Duas Palavras
Este livro, à moda de Ellery Queen, é fruto de antiga e fraternal associação criativa entre Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco. Realiza, a quatro mãos, o primeiro romance policial “capixaba” do século XXI, e talvez o primeiro romance policial “capixaba” de todos os tempos, se não levarmos em conta o livro de Azambuja Suzano, do século XIX.
O Dr. Silva Pontes foi inspirado no famoso e humanitário Dr. Silva Melo (1886-1973), tragicamente morto por seu mordomo e descobridor das maravilhas curativas de Guarapari. O padre Manezinho é o padre Manoel do Nascimento, cuja vida é descrita em A Centopéia, de Jayme Santos Neves (Vitória, edição do autor, 1989, p. 81 a 85).
As demais personagens são misturas de pessoas que viveram, à época, em Guarapari ou moraram na imaginação dos autores.
1. Um corpo no jardim
Os cães de rua, invadindo o amplo jardim do Radium Hotel, à beira da praia da Areia Preta, é que, com seus latidos, deram o alarme. Já lambiam e mordiscavam um cadáver desnudo.
Dona Maria Silveira, a cozinheira-chefe, e suas duas auxiliares, vieram correndo para ver que tanto barulho era aquele.
Encontraram o cadáver de uma hóspede, Dona Marinalva Cunha, em decúbito dorsal, sobre uma moita de azaléias. Dona Maria gritou:
“Socorro, socorro!”
As auxiliares, Pretinha e Jorete, correram para o interior do hotel, em busca de ajuda. Logo uma pequena multidão de hóspedes, empregados e curiosos se formou em torno do corpo.
O gerente, Delduque Bonfim, telefonou para a delegacia e, peremptório, disse: — Afastem-se. Não mexam em nada.
Num jipe velho, o delegado leigo Manoel Lyra chegou e dispersou os curiosos. Soube que era hóspede do hotel o famoso Dr. Silva Pontes e logo o convidou para presidir a autópsia.
O médico, descobridor das areias radioativas, se desculpou com sua próxima viagem para o Rio e eximiu-se da função. — Então — disse o delegado — como faço sempre, vou chamar o sacristão e o padre Manezinho para peritos… — E se justificou: — O sacristão fez até o 3° ano de medicina…
Silva Pontes, embora tenha se desobrigado do encargo, observou detidamente o local em que o corpo caíra, o possível ponto de queda na varanda do segundo andar do hotel, e, com surpresa, ao virar-se o corpo, verificou tratar-se de uma quase paralítica, sempre em cadeira de rodas, vítima de avançado reumatismo.
2. O Radium Hotel
Não se pode dizer que o prédio do Radium Hotel é bonito. Grande, isto ele é, um sobradão em forma de V, com mais de dois mil metros quadrados de jardim externo.
Sua construção fora planejada por um amazonense que estudara em Vitória, Adalberto Ferreira do Vale, presidente da Previdência Capitalização. Na falta de recursos ele vendera o prédio ao Governo do Estado, que o concluiu, aproveitando a planta previamente desenhada.
O hotel competia com os outros dois hotéis da localidade: o Vernistas e o Guará, menores e não tão bem localizados.
O Dr. Silva Pontes soubera na Suíça das virtudes radioativas das praias de Guarapari e resolvera visitar a pacata localidade de pescadores, 60 km ao sul de Vitória, famosa pelo discurso do vereador Quinca Nunes que dissera que Guarapari “era país formoso e hereditário, onde se respira o ar por conseqüência, tendo de um lado o oceano marital e, do outro, o oceano matagal…”
E também porque seu cemitério, para ser inaugurado, logo abaixo da secular Matriz, e olhando para o mar, precisou pedir um defunto emprestado à vizinha cidade de Benevente, onde morrera, em 1597, o padre Anchieta.
Silva Pontes pegou seu Ford 29 e enfrentando a falta de estradas saiu do Rio e foi a Muriaé, em Minas Gerais, ao norte, desceu para leste, em São Miguel do Veado, Cachoeiro de Itapemirim, e três dias depois e dois pneus trocados, chegou à paradisíaca cidade, então com cerca de 400 moradores, a maioria pescadores. Examinou detidamente as condições de salubridade, as virtudes radioativas da monazita e ilmenita, abundantes nas praias da cidade, e voltando ao Rio, passou a receitar para seus doentes de reumatismo que viessem enterrar-se nas areias de Guarapari.
Os resultados foram miraculosos, e com a propaganda boca a boca, em pouco tempo um fluxo de “visitantes” se dirigia, todos os anos, à bela região praiana, em busca de melhoras para seus males ou simplesmente pelo prazer de gozar de clima tão agradável, mesmo nos meses mais quentes.
Quando o Radium Hotel foi inaugurado, o Governo do Estado destinou uma suíte permanente ao grande divulgador da cidade.
3. Um laudo duvidoso
O sacristão Honorato chegou com o padre Manoel, mas logo se viu que, embora o primeiro conhecesse mais anatomia, era o padre quem dirigia o espetáculo.
De posse do Manual do Delegado, de autoria do desembargador Eurípides Queiroz do Valle, que o Governo distribuíra a todos os municípios, o padre lavrou o auto de corpo de delito, e concluiu, sem tergiversar:
“Foi suicídio.”
Observava-o uma figura altiva de pincenê, costeletas bem aparadas, botinas, e cabelos visivelmente pintados de roxo.
O delegado Lyra olhou para o médico carioca, mas este se manteve discreto, sem nada comentar. Como não fora apresentado aos peritos leigos, relutava em pronunciar-se sobre o laudo. Porém sentia que algo estava errado. Chamou o delegado, em particular, e expôs-lhe suas dúvidas:
“Esta mulher foi morta por asfixia. Eu a examinei em vida e com as juntas tomadas pela artrite ela não conseguiria este feito miraculoso de lançar-se tão longe no jardim.”
