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Dedé Caetano

Falo com ela? Não falo?

Inibido, como sempre, menino praieiro em uniforme de adulto, estou ganhando coragem para dirigir-me a Dedé Caetano, esplendorosa, em carne e osso, dos pés à cabeça de preto, neste saguão do Aeroporto de Santos Dumont. Espero por este encontro há muitos anos, ó quantos. Acerco-me dela em passos lentos, quero fazer-me notar…

Dedé era a moça mais bonita de nossa cidadezinha. Melhor dizendo, era a única mulher bonita, em meio a cafusas atarracadas que cruzam as ruas da infância de minha terra natal.

Dedé era filha de seu Nico, tabelião e oficial do Registro Civil, única autoridade judiciária local. Aluna interna do Colégio do Carmo, estudava na Capital, e só nos visitava nas férias. Ela era a deusa de todos nós, meninos de grupo escolar. Como a Jandira do poema, era o centro de nossas conversas e a todos trazia presos por um trancelim de paixão e sonho.

Jaú nos reuniu na pracinha e disse:

— Sabem da novidade? Dedé Caetano vai casar…

Incrédulo, retruquei:

— Só se for com algum lorde de Vitória…

— Não, não e não. Adivinhem com quem a bela vai juntar os paninhos?

E, ante a falta de resposta, adiantou-se:

— Com seu Domingos Garrido…

— Não brinca, — dissemos todos a uma voz.

Bebeto acrescentou:

— Olha que os boateiros estão sendo presos…

Eu resmunguei:

— Um velho daquele…

— É a pura verdade, — disse vitorioso o Jaú. — Papai até cedeu o segundo andar da casa grande para a lua de mel…

Seu Domingos era o comerciante mais rico da cidade. Seu armazém tinha de um tudo e ficava em frente ao Cartório do pai de Dedé. Viúvo, com filhos adultos que moravam na casa aos fundos da venda. Daí a necessidade de um refúgio para a primeira noite.

Jaú fez mistério:

— Quem tiver dez mangos vai ver um filme muito bom.

— O cinema está fechado, como nós vamos ver fita boa?

— É o seguinte: fiz um buraco no sótão, na altura do lustre, e já verifiquei. Dá direitinho em cima da cama…

Tirei, às escondidas, dez moedinhas de mil réis do cofrinho, e no dia aprazado, bem cedo, estávamos, sob compromisso do maior segredo, no sótão de seu Ribeiro.

Dizem que o casamento e recepção foram deslumbrantes.

Dedé, com seus longos cabelos negros, soltos ao vento, em contraste com a brancura de seu vestido, era uma deusa subindo ao altar da igreja que, consta, Anchieta construíra.

A lua de mel em si, nem por isto.

Cada menino tinha direito a dois minutos de buraquinho. Reunidos os relatos parciais dos quatro mosqueteiros (e também mosquiteiros, tantos insetos havia no sótão) descobrimos que o velho Garrido dera uns beijinho na escultural Dedé, um enlaçamento rápido de impotente, se virara para o lado e dormira. Continuei olhando, e vislumbrei uma cena de que nem notícias tivera até então: Dedé se massageava, a princípio gentil, depois sofregamente, até que, saciada, também dormira. Só então, pela escada lateral, sem incidentes, deixamos a casa.

Confessei tudo, sem dizer-lhe quais os santos, tintim por tintim ao Padre Macário, nosso companheiro de jogo de bola, que ele ao aproximar-se das traves escondia na batina, e, mea culpa, recebi a maior penitência de minha vida: rezar um rosário, três terços bem contados, ajoelhado no chão aladrilhado da velha igreja seiscentista. Até hoje, só de pensar, doem-me os joelhos.

A senhora Maria José Garrido, née Dedé Caetano, sumiu de circulação. O marido, conquanto impotente, era cioso de suas “propriedades” e a prendia em casa. Às amigas, minha mãe entre elas, Dedé confidenciara:

— Casei-me para me libertar do jugo paterno, e caí numa escravidão maior.

Tempos passados, surgiu o zum-zum de que, à noite, Dedé fugia e, em companhia da Ofélia, a mais mal falada da cidade, ia entrar naquele “antro do pecado”, era noite, era verão, o vento nordeste varria as duas ruas da cidade, vimos a entrada triunfal de Dedé na boite. Os disse-que-me-disse explodiram. Para mim Dedé só queria dançar, fazer valer seus direitos de moça fogosa. Outros diziam que depois do bailarico ela ia para as praias, com qualquer um. Segundo consta ela dava remédio para dormir ao velho, pulava a janela dos fundos, e tome valsa… Uma noite parece que o remédio não fez efeito, o velho acordou, descobriu a trama, e, segundo disseram, passou a prender a mulher, à cama, com corrente e cadeado…

Cara ou coroa? Falo ou não falo com ela? O momento é este. Serei aceito ou rejeitado?

Papai tinha uma padaria. Era minha obrigação a entrega de sacolas de pão, madrugadinha ainda. Muito a contragosto, saltava da cama, e me mandava de casa em casa, vinte se tantas. Quando chegava ao porto, ainda brilhando o farol da Escalvada, que alívio: só faltavam quatro entregas: no Hotel Beira-Mar, do pai do Jaú, e nas casas do delegado, do médico e do Seu Trajano farmacêutico. Aí eu estava livre para minhas estrepolias de menino, até a hora da escola.

