Dona Lenilda esperava Pedro no lado de fora da delegacia. Ou, melhor dizendo, na varandinha de piso de cerâmica que o desgaste de várias décadas fizera perder a cor.
A faxineira estava sentada na mureta quando o escrivão chegou. Bem disposto, ele parou em frente da amiga e, fazendo uma mesura, cantou: “Cucurucucu, paloma!”
“Ih, seu Pedrinho, o senhor está alegre hoje…” comentou a faxineira.
“Me sinto mexicano, mulher! Um guapo mexicano sem sombrero,” disse Pedro, sorrindo de soslaio.
Explique-se o entusiasmo do escrivão: ele ainda estava sob os eflúvios da véspera quando, na companhia do amigo Ivan Borgo, passara momentos de rei comendo pizza.
Explique-se mais detidamente.
O cronista Ivan Borgo come pizza no Bixiga. Come, não! Celebra. E quem pensar que Bixiga não é nome de pizzaria, engana-se redondamente. O nome é uma referência ao bairro da Paulicéia, reduto de italianos. Donde…
Donde, no Bixiga, onde Ivan tem mesa preferida e é reconhecido pela dona da casa, que veio de São Paulo, os dois amigos entregaram-se ao “bom exercício de comer pizza”, no dizer do próprio cronista. A “deliciosa lâmina de trigo tostado, com queijo derretido por cima” (cito novamente Ivan, o único sujeito que conheço que já comeu pizza em Honolulu) já estava mais do que devorada, quando Borgo, em prosa solta, puxou de sua memória cinematográfica a cena do filme rodado em ambiente mexicano, que ele deve ter visto no Trianon porque todos os filmes que Ivan recorda foram vistos no Trianon.
A cena? De chapelão meio que descambado, Kirk Douglas canta, junto com… (também era querer demais lembrar o nome do partner de Douglas), a célebre canção que tem seu auge no trilado do cucurucucu que Borgo alonga na goela imitando o cantor de araque.
Entrementes, e entre mesas, entra na pizzaria um seresteiro da noite, traçando na sua guitarra uma guaracha paraguaia. Mais que depressa, Ivan procura saber se o cançonnier de restaurante sabia a letra do cucurucucu. Claro que sabia e, sabendo-a, cantou estremecidamente para completar a festa dos dois amigos, em noite de Shangri-Lá.
Pague-se ao garçom e acelere-se o cronômetro.
Pedro chega em casa e resolve rever o filme O Carteiro e o Poeta. Para sua surpresa — puta coincidência! — há na fita um diálogo em que o vate chileno faz alusão ao cucurucucu, num deboche à angústia amorosa do estafeta.
Foi, portanto, sob o efeito desse feixe de enredos, que Pedro saudou dona Lenilda, num rapapé guapo. Ela recebeu a homenagem e não perdeu o passo:
“Já que o senhor está tão cucurucuchento, seu Pedrinho, dê uma olhada naquilo” — e apontou o quadrinho pendurado na parede da varanda, cercado pela moldura esmaltada. Nele, em letras grandes de computador, lia-se a frase: “QUANTO MAIS VOCÊ PRATICA, MAIS SORTUDO FICA.” Seguia-se a indicação da autoria: “Dr. Lair Ribeiro, do livro Idéias que Estimulam, página 83.”
“Que diabo de novidade é esta?” indagou Pedro, estupefato de fato — ou estupefacto de facto, para sublinhar o fato.
“A delegacia está cheia desses quadrinhos,” respondeu Lenilda, saboreando o espanto do amigo.
“Cheia, como?” interrogou o escrivão.
“Cheiinha, seu Pedro… Na sala de espera, na cozinha, até no banheiro…”, disse a mulher.
“Na minha sala também?!”
“Bem atrás da sua mesa…”
“Não acredito..!”
“Pois vá lá ver…”
Pedro apressou-se, com Lenilda nos calcanhares. Entrou na sala e viu, na parede atrás da mesinha da Olivetti, uma cópia do quadro, só que em tamanho maior.
“Por que o meu é maior do que os outros?”
“Dr. Digital disse que o senhor, sendo metido a intelectual, vai apreciar melhor a frase de outro intelectual,” deu Lenilda a explicação ouvida ao delegado.
“Quer dizer que foi aquele bosta quem pendurou essa estupidez nas paredes da delegacia?” desabafou Pedro para a amiga.