O delegado chamou o padre e o sacristão e lhes comunicou as objeções do médico. Padre Manezinho, apresentado à sumidade, subiu nas tamancas:
“Embora se lhe negue o repouso em solo sagrado, o veredicto é mais compatível com o interesse social…”
“Mas não com a verdade…”
“Ora, nem Cristo quis responder o que era verdade. Está em São João, 18:38, a conferir.”
O delegado conciliador:
“Façamos um trato. Fica suicídio por uns dias, e eu investigo. Aí então se mantém ou não o laudo.”
O escrivão, que fora investigar o quarto da morta, em companhia do soldado Ananias, trouxe à baila dois fatos surpreendentes: 1) Uma carta do irmão dela, de São Mateus, informando que, em vista da baixa do café, ele não poderia mais mantê-la naquele hotel de luxo; 2) quinze mil cruzeiros, em notas, importância muito alta para quem ia suicidar-se, que estavam no pequeno cofre que o hotel mantinha em todos os aposentos.
A carta, pensou o médico, justificaria o suicídio; o dinheiro seria, talvez, o móvel do homicídio.
“Sei não, neste pau tem formiga…”
4. Pequena biografia da falecida
Afinal, quem era Dona Marinalva Cunha que, com tanta pompa, ocupava a suíte presidencial do Radium Hotel desde o dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade?
Era uma simples professora primária em São Mateus, norte do Estado. Acometida de um reumatismo crônico, foi aposentada, com proventos proporcionais. Inválida, com inflamação na articulação do joelho, usava uma velha cadeira de rodas e, por recomendação do farmacêutico Silvares, que lhe receitava salicilato de sódio, banhos de luz e uma estada em Guarapari, veio com recursos que lhe foram fornecidos pelo irmão, rico proprietário da Fazenda da Cachoeira, às margens do Cricaré. (Nisso havia uma ponta de remorso fraternal, pois, quando do inventário do velho Leandro Cunha, conhecido como Lelé, o irmão fraudara a herança de Marinalva, então menor e sob sua tutela).
A moça fez espetaculares melhoras enterrando-se nas areias pretas e já dava até uns passinhos. No cassino clandestino do Hotel jogava sempre alto. Ouvido pelo delegado, José Wilson, o jovem gerente da tolerada casa de jogo, disse que não podia precisar, mas era bem possível que os 15 mil encontrados no cofrezinho do apartamento fossem lucros do jogo.
O irmão veio imediatamente de São Mateus, num avião teco-teco fretado, e tomou todas as providências para remover o corpo para sua cidade e, desde logo, requereu, como único herdeiro, a devolução do dinheiro que, incontestavelmente, pertencia à falecida.
5. Sobre o Padre Manezinho
Silva Pontes fora a Vitória almoçar com seu velho amigo, o pneumologista Dr. Jayme Santos Neves. À sobremesa, tomando um licor na varanda do apartamento do colega, de onde se descortinava bela vista do Parque Moscoso, falou-lhe da estranheza que lhe causara um padre legista leigo.
“Pois olha, Pontes, eu sou grande amigo do Padre Manezinho. Ele foi capelão do Exército no 3º RI da Praia Vermelha, ao tempo da Intentona Comunista de 1935. Lá ele atendia tanto aos militares quanto aos presos políticos. Fez-se amigo destes e levou, escondidas na batina, cartas para seus familiares. Certa feita, num arroubo de alegria, saudou-os, erguendo o braço esquerdo com o punho fechado. O guarda o revistou e ele também foi preso por causa das muitas cartas e pequenas encomendas. A pedido do Cardeal Leme foi solto e removido para a remota paróquia da Serra do Espírito Santo.”
“E como ele foi parar no país calmoso e hereditário?”
“No dia de São Benedito, algumas velhas beatas entraram na sacristia e encontraram o santo pintado de branco. No inquérito que se abriu, o padre disse que estava restaurando a imagem, mas as devotas consideraram aquilo o supremo acinte. Donde o bispo Dom Luiz, que não quer confusão, o removeu para Guarapari, onde ele reza missa só para os pescadores locais, acrescidos de uns poucos veranistas, nesta época de calor. A propósito, determinado dia, segundo contam, o padre notou que não havia mais ninguém na missa. Perguntou ao sacristão e ele disse que dera xeréu nas redes, que seriam fatalmente destruídas se não fossem retiradas logo. O padre suspendeu a celebração e disse afobado: ‘E o que você está fazendo que não vai puxar a nossa rede?’.”
“Homem assaz curioso”, foi o comentário do cientista. “Vou procurar conhecê-lo melhor…”
“Dê-lhe minhas lembranças”, pediu Jayme.
6. A cozinheira faz importante revelação
É fácil de compreender que a morte de Dona Marinalva Cunha causou forte comoção na cidadezinha praiana. Suicídio? Homicídio? As opiniões se dividiam.
No amplo salão de almoço do Radium Hotel, Silva Pontes palitava os dentes, hábito que adquiriu desde que colocara um incômodo “root” na boca. A cozinheira do hotel foi-se chegando e lhe perguntou se gostava da moqueca de badejo…
“Sim, como não? Seu tempero é de primeira água…”
A empregada tomou coragem, perante tão elevada figura, e:
“Pois é, que coisa estranha, a morte de Dona Marinalva. Ainda ontem estava aí jogando buraco com a gente… E sabe, doutor Silva Pontes, na última tarde que jogamos (à noite ela ia para o cassininho, creio que o sr. já sabe), ela disse uma coisa que não me sai da cabeça.”
Sem mostrar curiosidade, o médico disse apenas:
“Sim…”
“Pois é, Dona Marinalva disse que nem todas as mortes naturais que acontecem aqui em Guarapari são tão naturais como se propala… Que é que o sr. acha disso?”
“Eu não acho nada, minha senhora.”