Um dia, no inverno, o vento sul batia forte, eu me enrodilhava todinho em minha capa Renner, vi, eu vi, como uma miragem, Dedé Caetano no cais esperando o bote, pois não havia ponte ainda, e naquela época a gente tomava o ônibus no pontal do outro lado do canal. Era muito cedo e eu pensei que estava ficando louco de tanto pensar em Dedé. Mas era ela mesmo, tão verdadeira quanto agora a vejo. De longe, nas brumas da manhãzinha, ela fez um gesto em minha direção, que logo interpretei favoravelmente a mim, como um beijo soprado, segredando-me amor eterno, mas que, pensando bem, era tão somente um pedido de silêncio.

O amor me fez silenciar. Depois se soube que Dedé fugira de casa, no ônibus das seis, e ainda levara todo o dinheiro que o marido guardava no colchão, alguns quantos contos de réis. Os mais linguarudos inventaram que ela fugira com o Padre Macário, que, por coincidência, deixava a paróquia, e viajara no mesmo ônibus.

Há uma recordação que sobre todas me liga, fortemente, a Dedé Caetano. Foi anos antes do casamento dela. Dedé estava em casa de férias. Era verão. Desafiava as velhas fofoqueiras, vestindo um maiô vermelho inteiriço, muito justo, e se dirigia para as praias distantes, que ninguém freqüentava. De longe, quatro meninos a seguíamos. Um dia a surpreendemos na praia das Pelotas, uma nesga de areia grossa, conchas e pedrinhas, entre duas falésias. Nós a vimos, como quem vê um filme: ela tirou o maiô e se banhou nuinha. Fedelhice minha, espantado assobiei coió. Vênus nascida das águas, Dedé se espantou, vestiu-se à pressa e saiu correndo para os lados da praia do Riacho.

A fuga de Dedé repercutiu na cidade durante meses. Seu Domingos invocou as Eríneas e todas as bruxas de Espanha, mas ninguém lhe trouxe notícias de Dedé. Jaú esnobava:

— Casou-se com um milionário, usineiro campista…

Ou então:

— O milionário que ela conheceu entre os veranistas a abandonou e ela se juntou a um senador, ou desembargador, sei não…

Anos já se passaram. Quantos? Creio que vinte. Fui para o Exército, depois para Pirassununga, de onde sai Sargento. Como mecânico de aeronaves, nos longos vôos que faço por este Brasil em fora, vejo estrelas no céu escuro, vejo o sol nascente, mas o que vejo mesmo sobre as nuvens é a visão de Dedé Caetano acenando para mim, numa fria e eterna manhã. Estamos, eu e meus companheiros de equipe, à disposição do Projeto Rondon. Voamos num desativado DC-3 que a VASP doou, e levamos universitários — gente boa e alegre, jovens bonitas, nenhuma chega aos pés de Dedé — aos diversos “campi” avançados espalhados pelo país. Nossa base é o Campo dos Afonsos, mas, por camaradagem, o comandante nos deixa no Santos Dumont. Enquanto eles saltam e retiram a bagagem e o numeroso artesanato do norte-nordeste, vou ao saguão tomar um cafezinho.

E, à minha frente, em carne e osso, um pouco mais velha, mais sempre bela: Dedé Caetano, sapatos, meias, vestido e um chapeuzinho pretos.

Vou confessar-lhe, agora, minha velha paixão.

Ouço-a dizer que vai a Vitória para o enterro do pai, o velho tabelião aposentado Artênico Caetano, falecido ontem aos 94 anos de idade, morte lamentada até pelo Tribunal de Justiça, segundo diz ela.

Olho-a e lhe vejo o jovem rosto pitanguiado, mas reparo nas marcas escuras da mão, de quase velha.

Falar-lhe ou não lhe falar, eis a questão. Vivo um terrível momento de pânico, coisas que militares aprendemos a controlar. Mas eu tenho sido, durante anos, um solitário. Só conheço a alegria dos céus. A terra, lá em baixo, é uma impossibilidade ilógica em sua planura infindável. Só tenho me sentido bem, nos últimos anos, com meus instrumentos, olhando, pela minúscula janelinha, o algodoal imenso de vapor d’água que Deus plantou para meu deleite, a aguardar, sempre, a chegada de Dedé Caetano.

Mas, não chegou ela? Por que não me dirigir a ela? Identificar-me, eu sou o filho do Zico da Padaria, aquele para quem a senhora (ou você?) acenou na manhã da fuga…

Travo uma íntima batalha. Serei reconhecido? Aceito? Quem sou eu, um simples sargento da aeronáutica, diante da mulher de um ministro, ou deputado?

Pelo sim, pelo não, volto, vagarosa e pesarosamente, para o avião que me espera, é hora de buscar a outra Dedé Caetano, nas nuvens, minha cômoda rotina.

Antecipo, assim, minha própria morte. Não interpretem mal minha retirada: eu desamei a Dedé Caetano que vi hoje, uma quase velha sofisticada a comprar “souvenirs” no aeroporto, com horrível e pernóstico puxar de rr e ss carioca, a que esqueceu o falar descansado e cantado de sua península abençoada.

A Dedé que amei, amo e amarei sempre, apaixonadamente, é a outra, que vi partir, sobre as ondas, e que depois ensinei a voar, companheira certa de todas as estradas do ar.

Encontrá-la-ei, de novo e sempre, nos algodoais dos céus.

Afinal um sonho, para ser eterno, deve permanecer sempre sonho.

[Vitória, 10 de julho de 1994. Reprodução autorizada pelo autor]

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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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