Choveu, é rec rec rec. Sempre. Sapo, perereca, não sei. Mas é um batráquio, como aprendi, um dia, com a minha bela professorinha, aquela de saia godê ou talvez plissada. Nunca soube direito dessas modas. Mas acho que era plissada, que tem conotação com roupa passada e ela dizendo que acordou tarde e quase não deu para passar a saia de plissê.
Mas a professorinha “não se encontra” e não pode me ajudar na identificação desse batráquio que ultrapassou, em muito, a condição de girino porque girino não produz som. Fica só no fundinho da bica fazendo contraste com a areia branca e me fazendo gritar para o primo: “Olha um girino!” Ele, menor, dizendo: “Mas isso é um sapinho.” E a resposta: “Quando você for para o colégio vai aprender que isso é um girino.” O olhar de admiração do primo.
Sim, mas agora, aqui, o rec rec. Que tem a ver? É o seguinte: sempre que chove, começa no quintal esse intrigante rec rec rec. Durante os dias secos procuro por todo canto e não consigo encontrar o autor dessa sinfonia de uma única nota. Mas é chover e a música vem. Que se trata de um habitante de meus domínios, tenho poucas dúvidas. Então fico pensando em seu quotidiano nesses domínios que não terão mais de duzentos metros quadrados. Na cisterna ele não entra porque é vedada com cimento. Debaixo da cidreira? Improvável, porque ali não existe água. A boa hipótese é de que ele habite por esses caminhos subterrâneos de águas servidas para ser o menos indelicado possível. Há o pequeno sistema de escoamento da água da torneira que serve para molhar a grama dos canteiros dos fundos e que tem uma tampa quebrada há tempo. É por ali que ele vem/vai. Deve ser. Ou pelo beiço quebrado da tampa de um bueiro de inspeção, também do pequeno sistema. Convém falar assim, com certa imponência, dessas instalações, para que esse habitante não se sinta tão humilhado. Porque é disso que se trata. Pode-se imaginar, mas não acredito, que depois da passagem do pequeno sistema para o sistema de drenagem que fica no beco do lado esquerdo da casa e se comunica com a drenagem geral, imaginar-se — dizia — uma incursão do animal, passando pela lagoa de decantação, até o mar de Camburi. Mas não creio nisso. Ele mora é por aqui mesmo, pelos subterrâneos de minha casa, embora só reapareça na chuva com seu rec, rec, rec.
Pode-se pensar em outras vidas mais simples mas, no caso, trata-se de um bicho com status de habitante da casa, clandestino, mas habitante. Gosto de tratar bem os meus habitantes informais como é o caso dos bem-te-vis, embora que, para meu gosto, seria melhor que fizessem menos barulho. As rolinhas, a estressada carriça que pula para todo lado parecendo ameaçada por forças invisíveis. Aliás, já recebi até mesmo a visita — rápida, é bem verdade — de um vero sabiá-laranjeira. Enfim, a esses dou comida de passarinho, banana, alpiste, coisas assim. Para os beija-flores não estou colocando mais açúcar no vidrinho por causa do ataque dos morcegos. Estes não são bem-vindos. Sei lá se vem um vampiro misturado com o bando. Mas o batráquio? Esse está sempre invisível. Fico penalizado com essa vida passada debaixo da terra tendo por teto essas paredes cimentadas da drenagem, um céu escuro com tempestades internas constantes. Mas, choveu cá fora, ali está ele tentando cumprir a lei da sobrevivência da espécie porque, é claro, deve existir uma batraquinha para quem o meu hóspede invisível canta esse rec monótono mas que, quem sabe, pode soar como um poema para a outra habitantezinha. Que virá donde?
Não tenho a ilusão de decifrar os mistérios desses humildes habitantes da periferia de minha casa, mas me encanta e me deixa perplexo essa fé na vida. Numa esperança. De quê?
[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)