E deu início a um pequeno cochilo que parecia não ter fim.
7. Informações sobre as areias raras
Daquele pequeno “cochilo” que durou mais de uma hora surgiu na cabeça de Silva Pontes uma certeza: a morte do hotel estava relacionada com alguma morte trágica (e possivelmente criminosa) anterior. Decidiu ir conversar com o Padre Manezinho, na fresquinha da tarde.
Saiu pela Areia Preta, a mais famosa entre as trinta praias da vila municipal. Gostava de acompanhar aquele povo crente, enterrado na areia, em busca de cura para seus males reumáticos. Aquilo era invenção dele e ainda ia conseguir que se fizesse um pequeno hospital para estudar, cientificamente, os efeitos da radioatividade sobre o reumatismo.
Num guarda-sol perto da ponta do Siribeira, encontrou seu velho conhecido, o famoso cronista Rubem Braga, copo de uísque à mão.
O cronista o apresentou ao pintor Carybé, sempre silencioso, e disse:
“Estamos, eu e o Carybé, por contrato com o Governo, fazendo um livro de crônicas e desenhos sobre o Estado. Mas hoje é sábado, e como nos poemas de Vinícius e Ascenso Ferreira, ninguém é de ferro…”
“Você está bem e não precisa destas areias radioativas.”
O cronista, meio alegrinho, retrucou:
“Mas aqui estão as velhas milionárias entrevadas e suas sobrinhas casadouras… Falando sério, ontem passamos o dia a entrevistar o Boris Ackermann, um judeu danado de sabido (pleonasmo, não?), diretor da Monazita e Ilmenita do Brasil Ltda.”
Silva Pontes interessou-se logo pelo assunto, pois se relacionava diretamente com suas investigações médicas.
“Conte-me o que você registrou…”
O cronista não se fez de rogado:
“No fim do século 19 um inglês de nome Arthur Gordon obteve concessão para explorar estas areias desde Porto Seguro, na Bahia, a Marataízes, no sul do Espírito Santo. As areias iam para a Europa como lastro de navio, sem deixar nenhuma vantagem para o país. Depois ele vendeu a concessão a uma empresa francesa, Monazitique e Ilmenite du Brésil. Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas passaram a controlar a empresa e Boris Ackermann, então gerente, convenceu Oswaldo Aranha da necessidade de nacionalizar a empresa, criando-se então a firma Mibra, Monazita e Ilmenita do Brasil, sob a presidência do secretário da Fazenda do Estado. É isso aí… Agora parece que o Boris está às turras com o prefeito…”
E concluiu, dando uma golada grande na bebida:
“Sob o pretexto de, com as areias, fazerem lixas industriais e camisinhas para lampeões, estavam tirando minerais raros — plutônio, urânio — que eventualmente serviram ao projeto Manhattan, que deu origem à bomba atômica…”
E deu uma grande gargalhada, chamando a atenção dos poucos veranistas que ainda estavam na praia.
8. Visita ao Padre Manezinho
Agora, sim, Silva Pontes pôde encaminhar-se para a Casa Paroquial no outro lado da cidade. Na praia do Meio alguns garotos jogavam bola de borracha, que correu em direção ao médico.
“Chuta, vovô, chuta ela…”
Não se fez de rogado. Deu um bico na bolinha, e desajeitado como ele só, a bola subiu, atravessou a rua e foi espatifar uma vidraça do Carneiro da Cunha…
O dono da casa apareceu na varanda gritando com os meninos e com a bola cortada em pedaços, na mão.
Imediatamente Silva Pontes foi justificar-se perante o velho amigo Heliomar, prontificando-se a pagar o prejuízo.
“Que é isto, Dr. Silva Pontes. De jeito nenhum… Foi um infelicitas facti,” disse, lembrando-se que, embora fiscal federal aposentado, era bacharel em direito como toda gente.
Despediram-se e finalmente desceu a rua principal em busca do padre.
Encontrou-o na sala da frente da colonial Casa Paroquial, fazendo malas com o aproveitamento de caixas de banha. Estava, diligentemente, colocando a fechadura numa mala vermelha.
Recebeu friamente o médico e só se abriu quando descobriu que ambos eram mineiros e de cidades próximas. O médico de Juiz de Fora e o padre de Lima Duarte, ali pertinho. [Renato se esqueceu que Silva Pontes foi dado antes como carioca].
Silva Pontes só não disse que estudara no Granberry, colégio evangélico de inspiração norte-americana.
“A que devo a sua honrosa visita, doutor?”
“Uma dúvida que eu tenho. Queria que o senhor me dissesse quais, na cidade, os casos recentes de mortes acidentais, que o senhor tenha examinado como legista leigo…”
O padre colocou o dedo sujo de cola na testa, pensou e disse:
“Foram poucos… Na Olaria, um queimado que caiu no forno… Hum… Hum… Um caminhãozinho que caiu da balsa e o motorista morreu afogado…”
E depois de algum tempo:
“O caso mais comentado foi a morte do milionário Laurindo Pitani, um homem muito herege e o mais rico da cidade. Levou, na protuberância occipital externa, uma pancada da vela bujarrona do barco dele, com conseqüente fratura do crânio e comoção cerebral… Foi encontrado morto no barco Andaluzia.”
“Bingo. É esse aí…”
“É esse aí, o quê?”
Silva Pontes fez-se de misterioso, mas adiantou:
“Eu acho que esta morte tem ligação com a da professora Cunha…”
O padre abriu os olhos incrédulo.
“Estais brincando?”
“É o que veremos…”
Uma bela afro-brasileira, jovem baixinha e gordota, chegou à porta e disse:
“Senhor padre, o almoço está servido…”
O padre convidou o médico para acompanhá-lo no repasto de peixe frito, mas este, polidamente, recusou:
“Então o senhor fica intimado para a sexta-feira que vem. A Maria vai fazer torta capixaba, ouviu falar?”
