, inventado no fim do século XIX pelo Barão de Drumond, para sustentar o Jardim Botânico. A polícia, no entanto, fazia vista grossa, permitindo que, aqui e ali, proliferassem casas de tavolagem. Não os magníficos cassinos que o médico conheceu em Monte Carlo, mas tugúrios mal iluminados, onde os jogadores satisfaziam as suas necessidades psicológicas de emoções fortes.

Silva Pontes achou — ele mesmo se considerava um casmurro — que o jogo era coisa de crianças, para se adequarem às regras da vida, ou de adultos imaturos. Porém, por curiosidade, foi visitar o cassino do Radium Hotel, situado numa ala lateral do prédio, com entrada franca para maiores.

Admirou-se do luxo e do bom gosto. Grandes cortinas não deixavam que a luz passasse para a rua e ventiladores de teto arejavam o ambiente. Muita gente bem vestida tentando a sorte. Duas roletas, uma mesa de bacará, diversas mesas de pôquer, e, no fundo mais afastado, um bingo eletrônico, novidade no Brasil, com predominância de apostadores idosos.

Deu uma pequena volta pelo local, observou fisionomias tensas. O gerente convidou-o para uma roda de baralho, mas, delicadamente, ele recusou, e foi saindo de fininho. Por certo, aquele não era seu ambiente.

Soube que, de quando em vez, quando a imprensa denunciava, ou em época de eleições, havia batidas policiais adredemente avisadas.

“Dia tal vamos fechar o jogo.”

O cassino ficou fechado dois a três dias e reabriu logo. Graças ao cassino é que grandes artistas internacionais e nacionais como Lucho Gatica, Sílvio Caldas, Orquestra Severino Araújo tinham se apresentado no teatro do Hotel.

Consta que, certa feita, numa das investidas da polícia, uma velhinha solicitou:

“Ah, seu guardinha, deixa cantar mais uma pedra. Estou pela boa…”

Nas suas matutações, meio dormindo, meio acordado, Silva Pontes se perguntava:

“Por que os legisladores não regulamentam logo essa porcaria do jogo de azar, que deveria chamar-se jogo da sorte?”

Ele sabia o porquê, mas calado ficava.

Onde couber [o manuscrito tem apenas esta indicação]

Março chegou. Carnaval passou, desanimado como sempre. O conjunto musical local, com cinco músicos só conhecia músicas antigas: Meu periquitinho verde, Amélia…

Agora chegaram os meses bons de Guarapari, os poucos veranistas tendo voltado para suas casas, em Vitória, ou no interior do Estado, ou até alguns do vizinho Estado de Minas.

Silva Pontes cuidava de seus seis doentes restantes, fazia prognósticos sobre futuros progressos, e aguardava a vinda de uma doutora em física, da PUC do Rio, que viria fazer medições com um contador Geiger, para analisar a radioatividade das areias das praias locais.

A moça atrasara porque o equipamento estava preso na Alfândega, e o médico, em gozo de licença-prêmio no Hospital Central do Rio, foi se deixando ficar no dolce far niente.



Onde couber [apenas com esta indicação]

Padre Manezinho e o sacristão Dodô eram os únicos letrados da cidade, com exceção, talvez, do Wilson Laranja, da Agência Municipal de Estatística. Os demais eram pequenos comerciantes, serventuários da Justiça e pescadores, donas de casa, todos semi-analfabetos.

Por isto eram chamados, algumas vezes, como peritos leigos, para firmarem laudos em inquéritos policiais.

Uma vez, por ignorância ou preguiça, usando o Manual do Delegado de Polícia, do Dr. Eurípides Queiroz do Valle, usando apenas a numeração constante da foto de um cadáver, não tiveram dúvida:

“A bala entrou no 1 e saiu no 3…”

[Capítulos escritos a posteriori, entregues esparsamente, sempre precedidos da observação: “Onde couber”.]

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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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