“Eu sabia que o senhor ia ficar p da vida,” disse ela, solidária. “Até eu, na minha santa ignorância, acho esta frase uma bestidade.”
“É a bestidade das bestidades, Lenilda! É uma bestidade tão bestidade que só pode ser apreciada por outra bestidade!”
“Eu também penso assim, com a minha cabeça. Mas o que se há de fazer se o homem é quem manda, né?”
“Ele está aí?” perguntou Pedro, que ao passar em frente ao gabinete de Digital vira a porta fechada.
“Ainda não chegou,” esclareceu a faxineira.
“Então, quem vai esperar por ele na varanda sou eu,” disse o escrivão, saindo da sala com o coração pulsando na pressão 15×11, trazendo Lenilda como sombra.
“Olha, seu Pedro, tenha cuidado com o homem. Ele acha que está fazendo uma grande coisa ao espalhar os quadrinhos pela delegacia. O livro desse tal Dr. Lair está em cima da mesa dele e toda hora ele lê uma frase, estica o corpo na cadeira, e diz ‘Esse cara é o do cacete!’, com o perdão da palavra. Eu nunca vi o delegado tão animado com a leitura de um livro. Aliás, para ser franca, é a primeira vez que vejo ele lendo um livro.”
“Obrigado pelo aviso, minha amiga. Mas pode cuidar do seu serviço que eu me encarrego de dobrar a toupeira,” tranqüilizou-a Pedro.
Apesar de ter sido liberada, Lenilda ficou tocaiando o escrivão. Viu quando ele acendeu o cigarro, na varanda; viu quando tirou do lábio o pentelho de fumo que petelecou em direção ao vento; viu quando se sentou, tal como ela fizera antes, na mureta rebaixada; viu, finalmente, quando Digital chegou e os dois entraram na sala do delegado, este na frente e o escrivão a reboque, e contou, impaciente e aflita, o tempo da conversa à porta fechada, um que outro som mais alto escapando para fora.
Quinze minutos depois, Pedro deixou o gabinete. Lenilda o conhecia suficientemente bem para saber que saía derrotado, um roto escrivão de polícia aniquilado num entrevero com o chefe. Esperou que o amigo se recuperasse e foi consolá-lo.
“Nada feito, seu Pedro?”
“Néris de beribitéris, Lenilda. A bronca-figura está inabalável. Não admite que os quadros sejam retirados das paredes. Segundo ele, a frase de Lair Ribeiro é para ser lida por negros e troianos, e serve para levantar a auto-estima de todos. Vai ter de ficar nos quadrinhos, da varanda ao mictório, doa a quem doer.”
“Eu já esperava isso, seu Pedrinho,” disse Lenilda, associando-se à desventura do escrivão. “Mas, se o senhor quiser, tem um jeito de acabar com esses quadros…” &— e os olhos dela cintilaram cumplicidades.
“Qual é a sugestão?” aviventou-se o baixo astral de Pedro. Tinha uma estima particular por aquela mulher rija e baixinha, que estava sempre disposta para o trabalho, apesar dos bicos-de-papagaio encruados na coluna.
“Eu dou o remédio, seu Pedro, mas o senhor é quem aplica as doses, está bem assim?” voltou Lenilda a criar suspense.
“Mesmo sem saber do que se trata, já estou encarando a proposta. O que vamos fazer?” — e Pedro fitou a faxineira por cima das lentes dos óculos redondos.
“Não tem mistério… Eu trago do morro onde moro uma latinha cheia de cupins, daqueles brancos que comem até cimento. Aí o senhor faz uns furinhos nas molduras dos quadros, coloca os bichinhos ali e eles já entram devorando tudo. Em menos de dois meses… era uma vez a frase boboca desse Lair Ribeiro!”
“Lenilda, você é um gênio! Um não, uma gênio!” disse Pedro, abraçando a amiga. “Vamos atacar com um exército de cupins a filosofia cretina de Lair Ribeiro antes que ele vire imortal da Academia Brasileira de Letras. Porque depois que entrar lá, como o Paulo Coelho, vai ser difícil Digital se conformar com o desmoronamento dos quadros. Portanto, traga-me a sua poção de isópteros esfomeados para eu banqueteá-los com a literatura mais babaca do mundo. E, vencido o inimigo, cantaremos em dueto o cucurucucu! Combinado?”
“Ih, seu Pedrinho, o senhor está até me dando medo..!”
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)