E, à guisa de despedida, disse:
“A Maria eu não posso apresentar ao senhor como minha esposa porque a Santa Igreja Católica não deixa, mas não posso dizer que é minha empregada porque ela dorme comigo…”
Ante o espanto do médico saiu arrastando as alpercatas em direção à sala, deixando Silva Pontes sozinho no salão. Ele resolveu, por isto, sair de fininho, à francesa como se diz…
9. Levantamento urgente
Como o fórum era próximo, Silva Pontes passou por lá. O escrivão Lyra (irmão do delegado), devia-lhe favores no tratamento gratuito da esposa e fez-lhe muita festa.
“A que devo a honra de sua visita?”
“Eu queria um favor seu… Preciso dar uma olhada no inventário do senhor Laurindo Pitani.”
“Ora, está aqui em cima da mesa, para levar para o juiz…”
Silva Pontes olhou a petição e as declarações iniciais, e se surpreendeu com um pedido, do final de novembro, cinco dias depois da morte do milionário, para levantamento de vinte mil cruzeiros, para despesas urgentes, inclusive da reforma da casa de moradia… O pedido fora imediatamente atendido.
Mais uma vez em seu cochilo no salão do Radium Hotel o médico pensou:
“Nesse mato há coisa… Está me cheirando a chantagem… Só não sei por quê, mas vou descobrir.”
10. Intermezzo musical e amoroso
Silva Pontes não gostava de barulho, sofria com seus efeitos e dizia:
“Quem não sente considera frescura…”
Mas aquela noite todos os hóspedes do hotel, uns vinte mais ou menos, estavam convidados para uma serenata de Sílvio Caldas.
O caboclinho querido, como era chamado, viera, em outubro, cantar no hotel. Sob o patrocínio do Heitor Latorraca, arrendatário do Cassino (clandestino e tolerado pela polícia e pela Justiça), gostara da cidade e dois meses depois ainda se deixava ficar, comendo, bebendo e cantando. Dizia que já lançara suas músicas de Carnaval, e voltaria para o Rio depois do tríduo momesco.
Pois naquela noite de segunda-feira, Silva Pontes se viu sentado na pedra do Trampolim, entre a praia das Virtudes e a das Castanheiras, ouvindo Sílvio Caldas, dedilhando seu violão e cantando velhos sucessos sentimentais, “sertaneja se eu pudesse, se papai do Céu me desse um cantinho pra morar…”
Além dos veranistas, o povo da cidade também se fez presente e o recital ao ar livre (e gratuito) se prolongou até de madrugada.
Finalmente o cantor se despediu do público cantando “Aquarela do Brasil”.
Na volta, o grupinho do hotel se compactou, mas Silva Pontes, mais lento, ficou um pouco para trás. Dona Débora Almeida, uma linda senhora vitoriense, cujo marido comerciante na Capital só vinha nos finais de semana, distanciou-se dos demais e disse:
“Vou fazer companhia ao grande médico…”
Com muita familiaridade deu-lhe o braço e, com surpresa para Silva Pontes, cravou-lhe as unhas afiadas no pulso, o que era uma notória manifestação histérica.
Diante disso, quando chegaram ao hotel, Silva Pontes em vez de entrar no seu apartamento, sem uma palavra sequer, entrou nos aposentos da moça, para experimentar do mel que aquela abelhinha produzia. Excelente mel, de flores de laranjeira, capaz de acalmar qualquer varão.
No domingo, Débora Almeida, com seu maiô vermelho de duas peças, estava muito feliz na praia, com seu marido e amigos. Contava o sucesso da serenata com o grande Sílvio Caldas. Só não relatou o epílogo.
11. Suspeita rechaçada
Silva Pontes foi procurar o delegado Manoel Lyra.
“Amigo, estou convencido que a morte de Dona Marinalva Cunha está ligada, por qualquer laço que ainda não descobri, com a do senhor Laurindo Pitani..”
“O quê? O senhor me desculpe, doutor, eu o respeito muito, mas o senhor anda lendo muito romance policial… O homem ia pescar… Ainda estava escuro… O mastro bateu-lhe na cabeça… Morte acidental. A mulherzinha está sem melhora no seu artritismo. Pula da varanda do hotel. Que tem (com perdão da má palavra) o cu com as calças?”
“O senhor se esquece dos quinze mil cruzeiros no cofre… É dinheiro pra chuchu, dá para comprar cinco fusquinhas…”
“Este dinheiro ela ganhou no jogo… Está mais que provado…”
O médico lançou seu último trunfo:
“Eu vi no inquérito, anexo ao inventário, que não encontraram a chave da caminhonete do falecido. Tiveram que rebocá-la para a garagem dele e trouxeram um chaveiro da Capital para fazer a chave…”
“Vamos supor que quando o Laurindo levou a pancada estivesse com as chaves na mão e elas tivessem caído no canal. Que me diz a isto, doutor detetive?”
O médico não disse nada.
12. A torta capixaba
Era sexta-feira e, conforme combinado, Silva Pontes saiu do hotel para comer a torta do padre. Passou antes na agência dos Correios, retirou de sua caixa postal A Tribuna da Imprensa, de cinco dias atrás, jornal do Carlos Lacerda de que era assinante, e três cartões atrasados com votos de boas festas, que rasgou e deixou na cesta que estava à porta.
Passou no armazém do Passinho, onde só havia um vinho português Alvarelhão, que comprou para dar de presente ao senhor vigário. Chegando à casa paroquial encontrou o padre, na porta, em animada conversa com três pescadores. Cumprimentou a todos e verificou que o mais falante dos três era também da família Lyra, o José, conhecido como Irmão. Não entendeu bem a história, pois chegou no meio, mas referia-se a um sacristão que roubava rapé do padre, e o substituía por merda de gato seca…
De repente, eis que desponta para os lados do canal, saindo do prédio da Prefeitura, e acompanhada de um cidadão de terno e que logo se soube que era o Dr. Monteiro, de Vitória, eis que surge uma bela morena toda vestida de preto.
José Lyra logo falou:
“Tem roupa na corda…” o que, no jargão local, significava que não poderia continuar com a conversa enquanto a moça não passasse.
Silva Pontes, curioso, perguntou ao padre:
“Quem é esta miss Guarapari?”
“Ora, meu caro, é Dona Lili Pitani, viúva daquele falecido milionário cuja morte chamou sua atenção outro dia…”
Quando a gente aprende uma palavra nova se surpreende nas horas ou dias seguintes ao vê-la, com freqüência. Assim também ocorre com uma pessoa. Porque, depois que o padre e Silva Pontes entraram, e os pescadores se dispersaram, Silva Pontes começou a jogar conversa fora dizendo que “é necessário ensinar nosso povo a plantar, a colher, a comer, a pescar e a agir.”
O padre ficou indiferente às palavras do médico, que prosseguiu:
“A culinária é arte superior…”
E fez um rasgado elogio à mandioca, ao fubá, amendoim, melado e rapadura, e à soja, tão apreciada no Oriente. Foi então que, para mudar de assunto, Silva Pontes perguntou:
“Padre Manezinho, por que o prefeito Elésio brigou com o Boris Ackermann da Mibra? Falam em contrabando de areia, com sonegação de impostos…”
Os olhos do padre brilharam. Levantou-se. Ajeitou a puída batina. Deu dois passos para trás, balançando a bem fornida pança. E soletrou, compassado e solene, uma só palavra: “BO-CE-TA.”
Ante o olhar espantado do convidado, esclareceu:
“Ambos estão arrastando a asa para a viúva do Laurindo, esta mesma que pisou nossas areias ardentes aí da frente, há poucos minutos…”
O almoço transcorreu muito bem. Comeram apenas arroz e a famosa torta capixaba. Mas que torta!
“É comer e chorar por demais,” disse o médico.
Chamada a dar a receita, a Maria, mulher-cozinheira do padre, se embaralhou todinha. Falou no peixe, no caranguejo desfiado, nas ostras, nos camarões descascados, no palmito, os peixes são moídos e picados, temperados, refogados…
Silva Pontes, barriga cheia, uma leve sonolência, não prestou muita atenção, mas louvou os dotes culinários da moça.
“Se for boa de cama como cozinha, o padre está feito…”
13. Tosse providencial
No sábado chegou uma frente fria muito comum em dias muito quentes do verão, aqui chamada de “vento sul”.
Silva Pontes, sujeito a gripes e tosses, preveniu-se com um cachecol, que ele chamava à antiga de cachenê, mas de nada adiantou. Começou a tossir, uma tosse seca de cachorro… Ficou dois dias de molho, sentado numa chaise longue, olhando o mar e a ilha Escalvada com seus castelos de luz e sombra, lá longe.
O enfermeiro do hotel, um empregado todo mesuroso, veio perguntar-lhe se podia ser útil, mas recebeu resposta negativa.
Na segunda, desceu até a farmácia do velho Trajano, única na cidade, em busca de um paliativo, um vinho de Bromil, no dizer de Rubem Braga, “o amigo do peito”.
Não deixou de passar nos Correios, onde não havia correspondência, as cartas aqui chegam a passo de cágado, cumprimentou o padre Manezinho que o escorou:
“Continua suas investigações, doutor-detetive?”
“Ah, padre, depois daquela torta magnífica, o vento sul me derrubou…”
Trajano fez muitas festas ao famoso esculápio. Sua farmácia ocupava uma pequena e velha casa, ao lado da Usina de Beneficiamento da Mibra e na lateral do cais, no canal.
O farmacêutico disse que estava em falta do Bromil, muita gente estava tossindo, com a friagem, mas ainda lhe restaram três frascos de Mastruço Creosotado, do Laboratório Pelotense.
“O efeito é o mesmo. Tem gente que até prefere este.”
“Ora, Trajano, este você paga seis e recebe uma dúzia, pensa que não sei?” disse, rindo, o médico, que acabou comprando por dois cruzeiros o remédio indicado pelo seu “colega” farmacêutico.
Depois este começou a falar na recente morte do Sr. Aleixo Neto, o homem mais velho da cidade, devia ter cerca de 106 anos.
“Imagine o senhor que ele mora aí na frente e demorou muito a morrer. Passava noites insones, arquejando com falta de ar… Eu não tenho oxigênio, mas fazia-lhe massagens nos peitos… Uma noite, dois ou três meses atrás, digo com precisão, dia da padroeira Nossa Senhora da Conceição, tenho certeza pois havia festa em frente à Prefeitura, do boi Jaraguá, e a zoada só fazia enervar o moribundo. De madrugada, pela janela, ao longe, eu vi chegar a caminhonete do Laurindo Pitani e um vulto saiu carregando outro como se estivesse bêbado…Depois o doente chamou meus cuidados e só vi um homem sair correndo, canal acima, deixando a caminhonete lá…”
Silva Pontes arregalou os olhos:
“E você não contou isto ao delegado?”
“Eu aqui, doutor, sou da oposição. Eu sigo o PTB, do Dr. Getúlio Vargas. O governo é da UDN e nós não nos damos.”
Silva Pontes sentiu que sua investigação tomaria, agora, novo rumo.
14. Um tiro à luz do dia
Procurou o delegado e relatou sua nova e sensacional descoberta. Manoel Lyra disse-lhe, aborrecido:
“Ah, doutor, isto já está enchendo o saco. O que o senhor quer que eu faça?”
“Que descubra quem era o vulto na madrugada…”
“Pode deixar, doutor. Agora mesmo vou determinar ao investigador Pepê as diligências necessárias.”
O médico saiu da delegacia incrédulo e resolveu ele mesmo encetar investigação paralela. Sua hipótese de que havia algo de podre na morte do milionário, e que resultara na conseqüente morte da professora, estava cada vez mais forte.
Passou, como sempre fazia, pelo bequinho que, saindo da rua Principal, dava nos Correios. Um farfalhar de folhas de um grande cajueiro chamou-lhe a atenção. Virou-se rapidamente e recebeu, no braço, o impacto de uma bala.
O tiro passou de raspão e a observação que fez da minúscula bala mostrou que era de uma garrucha de pequeno calibre. Entendeu que, embora o disparo fosse para ele, era apenas uma advertência porque estava revolvendo defuntos já enterrados. Resolveu nem comunicar o fato ao delegado.
No hotel, fez um ligeiro curativo e sentou-se na varanda, a tirar seu famoso cochilo meditativo, onde tudo se esclarecia.
15. A identidade do sr. X
À noite, no jantar, foi conversar com Dona Maria Silveira, a cozinheira sabe-tudo que já lhe dera importante dica a respeito da falecida Marinalva Cunha.
“Dona Maria, quem costumava dirigir a caminhonete F-16 do senhor Laurindo Pitani?”
“Todo mundo, doutor… Seu Pitani era o mais mão aberta da cidade. Era só pedir-lhe as chaves para levar doentes ou transportar manjubas.”
“Sim, mas não tinha alguns mais chegados?”
“Só os companheiros de pôquer, três fazendeirões do sul do Estado e o enfermeiro aqui do hotel, que o povo dizia que era o fatoto do milionário…”
Silva Pontes deu-se por satisfeito. Excluiu os companheiros do pôquer que haviam voltado para passar o Natal em casa, e fixou-se no enfermeiro, um belo índio misturado com libanês, cheio de salamaleques.
Chamou-o e pediu que removesse o curativo no braço ferido.
“Virge, doutor, que foi isso?”
As mãos do rapaz tremiam.
“Uma bala perdida que quase me atingiu.”
Feito o curativo, o médico procurou, de novo, o delegado.
“Seu Manoel, quem matou a professora e provavelmente o milionário foi o Militão Jorge, enfermeiro do hotel.”
“Doutor, parece até idéia fixa, obsessão… O que o senhor quer que eu faça?”
“Que o intime à delegacia e me permita fazer-lhe as perguntas.”
16. Uma dupla confissão
Militão Jorge era daqueles que diziam que nunca haviam ido a uma delegacia, nem como testemunha. Criado na beira da praia, trabalhou quando adolescente na farmácia do Trajano e, quando o Radium Hotel foi inaugurado, foi contratado como enfermeiro, quase uma sinecura que se limitava a levar os hóspedes, pela manhã, para enterrá-los na areia preta e trazê-los na hora do almoço.
Morando perto da mansão do Laurindo Pitani, nas horas vagas fazia de um tudo para o milionário.
Entrou na sala do delegado branco como cera. Espantou-se de encontrar ali o famoso Dr. Silva Pontes, assessorando o delegado Lyra.
E foi o Dr. Pontes quem formalmente lhe perguntou:
“Sr. Militão, onde o senhor estava na noite do dia 8 de dezembro passado?”
“Eu acho que fui dormir cedo. Havia boi Jaraguá na cidade e eu não gosto de barulho.”
O médico sentiu uma estranha afinidade com o interrogado, ele também não gostava de barulho, mas prosseguiu austero:
“Pois duas testemunhas o viram, madrugadinha já, no cais da balsa.”
“Mentira pura…” (Aí o enfermeiro se enrascou.) “Não havia ninguém na praça Municipal…”
“Ora, ora, pois muito que bem, meu manduca… Você dormia ou estava lá?”
O rapaz desfez-se de sua versão do sono reparador. O delegado resolveu apoiar integralmente o médico.
“E tem mais uma coisa, meu velho. Este chaveiro que está no seu bolso era do falecido…”
“Foi meu patrão que me deu…”
“Como, se era o chaveiro que ele mais mostrava aos amigos, aqui na cidade? Ele dizia que foi um presente do Boris, quando veio de Nova Iorque. Peça fina, de prata, representando a estátua da liberdade.”
O enfermeiro balbuciava:
“Foi presente do patrão…”
O delegado se exaltou:
“Vou mandar o soldado 500 dar um couro nesse cabra.”
“Não, doutor, não, isso não.”
Todos tinham medo do soldado 500, um afro-brasileiro forte, de quase dois metros, conhecido como matador e estuprador.
“Então conte o que aconteceu na noite do dia 8 de dezembro do ano findo.”
“Conto. Conto a verdade. Foi assim. Seu Laurindo mandou-me dizer à Dona Lili que ele ia jogar pôquer até de madrugada. Bati, bati, e nada da mulher atender. Depois ela abriu a janela e disse — eu vi que ela estava de camisola: ‘Ah, é você, Militão?’ Dei o recado do patrão, quando, para mal dos meus pecados, já ia embora, a mulher disse: ‘Entre, Militão, que eu quero que você faça um servicinho na pia da copa…’ Quase meia noite e um mulherão daquele querendo um serviço na copa? Entrei. Ela nem botou um peignoir por cima da curtíssima camisola. Quando eu me abaixei para ver o vazamento ela deitou em cima de mim… E foi nessa posição que o patrão nos encontrou… Ele estava embriagado, mas puxou do revólver… Como sou mais jovem e mais forte, tomei-lhe a arma, ele caiu e Dona Lili o acertou com um rolo de macarrão. Podes crer, o homem exalou ali seu último suspiro. Aí eu disse: ‘Vamos chamar o delegado.’ A Dona Lili disse: ‘Nada disso. Você vai na lancha e simula lá um acidente.’ Dito e feito. Peguei o homem pelas pernas, puxei-o para a caminhonete. Era noite de festa, o senhor já disse, e eu tive que dar uma volta imensa pelo morro dos Cascais…”
“Tudo bem,” disse o delegado, “que fez você então?”
O enfermeiro pediu um copo d’água.
“Eu devia dar-lhe um copo de vinagre…”
O rapaz continuou:
“Bati com a cabeça do homem no mastro, no mesmo lugar em que a mulher o feriu… Deixei-o estatelado no convés. Meu azar, quando saí correndo, foi que esqueci de deixar as chaves com ele… E o chaveiro eu invejava ele e aí deu na minha telha ficar com ele… Burrice, não?”
“Tudo bem. Isto está esclarecido. Mas o que tem Dona Marinalva Cunha a ver com isto?”
“A velha, de sua janela, viu tudo. Escreveu a Dona Lili uma carta anônima exigindo quinze mil cruzeiros sob pena de nos denunciar. Eu fui encarregado de colocar o dinheiro junto ao extintor de incêndio do segundo andar do Radium Hotel. Coloquei, e cumprindo ordens de Dona Lili, escondi-me atrás de uma cortina de gorgorão vermelho. A paralítica lá evém em sua cadeira de rodas, ring-ring-ring. Parece que desconfiou de alguma coisa, passou pelo extintor e continuou até a porta do cassino. Depois voltou e com uma rapidez que eu não a julgava capaz, retirou o embrulhinho de cima da peça e foi para o apartamento dela. Voltei e contei tudo a Dona Lili.”
“Você tem que matar esta mulher…”
“Mas…”
“Nem fusa, nem fó de ferreiro…É hoje…”
“Eu estava meio abilolado, meio apaixonado. Já fizera muitas massagens na pobre professora. Tinha pena dela e das gorjetas de um cruzeiro que ela me dava. Fui. Pé ante pé, peguei um travesseiro e a sufoquei. Depois, de acordo com a sugestão da patroa, joguei-a ao pátio, semelhando um suicídio, que quase foi aceito… Isto é tudo.”
“Tudo não,” lembrou-se o delegado. “Não foi você que deu um tiro no doutor aqui?”
“Foi sim, foi sim, mas por ordem de madame. Ela soube que o médico estava bisbilhotando as mortes e mandou eu dar-lhe um susto… Usei uma garrucha velha que não mata nem preá…”
[Renato esqueceu que o médico não havia contado o incidente ao delegado.]
O delegado se deu por satisfeito e gritou, fazendo valer sua autoridade:
“Seu cachorro, recolha este safado no pior cubículo da cadeia.”
[Outra passagem sem sentido. A quem se dirigia o delegado?]
17. Enfrentando a viúva
“E agora, doutor? Está satisfeito?”
“Agora o senhor tem que acarear o enfermeiro com a viúva.”
“Eu? Vou pedir um delegado especial, bacharel em direito. A mulher é rica e está nas graças do prefeito…”
“Faça como quiser… Minha missão, considero-a finda satisfatoriamente,” disse o médico carioca.
O delegado especial veio. Era um advogado recém-formado, cuidadoso com os trajes e perfumes, alfinete de gravata com uma caveirinha, e muito falante. Tinha um grande anel de advogado e fazia questão de ser chamado Doutor Paulo Thomé.
Por motivo ignorado, convidou Silva Pontes para assistir à conversa que teria com a viúva. O médico relutou, mas, ao final, não tinha nada a perder, foi.
A casa senhorial tinha fachada coberta de antigos azulejos portugueses, restos de uma demolição que, segundo informaram, tinha uma finalidade mais protetora do estuque do que estética. Enquanto esperava, ficou a admirar a bela construção, e tentando identificar os santos reproduzidos em grupos selecionados de azulejos.
Foram admitidos no salão.
A viúva estava linda, num vestido decotadíssimo e um colar com uma pequena cruz. Recebeu o delegado, o escrivão e o médico toda sorrisos. Assessorava-a o advogado Dr. Monteiro, famoso chicanista da Capital.
O delegado entrou todo maneiroso no assunto. Tinha um depoimento do sr. Militão Jorge que desejava ler. E perguntou:
“A senhora conhece o sr. Militão?”
“Claro. Ele trabalhava para meu falecido marido, mas estava brigado com ele por causa de acerto de salário…” A mulher ficou impassível durante toda a leitura que o escrivão fez.
Enquanto isto, Silva Pontes a observava discretamente. Que mulheraço! Constava, na cidade, que o Laurindo Pitani, desquitado, sem filhos (a falta de filhos fora a causa da separação), a trouxera de um bordel de Itabuna ou Ilhéus. Ela era odiada pelas senhoras locais, por causa da sua arrogância.
Ao fim e ao cabo, o advogado disse:
“Não fale nada…”
“Mas, Dr. Monteiro, eu quero falar. Isto é uma mentira cruel. Eu nunca cheguei nem perto desse filho da puta, arraia miúda, pé de chinelo. Eu sou bem nascida da família Dupin, de Salvador. Esse aí é lá de Meaípe.”
E virando-se para Silva Pontes, com raiva incontida e chispas faiscando nos olhos:
“Todos estão dizendo que isto foi insinuado pelo senhor, doutor. Eu nunca lhe fiz mal… Se o senhor é tão mau médico quanto detetive, seus clientes estão perdidos…”
O delegado assumiu o comando da situação:
“Então a senhora nega todas as acusações?”
“Nego. Todas. Todinhas. Perguntem ao acusado o que aconteceu, na verdade, e ele vai esclarecer…”
O delegado mandou lavrar o termo de depoimento, e retiraram-se todos em silêncio.
18. Surpresa!
No dia seguinte a cidade amanheceu cheia de boatos. Aos poucos Silva Pontes ficou sabendo que o Militão Jorge retificara sua confissão!
Pela nova versão ele fora o autor dos dois crimes, que não tinham nada um com o outro.
Na madrugada do dia 8 de dezembro ele ia pescar, em alto mar, com o patrão, que chegou no barco “Andaluzia” muito bêbado. Desentenderam-se e entraram em luta. O milionário caiu, bateu com a cabeça na quina do motor da lancha, e morrera. Apavorado, ele deixou o morto lá e saiu correndo, levando, na pressa, as chaves da caminhonete do Pitani.
Meio mês depois ele soube, no Hotel, que Dona Marinalva Cunha tinha ganhado uma bolada na roleta. Como enfermeiro da casa e massagista da professora tinha conhecimento de que ela tinha insônia e dormia sob efeitos de remédios.
De madrugada, entrou no quarto para roubar (“não todo o dinheiro, eu não faria isso com a pobrezinha”) um pouco do cofre que ficava no armário do apartamento. Quando abriu a porta fez barulho, a mulher estava acordada, olhou-o com olhos de medo, e o jeito foi silenciá-la com um travesseiro. Jogá-la no jardim foi uma idéia súbita, pois queria (como foi pensado) que parecesse suicídio.
É isto aí.
Falaram também que a casa da mãe do enfermeiro, em Meaípe, que era de tábuas, num passe de mágica, virou de alvenaria e que colocaram no Banco do Brasil, em Vitória, polpuda importância em seu nome, em conta conjunta com o filho, fofocas que permitiram à maioria entender que havia maracutaia no caso.
19. A denúncia
O inquérito concluído foi para Anchieta, cabeça da comarca, de que Guarapari era termo.
O promotor público, Dr. Geraldo Alves, analisou todas as peças e se convenceu da culpa do enfermeiro e da viúva.
Denunciou ambos, e como mandava a lei, pediu fosse decretada sua prisão preventiva.
Era sexta-feira e o juiz, Dr. José Firme, levou os autos para casa. No sábado, um carro oficial veio requisitar-lhe, da parte do Tribunal, informações urgentes sobre o processo, imediatamente fornecidas com a bela letra do magistrado.
Na segunda-feira, por decisão do relator, desembargador Honestino Guedes, o processo foi trancado no que concerne à acusada Liliane Dupin Pitani, por falta de justa causa.
No devido tempo, Militão Jorge foi condenado pelo júri a 13 anos de reclusão, pena pequena se se levar em conta que havia em pauta dois homicídios qualificados.
20. E agora me vou…
Silva Pontes deu por encerrado seu veraneio daquele ano. Pediu que a caminhonete do hotel o levasse à Capital, onde tomaria o avião para o Rio.
Passou na Casa Paroquial onde o padre Manezinho o abraçou efusivamente, sob o olhar atônito de D. Maria, que apreciava aquele balancê ridículo do padre baixote e gordo e do médico espigado e magro, como que dançando, sem música.
No cais da balsa [Renato volta ao tempo da balsa, quando anteriormente o texto sugeria que a época do romance fosse posterior à construção da ponte de Guarapari, pois falou até em fusquinhas] já havia três carros na fila. Enquanto esperava, ficou o médico a olhar a usina da Mibra, onde eram separadas, pelo peso, em esteiras rolantes, as diversas areias raras — monazita amarela do sol, ilmenita preta como a noite.
Enfim, atravessaram o estreito canal e começaram a viagem de duas horas, levantando poeira em Muquiçaba, nas Neves, Amarelos.
No Barro Branco um homem de alpercata e boné tipo roceiro pediu carona. O motorista não queria dar, mas Silva Pontes reconheceu no suplicante seu velho amigo, o desembargador Vicente Saavedra, dono de um sítio ali.
“Perdi o ônibus e tenho que chegar ao Tribunal antes do meio dia…”
O motorista queria que o desembargador ocupasse lugar na carroceria, onde havia dois servidores do hotel e um engradado com galinhas, mas Silva Pontes bateu o pé:
“Não senhor. O homem é importante. A gente aperta na boléia.”
Em Araçatiba, o radiador do velho carro ferveu e o motorista teve de parar para conseguir água no rio Jucu.
Enquanto esperava em baixo de uma mangueira, o velho magistrado confidenciou:
“Pois é, eu lhe peço sigilo, mas estou indo para uma sessão secreta muito dolorosa pois vão entrar em pauta denúncias contra um colega, o Honestino Guedes. Há diversas acusações, inclusive um trancamento escabroso de um processo de uma viúva milionária aí de Guarapari…”
Silva Pontes sentiu-se, de certa forma, vingado. O homem que livrara a cara da viúva agora estava sendo julgado… Disse ao amigo:
“Entrou por um ouvido, saiu pelo outro…”
Deixaram o desembargador no Parque Moscoso, onde ele ia trocar de roupa e almoçar, e foram, pela Avenida Vitória e Reta da Penha, para o campo de aviação, em Goiabeiras.
Silva Pontes tinha passagem na Aerovias Brasil, que operava uns velhos DC 3 salvos da Segunda Guerra, despressurizados. O médico detestava a viagem, pois enjoava, terrivelmente.
Usando o seu prestígio, entrou logo no avião e sentou-se no primeiro banco. Bem depois começaram a chegar os demais passageiros.
Uma mulher belíssima, bem maquiada, num vestido branco impecável, bateu no ombro do médico, piscou-lhe um olho e deu uma risadinha.
No primeiro momento não reconheceu a viúva Pitani. Logo atrás dela, tendo à mão uma trousse feminina, o delegado Paulo Thomé, terno de tergal preto, brilhoso e cafona, de agente secreto, o qual virou o rosto para não cumprimentar o médico. Fez que não o conhecia.
Em cinco minutos, mesmo antes de o avião decolar, o Dr. Silva Pontes já estava nos seus cochilos silenciosos, sonhando com Guarapari, maravilha da Natureza.
[Texto corrido extraído da primeira versão manuscrita do romance, com 58 folhas numeradas, escritas na frente e no verso. Reprodução autorizada pela família.]
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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)